A complexidade e a riqueza da historiografia de Al-Andaluz nunca cessa em surpreender seus leitores. Mesmo após anos de estudo e divulgação, alguns detalhes até então ignorados acabam emergindo do limbo da História nos últimos anos: o saque cristão de Córdoba (1010) é decisivamente um desses eventos. Para explica-lo, precisamos retornar brevemente o assunto da fundação do Estado Omíada na Ibéria.

Como dito anteriormente noutros artigos, o golpe Abássida na capital do Império Islâmico em Damasco foi responsável pelo massacre de quase todo o clã Omíada. Abdul Rahaman I, o único sobrevivente, refugiou-se nas possessões europeias do Califado como forma de escapar da perseguição das novas potestades daquele império religioso e, ao mesmo tempo, usar a nobreza do seu sangue para construir seu próprio Estado na região; um reino territorialmente modesto e afastado o suficiente do Centro do Mundo para convencer os novos califas da Pérsia de que ele não representava qualquer ameaça política.

Até então, a península ibérica era menos que a sombra dos tempos áureos sob ocupação romana, apesar de haver discussões quanto à boa vontade dos conquistadores germânicos em preservar os cacos desse legado clássico. Sob o governo Omíada, a partir da sua capital em Córdoba o novo reino se tornou o centro do mundo ocidental na Alta Idade Média, atraindo cristãos latinizados do Norte e do Centro da Europa, assim como muçulmanos dos setores próximos do Norte da África, formando aquilo que viria a ser a maior e mais populosa cidade da Europa Ocidental; e a segunda maior de todo o continente europeu na idade Média, perdendo apenas para Constantinopla, a capital do Império Bizantino, com seus 500 mil habitantes. Já em 800 d.C. a cidade contava com 200 mil habitantes, um marco que só seria atingido por uma cidade católica – mais especificamente Paris – em 1300; para termos ideia do que este número representava, em 800 d.C. a cidade de Córdoba tinha 0,1% de toda a população global. No seu apogeu, por volta do ano 1000 d.C., Córdoba atingiu o marco de 400 mil habitantes, ultrapassando a própria Constantinopla naquela época (com uma população estimada de 150-300 mil habitantes) e se tornando a cidade mais populosa da Europa. Para os termos daquela época, Córdoba não era apenas a maior cidade do continente, era também a cidade mais sofisticada, mais bem abastecida, com mais bibliotecas, banhos públicos, escolas e mercados do continente. Naturalmente, ela também era o centro intelectual da Europa, algo que é repetido ad nauseam e é plenamente estabelecido pelo consenso acadêmico, se é que é preciso gastar mais palavras sobre esse assunto. Pelo menos um Papa, Silvestre II, foi educado em Córdoba; e tamanha era a sua inteligência que o mesmo foi imortalizado pela historiografia ocidental como “o Papa Cientista”.

Para explicar como uma cidade tão excelsa se viu imersa na situação catastrófica de 1010, precisamos levar em conta o arranjo político do Califado. Inicialmente, o Emirado de Córdoba nunca foi precisamente um Estado unificado; quando Abdul Rahman i decidiu formar o Emirado de Córdoba, os métodos utilizados para unificar os diversos “feudos” controlados por chefes muçulmanos na península incluíam desde o reconhecimento de sua linhagem nobre até uma série de guerras contra caudilhos muçulmanos que se recusavam a se submeter, durante décadas; na fronteira com os reinos cristãos, o controle omíada era, para quaisquer fins, de jure, mas não de facto. Emires e califas mais ou menos incompetentes eram capazes de fazer valer sua soberania de formas variadas: os governantes mais incompetentes, como Abdullah ibn Muhammad al-Umawi (c. 900) sequer conseguiam exercer sua autoridade para além dos muros de Córdoba. Em termos práticos, O Califado de Córdoba estava longe de ser um Estado centralizado, coeso e politicamente consistente. Mas existe ainda outro problema: conflitos internos dentro da própria família pelo poder.

Em 1010,  o quarto califa cordobes Muhammad al-Mahdi decidiu buscar ajuda dos cristãos na sua tentativa de derrubar o califa reinante, Suleiman al-Hakam. Por meio do seu apelo ao Conde de Barcelona, al-Mahdi foi beneficiado com o suporte de 9 mil mercenários de todos os condados da Catalunha; um número, diga-se de passagem, bastante considerável e razoavelmente ambicioso para a capacidade logística cristã daquela época. A ideia era que esses 9 mil mercenários se unissem a um exército de 30 mil muçulmanos entre berberes e andaluzes, dando condições para que o pretendente pudesse prestar batalha ao seu opositor.

“No fim da primavera do ano de 1010, as hostes dos condes catalães já estavam próximas de Córdoba. Em 2 de junho, os dois exércitos se encontraram ao norte da cidade, em Akabat al Bakr (hoje castelo de El Vacar), onde houve um combate violento. Apesar das baixas pesadas, o exército invasor era tão numeroso e forte que derrotou as tropas de Sulaimán (Califa de Córdoba de 1009 a 1010 e depois de 1013 a 1016), que fugiu para o sul.

