A amizade entre um protestante escocês e um turco muçulmano parece um pouco deslocada mesmo para a realidade do século XVII, especialmente quando esta se desenvolve em um lugar tão distinto quanto a Espanha Católica, no auge das Guerras Religiosas entre católicos e protestantes.

Para explicar este arranjo inusitado, porém curiosamente esquecido atualmente, recorremos à biografia de um viajante do século XVII, cujo revés sob as mãos da Inquisição Espanhola e das instituições civis ibéricas chocaria a Europa Protestante e se tornaria imortalizado na própria Martirologia de John Foxe, a mais conhecida desta religião.

Se comparado com o Mundo Islâmico, a Europa Medieval teve um desempenho um tanto medíocre na formação de viajantes. Figuras como o veneziano Marco Polo surgem mais como pontos fora da curva, enquanto os registros de viajantes muçulmanos preencheriam, por sua vez, uma longa lista. É claro que a partir do século XV, e geralmente dentro do contexto estatal das Grandes Navegações, a Europa pode desenvolver uma tradição aventureira à sua própria moda, mas ainda demoraria séculos para o desenvolvimento de uma cultura de viagem como um fim em si, o que torna o caso de William Lithgow (1583-1645) bastante relevante para a própria época.

Apesar de advir de um dos países mais tradicionalmente pobres da Europa Ocidental, o escocês William Lithgow recebeu o raro privilégio de, apesar de plebeu, descender de uma prospera família de mercadores, o que lhe deu os meios para que, na época, ele pudesse desenvolver o que Foxe descreve como “uma propensão natural para viajar, desde muito jovem”. Numa época em que viagens pela Europa Cristã eram dificultadas pelo iminente perigo de piratas, assaltantes de estradas e toda a sorte de aproveitadores, o jovem Lithgow começou sua vida de viagens atravessando cantos remotos de seu país, como as Highlands escocesas e as ilhas ocidentais, e logo se aventurou pelo exterior, visitando França, Alemanha, Suíça, Espanha, Boêmia, Roma, Nápoles e Ancona. Ele ainda viajou para partes da Europa sob domínio otomano, visitando Atenas, Creta e Constantinopla. Noutros continentes, ele ainda visitou a Palestina, o Egito e duas das maiores cidades berberes da África, Túnis (atual Tunísia) e Fez (atual Marrocos). Em todas essas viagens, Lithgow escrevia anotações sobre as particularidades de cada região, as quais viriam a se provar best-sellers no mercado literário britânico de seu tempo. 

A última viagem de Lithgow, porém, se provaria verdadeiramente uma desventura. No ano de 1620, buscando visitar Alexandria depois de uma série de viagens pela Europa, Lithgow havia se movido até a cidade portuária de Málaga, no sul da Espanha, onde acabou tendo sua residência esticada por dificuldades em encontrar um navio que pudesse levá-lo ao Egito.

Na noite do dia 17 de outubro de 1620, uma frota de navios estrangeiros havia ancorado bem próximo da cidade de Málaga; o povo, pensando se tratar de turcos, havia sido tomado pelo medo de se tratar de alguma espécie de ataque, incursão por escravos ou o início do tão temido levante turco-mourisco (o que faz sentido quando notamos que Málaga era uma das regiões mais tradicionalmente mouriscas da Espanha, estando ela no território do antigo Emirado de Granada).

Foi somente na manhã seguinte que se pode perceber a bandeira com a cruz inglesa hasteada nos navios. Ao invés de uma invasão, aquela frota estava meramente patrulhando os arredores para perseguir corsários argelinos.

Tendo o governador da cidade esclarecido a confusão e acalmado o povo, parte da tripulação inglesa eventualmente viria a visitar a cidade, passando os próximos dias entretidos nas festividades da cidade. Como Lithgow já era conhecido por muitos dos tripulantes, ele foi convidado para visitar o almirante galés da frota, Sir Robert Mansel, que não havia deixado seu navio, e honrá-lo com a sua presença. Lithgow passou a noite embarcado, sendo bem recido pelo capitão, que partiria com a frota no dia seguinte para atacar Algiers, a cidade-Estado dos piratas berberes.

