Hoje quem vê as notícias sobre a atual situação do Afeganistão e do Oriente Médio como um todo não imagina que um dia aquele país e aquela região já foram o berço de inúmeras personalidades de grande relevância para a história, sobretudo a história islâmica.

Dentre essas famosas personalidades, poderiam ser citados grandes líderes, poetas, místicos, cientistas, guerreiros e assim por diante. Hoje em dia, lamentavelmente, a região é marcada por conflitos internos e externos, invasões de grandes potências, fugas em massa de seus habitantes nativos e assim por diante. É para fornecer uma imagem diferente do Afeganistão, ou melhor, para divulgar a sua verdadeira imagem que este artigo é confeccionado, trazendo cinco diferentes nomes que nasceram nesse país, alguns deles familiares para o leitor.

Rumi

Rumi talvez seja a figura mais conhecida da lista para um não-muçulmano ocidental devido aos seus poemas. Nascido em 30 de setembro de 1207, Jalal ad-Din Mohammed Rumi era filho de um especialista na religião islâmica, Baha ud-Din Walad, teólogo, jurista e místico.

Rumi possui origem persa, nascendo sob o território do Império Corásmio no atual Afeganistão. Contudo, Rumi viveria a maior parte de sua vida nos territórios do sultanato seljúcida de Rum.

Quando as invasões mongóis chegaram na Ásia Central por volta de 1215-1220, Rumi e sua família tiveram que se refugiar mais ao ocidente. Assim, passaram por Bagdá e se depararam com vários estudiosos e místicos sufis, e de lá foram para a região do Hijaz onde realizaram a peregrinação em Meca. Indo mais além, chegaram a passar por Damasco e outras cidades importantes do mundo islâmico medieval.

Por volta de 1228, o governante da Anatólia, Ala ud-Din Key-Qobad, após inúmeras insistências, conseguiu convencer Baha ud-Din a se mudar para seu território em Konya, atual Turquia. Conforme os anos se passaram, Rumi começou a estudar a jurisprudência da escola Hanafi do Islam sunita, e após o falecimento de seu pai em 1232, se tornou aprendiz de Sayid Burhan al-Din Muhaqqiq al Thirmidi, seu primeiro mestre. Sayid enviaria Rumi para a Madrassa Halawiya, em Alepo, na Síria, onde ele se aprofundou nos conhecimentos sobre jurisprudência Hanafi e, na volta, orientou Rumi a fazer um retiro espiritual de 40 dias.

Por 9 anos Rumi foi discípulo de Burhan al-Din no sufismo até que o mesmo viesse a falecer. Posteriormente se tornaria um jurista, emitindo fatwas, dando sermões nas mesquitas de Konya e ensinando como professor (molvi) nas madraças locais.

Em 1244 Rumi se encontraria com Shams Tabrizi, um grande mestre sufi errante da época. Esse encontro mudou a vida de Rumi para sempre, que de um jurista e professor consagrado passaria a ser um asceta. Rumi conviveu com Tabrizi por 4 anos, até que seu mestre desaparecesse misteriosamente em 1248, motivo de grande especulação: alguns dizem que foi um desaparecimento milagroso, enquanto outros afirmam que Tabrizi teria sido assassinado.

A influência de Tabrizi é muito aparente nas obras de Rumi, que chegou a escrever alguns poemas sobre seu mestre. Na verdade, seus belos poemas no geral são o motivo pelo qual Rumi se tornou muito conhecido no Ocidente, que infelizmente muitas vezes retirou o caráter islâmico de suas obras para se adequar a uma visão ocidental mais secularizada. Rumi, entretanto, é um autor puramente islâmico, grande erudito em jurisprudência Hanafi e também responsável pela criação da ordem Mevlevi dentro do sufismo.