Os vencedores, liderados pelo conde Ramón Borrel, entraram na capital do Califado e a saquearam durante três dias” (Ibid)

 

“As tropas catalãs, que constituíam 9.000 homens, partiram bem depressa [para Córdoba] ‘porque o exército cordobês – que fugiu para o sul depois de perder a batalha do castelo de El Vacar em Espiel – estava se reconstruindo e estavam ocupados’. Lá [em Córdoba] eles saquearam ‘tudo o que podiam carregar, o que era bastante’, especialmente o ouro por ser o mais precioso, mas ‘há referências ao fato de que eles também levaram peles caras, vestidos e tudo o que tinha de valor naquele tempo. Tamanha foi a pilhagem que ela fundamentou ‘o esplendor da Catalunha no final da Idade Média e nos anos seguintes, afetando até mesmo o preço do ouro na Europa’, diz o autor, lembrando que ‘os cronistas da época fazem menção a esses dados’”.  (ALBA, 2021)

Se a Catalunha, que na Baixa Idade Média era o principal porto do Reino de Aragão, foi diretamente influenciada pelo saque na construção de sua grandeza, estamos falando aqui de uma pilhagem de proporções gigantescas, comparáveis ao Saque de Constantinopla (1204) na Quarta Cruzada ou ao Saque dos Vândalos a Roma (455), ambos extremamente marcantes na História da Europa. E faz sentido que houvesse muito a se saquear, considerando o tamanho e a riqueza de Córdoba naquela época. Para ilustrar quão grandiosa e avançada era a cidade de Córdoba:

“... a chamada Casa de la Nieve. Na Serra de Córdoba havia neveiros, ou poços onde se conservava a neve que caía no inverno, convertendo-se em todo um negócio. ‘Era um lugar onde o povo ia para comprar neve durante todo o ano para fazer sorvetes, helados, curar enfermidades, refrescar-se ... era algo inovador’’ (Ibid).

Mas é interessante que, embora o saque tenha se situado durante uma fase de guerras civis, ele imediatamente precede o clima de caos generalizado que se estabeleceu posteriormente. Seria este um efeito colateral causado pelo colapso de Córdoba? Curiosamente, o fenômeno tem recebido tão pouca atenção que a Historiografia sequer tem, ainda, uma resposta adequada para esta pergunta. Mas isto não significa que o evento é incerto ou especulativo: ele é mencionado em fontes primárias cristãs e temos até mesmo provas físicas desse saque.

“Um deles está em Seo de Urgel (Lérida), são vasos de ouro maciço repujado que são chamados de “vasos cordobeses” e datam do século X.” (Ibid)

Um dos vasos cordobeses, saqueados pelos catalães em 1010. Curiosamente, está em péssimo estado de conservação, com pátina sobre a superfície de ouro puro.

Um dos vasos cordobeses, saqueados pelos catalães em 1010. Curiosamente, está em péssimo estado de conservação, com pátina sobre a superfície de ouro puro.

Não são claras as razões do porquê o saque não ser exatamente divulgado na historiografia espanhola, ou sequer figurar na memória catalã, fato admitido pelo próprio Jesus Sanchez Adalid, maior pesquisador do tema no momento:

“Apesar deste episódio ser sumamente interessante, ele não é conhecido pela população cordobesa, tampouco é estudado em livros. Tenho me perguntado constantemente sobre a razão dessa ocultação” (Ibid)

Ao passo que o saque cristão de Córdoba é praticamente ignorado, se dá bastante destaque aos saques berberes de Córdoba, ocorridos entre 1011 e 1013; isto é, após a investida catalã, e geralmente associados com o declínio da cidade e o caos generalizado do Califado oriundo de um novo ''fanatismo islâmico'', até o mesmo se fragmentar nos reinos Taifas. Talvez se deva perguntar se a relação atípica entre os dois episódios não tem alguma relação, especialmente considerando o péssimo legado do Fascismo Espanhol para o estudo objetivo da História Espanhola.

Bibliografia:

-DOLÇA CARALUNYA. Cuando los catalanes luchaban em Córdoba contra los morros. Disponível em: <https://www.dolcacatalunya.com/2014/12/cuando-los-catalanes-luchaban-en-cordoba-contra-los-moros/ >. Acesso em 30 de março de 2021.

-ALBA, Ángela. El saqueo de la Córdoba califal por los catalanes: uma historia recuperada por Sanchez Adalid en su nueva novela. El Dia de Córdoba. Disponível em: <https://www.eldiadecordoba.es/ocio/saqueo-Cordoba-califal-catalanes-Sanchez-Adalid-armas-luz_0_1558946545.html >. Acesso em 30 de março de 2021.

-BERMAL, Francisco Rodriguez. La frontera meridional catalana em el siglo XI: um espacio vizcondal. Universidad de Lleida, 2012.