Por conta da bagagem de Lithgow estar na cidade, o almirante não poderia levar Lithgow até a África, forçando o escocês a retornar à cidade para pegar suas bagagens na expectativa de viajar para Alexandria naquele mesmo dia.

Foi durante este retorno que os problemas começaram, pois, tendo ele passado por uma rua estreita e desabitada, ele foi cercado de surpresa por nove sargentos espanhóis, que jogaram um pano preto sobre ele e o conduziram à força até a casa do governador. Lá, Lithgow perguntou o porquê ele havia sido arrastado de forma tão violenta até o governador, que simplesmente o ignorou deu ordens para que o seu novo prisioneiro fosse vigiado metodicamente até que ele retornasse de suas devoções religiosas. Mais tarde, o governador retornaria acompanhado do capitão da cidade – o alcaide maior – e o seu tabelião. O exame de Lithgow foi feito à noite e de forma secreta por estes funcionários de Estado, para que os comerciantes ingleses presentes em Málaga não soubessem do rapto de William.

Os oficiais perguntaram de onde Lithgow vinha, como chegou na Espanha, por quanto tempo ele esteve na Espanha e se ele havia passado por Sevilha (um dos principais portos do Império Espanhol na época). Apesar de não conseguirem nenhuma informação útil, mesmo forçando Lithgow a jurar pela veracidade de suas respostas, eles continuaram sua bateria de inquéritos, perguntando à William sobre “a qualidade” do almirante da frota inglesa que havia atracado na região, os nomes dos capitães ingleses na frota, o que ele sabia das embarcações ou suas preparações antes de deixar a Inglaterra. De forma similar, eles também perguntaram o porquê o comandante inglês não aceitou o convite de vir até a cidade, tendo um tabelião para anotar todas as respostas de forma metódica.

O desconhecimento geral de Lithgow sobre essas informações pegou os oficiais públicos de surpresa, que simplesmente responderam alegando que o escocês era um mentiroso; e mais do que isso, que ele era também um traidor e um espião, e que veio diretamente da Inglaterra para promover desígnios contra a Espanha, razão pela qual ele teria passado 9 meses em Sevilha, buscando adquirir conhecimentos secretos que a Marinha Espanhola tinha das Índias. Eles alegaram que Lithgow parecia muito familiarizado com os oficiais e os notáveis da frota inglesa, indicando que o governo estava vigiando atentamente tudo o que havia acontecido na cidade nos dias anteriores.

Para coroar a tese formulada pelos oficiais da cidade, eles afirmaram que Lithgow vinha de um concílio de guerra, reunido no navio do almirante, e que o escocês já estava executando as ordens que foram despachadas à ele. Lithgow ainda foi acusado de acessora a queima da ilha de São Tomás, nas Índias Ocidentais.

"Portanto (disseram eles) não devemos dar qualquer crédito ao que esses luteranos, e filhos do diabo, dizem ou juram”

 esses luteranos, e filhos do diabo, não devem receber nenhum crédito dado ao que dizem ou juram."

Apesar de Lithgow se defender de todas as acusações feitas pelos oficiais, abstraídas de meros palpites, Foxe nos conta que todos os seus apelos foram em vão; afinal de contas, não se deveria acreditar na palavra de um herege (curiosamente, era o Catolicismo que tinha uma tradição teológica estabelecida de que não era necessário ser honesto ou cumprir juramentos feitos à não-católicos; à exemplo do próprio Papa, que anulou o salvo-conduto de Jan Huss e o queimou vivo no Concílio de Constança).

Para substanciar algum crédito às suas alegações de inocência, Lithgow pediu para que os oficiais de Málaga trouxessem seus papéis, contendo diversos documentos que poderiam provar seu não-envolvimento naquela conspiração teórica. Os oficiais concordaram, pensando que poderiam descobrir algo novo que pudesse incriminá-lo. Entre os documentos aferidos, constavam uma licença oficial do rei Jaime I, da Inglaterra e da Escócia, que descreviam a intenção de Lithgow de visitar o Egito, além de outros documentos que incluíam passaportes, diários etc. Todas essas credenciais.

“Todas essas credenciais, porém, pareciam confirmam e não abater as suspeitas dos preconceituosos juízes, que após recolher todos os papeis do prisioneiro, exigiram que ele desistisse”.

Após discutirem sobre onde deveriam encarcerá-lo, os oficiais desistiram da ideia de colocá-lo na prisão da cidade, por medo de que o encarceramento de Lithgow fosse descoberto pelos britânicos. Eles decidiram colocá-lo sob cárcere privado, ilegalmente e contra todas as normas do direito vigente na Espanha, na residência do governador, da forma mais secreta possível.

Um dos sargentos “pediu” para Lithgow dar seu dinheiro a ele e revistar suas roupas, inclusive rasgando sua camisa de forma pouco cerimonial, encontrando escondidos bolsos e afins cerca de 137 peças de ouro. Por volta da meia noite, o sargento apareceu acompanhado de dois escravos turcos, que transladaram Lithgow da casa do governador por um caminho secreto, levando até o palácio, onde fixaram cadeias e ferros nas suas pernas que o impediam tanto de sentar quanto de ficar em pé, forçando a ficar caído com as costas no chão, por conta do peso. Neste novo cárcere, Lithgow seria alimentado com a menor quantidade possível de comida e água, o suficiente para mantê-lo vivo, mas não para matar sua fome ou sede, muito menos para evitar a desnutrição que se seguiria no seu novo confinamento.

No primeiro segundo dia de confinamento, o governador prometeu libertá-lo e dar a ele muitos benefícios, caso ele confessasse ser um espião. A insistência de Lithgow em afirmar sua inocência, porém, fez com que ele ficasse confinado, solitário e sub-alimentado pelos próprios 47 dias, tendo o governador decretado que ele deveria ser privado de cama, travesseiro ou coberta, que a janela de sua sela deveria ser coberta com cimento e pedras, e que nada que lembrasse conforto deveria permanecer com ele.

Após receber uma carta de Madri sobre o prisioneiro, cujo conteúdo não nos é conhecido, o governador decidiu interromper o confinamento do escocês e acelerar o próximo exame de Lithgow. A razão era um tanto piedosa: o natal se aproximava e era necessário que quaisquer torturas fossem realizadas antes daquele dia sacrossanto.

Lithgow foi retirado de sua cela às duas da manhã, privado de sono nos outros dois dias anteriores, pelos mesmos sargentos que o raptaram. Os oficiais estavam bastante preocupados em evitar qualquer forma de vazamento daquele inquérito extrajudicial, levando o prisioneiro de madrugada até um lagar de vinho, onde um cavalete de tortura havia sido trazido especialmente para William.

Após negarem à Lithgow o direito de um tradutor ou de apelar diretamente para Madri, os oficiais procederam seu exame, apenas para que Lithgow respondesse exatamente como havia respondido anteriormente. Os oficiais públicos simplesmente interpretaram que ele havia decorado essas respostas como parte do plano conspiratório britânico, de forma que o cárcere não havia permitido nenhuma inconsistência.

Após o tabelião criar uma procuração que permitia sua tortura, Lithgow foi torturado nu; de acordo com Foxe, por mais de 5 horas naquele dia, com direito a mais de 60 torturas diferentes, até ele quase morrer, sendo tratado durante todo o exame como culpado. Sem obter respostas, Lithgow foi levado de volta para seu cárcere, tendo o governador despachado ordens para que um cocheiro barulhento passasse toda madrugada, numa rua próxima de sua cela, para que Lithgow fosse atormentado pela possibilidade de ser torturado fisicamente naquele mesmo dia, ao acordar.

“Ele continuou nessa situação horrível, quase morrendo de fome por falta do necessário para conservar sua miserável existência, até o dia de Natal, quando recebeu algum alívio de Mariane, servente da senhora do governador. Esta mulher, tendo obtido licença para visitá-lo, levou consigo alguns refrescos, consistindo de mel, açúcar, passas e outros artigos; e ela ficou tão afetada ao ver a situação dele que chorou amargamente e, ao partir, expressou a maior preocupação por não poder ajudá-lo mais.”

Nesta detestável prisão, o pobre Sr. Lithgow foi mantido até quase ser devorado por vermes. Eles rastejaram sobre sua barba, lábios, sobrancelhas, etc., de forma que ele mal conseguia abrir os olhos; e sua mortificação foi aumentada por não ter o uso de suas mãos ou pernas para se defender, após ser tão miseravelmente mutilado pelas torturas. Tão cruel foi o governador, que até ordenou que os vermes fossem varridos contra ele duas vezes a cada oito dias. Ele, no entanto, obteve um pouco de mitigação desta parte de sua punição, da humanidade de um escravo turco que o atendia”.

Este escravo turco, de quem Lithgow provavelmente nunca soube o nome, foi vital para sua sobrevivência, tendo não só matado os vermes que devoravam o corpo do prisioneiro, mas também “traficando” comida para que o escocês não amargasse lentamente de inanição. A caridade deste escravo turco, de religião muçulmana e um “odiador natural da religião cristã” pelo exemplo dado pelos espanhóis, não só surpreendeu William, mas todas as ilhas britânicas que souberam de sua compaixão; uma empatia que, se descoberta, muito provavelmente resultaria em castigos severos para o pobre escravo.

O turco não somente fazia isto, mas informava secretamente Lithgow das coisas que o governador discutia ao seu respeito. Por meio dele, o escocês soube que o seu caso estava lentamente se tornando de interesse da Igreja Católica, tendo um padre seminarista inglês e um mineiro escocês sido empregados para traduzir suas anotações e livros de viagem, tendo concluído que ele era “um arqui-herege”. De prisioneiro ilegal do Estado, Lithgow estava para se tornar um prisioneiro da Inquisição Espanhola.

“Esta informação o alarmou grandemente, ele e começou, não sem razão, a temer que fosse morto logo, especialmente por tortura ou por outros meios”.

Em poucos dias Lithgow foi visitado por uma delegação da Igreja: o governador, um inquisidor, um padre-canônico e dois jesuítas entraram na masmorra.

“Após uma série de perguntas inúteis, o inquisidor perguntou ao Sr. Lithgow se ele era Católico Romano e reconhecia a supremacia do Papa. Ele respondeu negativamente a ambas as perguntas, dizendo que estava surpreso de estarem perguntando tais coisas, já que era expressamente estipulado pelos artigos de paz entre Inglaterra e Espanha que nenhum súdito inglês seria alvo da Inquisição ou que seria molestado por ela de qualquer maneira por razão de diversidade religiosa, etc. Na amargura de sua alma, ele fez uso de algumas expressões calorosas não adequadas às suas circunstâncias: "vocês quase me mataram (disse ele) por pretensa traição, agora vocês pretendem fazer de mim um mártir por causa da minha religião." Ele também protestou sobre assimetria do governador com o rei da Inglaterra (de quem era súdito), citando a humanidade principesca exercida por este em relação aos espanhóis em 1588, quando sua armada naufragou na costa escocesa e milhares de espanhóis receberam abrigo, sem o qual de outra forma teriam morrido miseravelmente.

O governador admitiu a verdade do que o Sr. Lithgow disse, mas respondeu com ar altivo que o rei, que então governava apenas a Escócia, era movido mais pelo medo do que pelo amor e, portanto, não merecia nenhum agradecimento. Um dos jesuítas disse que não havia fé a ser mantida com os hereges. O inquisidor então levantando-se, dirigiu-se ao Sr. Lithgow com as seguintes palavras: "Você foi preso como espião, acusado de traição e torturado, como reconhecemos, inocentemente: (o que aparece pelo relato recentemente recebido de Madrid de as intenções dos ingleses), mas foi o poder divino que trouxe esses julgamentos sobre você, por tratar presunçosamente o bendito milagre de Loretto como ridículo, e se expressar em seus escritos de forma irreverente de Sua Santidade, o grande agente e vigário de Cristo na terra; portanto, você caiu em nossas mãos por causa de sua nomeação especial: seus livros e papéis são milagrosamente traduzidos pela assistência da Providência, influenciando seus próprios compatriotas. "

Terminada essa trapaça, deram ao prisioneiro oito dias para considerar e decidir se ele se converteria à religião deles; durante o qual o inquisidor disse-lhe que ele, com outras ordens religiosas, iria comparecer, para dar-lhe a assistência que ele pudesse desejar. Um dos Jesuítas disse (primeiro fazendo o sinal da cruz sobre o peito): "Meu filho, eis que mereces ser queimado vivo; mas pela graça de Nossa Senhora de Loreto, a quem blasfemaste, ambos iremos salvar sua alma e corpo. "

No dia seguinte o inquisidor retornou com outros três padres, para debater com o prisioneiro e tentar convertê-lo sobre a veracidade da fé católica. A recusa de Lithgow em abandonar seu protestantismo calvinista após as longas tentativas, no entanto, parecem ter de alguma forma surpreendido a comitiva:

“O inquisidor estava tão enfurecido pelas respostas do prisioneiro que ele golpeou-lhe na face, fazendo muitos discursos abusivos e tentando até mesmo esfaqueá-lo; alg que ele certamente teria feito, se não tivesse sido impedido pelos jesuítas”.

Outras tentativas de convertê-lo nos dias seguintes não obtiveram melhor sucesso,

“No oitavo dia, sendo o último de sua Inquisição, quando a sentença é pronunciada, eles voltaram novamente, mas bastante alterados em suas palavras e comportamento depois de repetir muitos dos mesmos tipos de argumentos de antes. Com lágrimas aparentes nos olhos, eles fingiram estar tristes de coração pelo fato dele ser obrigado a sofrer uma morte terrível, e acima de tudo, pela perda de sua alma mais preciosa; e caindo de joelhos, eles clamaram: "Converta-se, converta-se, ó querido irmão, pelo amor de nossa abençoada Senhora, converta-se!". Ao que ele respondeu: "Não temo a morte nem o fogo, estou preparado para ambos".

Os primeiros efeitos que o Sr. Lithgow sentiu da determinação deste tribunal sangrento foram: uma sentença para receber naquela noite onze torturas diferentes, e se ele não morresse na execução delas, o que poderia ser razoavelmente esperado na condição de mutilado e desconjuntado que ele se encontrava, ele seria levado para Granada após os feriados da Páscoa, para lá ser reduzido a cinzas.

A primeira parte da sentença foi executada com grande barbárie naquela noite; e aprouve a Deus dar-lhe força física e mental, para permanecer firme na verdade e sobreviver aos horríveis castigos que lhe foram infligidos.

[...]

Na manhã seguinte, ele recebeu um pouco de consolo do escravo turco antes mencionado, que secretamente lhe trouxe, na manga da camisa, algumas passas e figos, que lambeu da melhor maneira que suas forças permitiam com a língua. Foi a esse escravo que o Sr. Lithgow atribuiu sua sobrevivência por tanto tempo em uma situação tão miserável; pois ele encontrou meios de transmitir algumas dessas frutas a ele duas vezes por semana. É muito extraordinário, e digno de nota, que este pobre escravo, criado desde a infância, segundo as máximas de seu profeta e pais, na maior repulsa dos cristãos, tenha ficado tão afetado com a situação miserável do Sr. Lithgow, chegando por isso a adoecer e permanecer enfermo por mais de quarenta dias. Durante este período, o Sr. Lithgow foi atendido por uma mulher negra, uma escrava, que encontrou meios de fornecê-lo com alívios ainda mais amplamente do que o turco, sendo familiarizada com a casa e a família. Ela trazia para ele alguns alimentos todos os dias e, com isso, um pouco de vinho em uma garrafa.”

Os protestantes ingleses associariam os próximos eventos a uma verdadeira intervenção divina: pois nos dias que sucederam a sentença de ser levado a Granada para ser queimado vivo, o governador deu uma festa, convidando um cavalheiro espanhol e sua comitiva de servos estrangeiros. Na ocasião, o governador havia contado a história de Lithgow, tendo inclusive admitido sua inocência, algo que lhe causava grande consternação. Disse ele ao cavalheiro, conforme Foxe narra, que ele o libertaria de bom grado e até restituiria seu dinheiro e documentos, daria uma indenização e o deixaria ir; mas, após uma inspeção nos seus escritos, encontraram muitas blasfêmias típicas da religião protestante do escocês, e que por se recusar a abjurar delas, ele foi dado à Inquisição e finalmente condenado por ela.

O relato repugnante comoveu um servo flamengo do cavalheiro, e tomado pelas imagens mentais de tortura e precarização, procurou se informar a respeito deste prisioneiro na comunidade de comerciantes ingleses de Málaga. Como Lithgow era conhecido pelo feitor dos ingleses em Málaga, tendo então concluído que o seu desaparecimento fora causado pelos eventos descritos pelo flamengo, decidiu enviar uma carta ao embaixador inglês de Madri, na corte do rei da Espanha. Tendo levado um memorial ao rei da Espanha, Felipe IV, sobre o ocorrido, o embaixador conseguiu uma procuração real que demandava do governador a soltura do escocês e sua entrega ao feitor inglês de Málaga; algo que foi prontamente obedecido, apesar de contrariar as autoridades da Inquisição Espanhola.

Foi na véspera do Domingo de Páscoa, já bem próximo do dia que seria a sua execução. Que Lithgow foi liberto. Por conta das torturas e de todas as privações do cárcere, ele já era incapaz de andar por conta própria, tendo sido carregado nas costas daquele mesmo escravo muçulmano que tanto tinha lhe ajudado. Um esquadrão de navios ingleses estacionado na região providenciou uma escolta armada para leva-lo ate à Inglaterra, sendo carregado num colchão e com a doação de roupas e de 200 reais de prata do feitor inglês de Málaga, para sua provisão. Sir Richard Hawkins, o capitão, deu um outro presente ainda mais prático: um par de pistolas. Efetivamente, Lithgow agora estava livre de seus algozes.

Sir Hawkins chegou a exigir a devolução dos documentos, anotações, bens e de todo o dinheiro que havia sido expropriado dele, mas não recebeu qualquer resposta satisfatória sobre isso. O Rei da Espanha, em seu despacho ao embaixador espanhol na Inglaterra, também havia prometido a restituição dos bens e do dinheiro de William, além de uma indenização adicional de 1000 libras de prata inglesas, uma verdadeira fortuna, a ser paga diretamente pelo governador de Málaga; uma compensação verbal que nunca se concretizaria de fato. Apesar disso, Lithgow foi recebido pelo rei Jaime, que se comoveu pela história do conterrâneo, tendo feito do mesmo um hóspede da casa real, providenciando também servos para ajudá-lo a se locomover, já que naquela altura ele não era capaz de se locomover exceto por uma cama.

William recuperou boa parte de sua condição nos anos seguintes, mas guardou sequelas de todos aqueles episódios negros: ele perdeu completamente a utilidade do seu braço esquerdo e alguns de seus ossos menores haviam sido quebrados para além de qualquer recuperação. Depois daquela experiência, Lithgow não voltaria a viajar, morrendo em 1645, após documentar todas as suas histórias de viagem. O destino tratou de separar Lithgow do seu companheiro turco e de todas as pessoas que haviam ajudado na sua sobrevivência, quem sabe o tipo de recompensa que eles podem ganho nesta vida, e na próxima ...

Foxe culpa a postura pacificista da Inglaterra no reinado do rei Jaime, assim como a influência dos espanhóis no Conselho Inglês, pelo fato da compensação nunca ter sido paga (sendo sempre “desculpada” pela embaixada espanhola, no típico “jeitinho” ibérico) e pela postura servil da Inglaterra contra os abusos de outros reis europeus.

REFERÊNCIAS:

FOXE’S BOOK OF MARTYRS. An Account of the Life and Sufferings of Mr. William Lithgow, a Native of Scotland. Disponível em: < https://www.biblestudytools.com/history/foxs-book-of-martyrs/an-account-of-the-life-and-sufferings-of-mr-william-lithgow-a-native-of-scotland.html>. Acesso em 21 de julho de 2021.