Para tornar os poemas de Rumi agradáveis para o público ocidental, toda a essência islâmica dos seus textos foi retirada, através de traduções propositalmente malfeitas e de fragmentações dos manuscritos, o que retirou o sentido da mensagem original dos versos. Atualmente, muitos livros com poemas de Jalal ad Din que estão em circulação não foram traduzidos dos textos originais em idioma persa, mas resgatados de livros ingleses da era vitoriana e, por isso, algumas frases atribuídas ao poeta sequer foram ditas por ele. Algumas obras que fazem referência direta ao amor de Rumi por Allah foram, conforme as acusações, modificadas para que se tornasse uma espécie de amor romântico genérico, e não da criatura ao seu Criador divino.

No ocidente, Rumi dificilmente é descrito como muçulmano, e sim como um santo, um mestre espiritual ou, no máximo, como um sufi. O próprio sufismo costuma ser afastado das ciências islâmicas por muitos ocidentais, como se fosse algo alheio ao Islam e não parte da essência do mesmo, motivo pelo qual muitas vezes o termo “sufi” ou “sufismo” não remete a muitos leitores como algo característico do Islam, não sendo raro encontrar não-muçulmanos que afirmem que o sufismo é visto como algo herético dentro da religião devido a essas influências.

Rumi, porém, foi puramente muçulmano. Foi, em verdade, um dos maiores exemplos dentro do Islam que pode se ter notícia até os dias de hoje, sendo o poeta mais vendido nos EUA da atualidade.

Imam Abu Hanifa

Como dito anteriormente sobre Rumi, o mesmo foi um renomado jurista da escola de jurisprudência sunita Hanafi. Porém, assim como a ordem sufi Mevlevi teve sua origem com alguém (no caso o próprio Rumi), a escola Hanafi também teria a sua origem com outra grande personalidade da história islâmica, ninguém menos que o Imam Abu Hanifa, outro afegão a ser biografado nesse breve texto.

Abu Hanifa al-Numan b. Thabit b. Zuta b. Marzuban, também conhecido somente como Abu Hanifa, nasceu por volta de 699 em Kufa, no Iraque, em uma família de origem persa. Abu Hanifa estudaria ali mesmo em Kufa, aprendendo cada vez mais sobre as ciências islâmicas e se tornando uma autoridade sobre as questões legais concernentes à religião.

Em 763, o califa abássida al-Mansur ofereceria ao Imam Abu Hanifa o cargo de juiz chefe do Estado Abássida, cargo que seria recusado pelo Imam que prezava pela sua independência intelectual. Al-Mansur, porém, se enfureceu com a recusa de Abu Hanifa, o que gerou um desentendimento entre os dois e a eventual prisão do Imam, que foi torturado e negado alimentos no cárcere. O grande jurista continuaria ensinando mesmo dentro da prisão, até que falecesse em 767.

Abu Hanifa seria lembrado não só pelas suas inúmeras qualidades pessoais que ficaram para o registro da história, mas principalmente pela fundação da escola de jurisprudência que hoje leva o seu nome. As fontes das quais Abu Hanifa derivou a lei islâmica, em ordem de importância e preferência, são: o Alcorão, as narrações autênticas do profeta Muhammad (hadith), consenso da comunidade muçulmana (ijma), raciocínio analógico (qiyas), discrição jurídica (istihsan) e os costumes da população local que promulga (urf). O desenvolvimento da razão analógica e o escopo e os limites pelos quais ela pode ser usada são reconhecidos pela maioria dos juristas muçulmanos. Embora provavelmente tenha sido usada por alguns de seus professores, Abu Hanifa é considerado pelos estudiosos modernos como o primeiro a adotar e instituir formalmente a razão analógica como parte da lei islâmica.

Seus estudantes também seriam lembrados, como Muhammad al-Shaybani, provavelmente o pai do direito internacional, que foi professor de ninguém menos que o Imam al-Shafi, fundador de outra escola de jurisprudência sunita, a escola Shafi.

Shah Abbas I

O próximo grande nome a nascer na região do atual Afeganistão é o Shah Abbas I, também conhecido como Abbas, o Grande, o quinto governante do Império Safávida do Iran.

Dentre as principais diferenças entre os biografados anteriores, pode-se citar o fato de que Abbas foi um muçulmano xiita, assim como não foi uma pessoa reconhecida pela sua espiritualidade ascética ou ainda pelo seu saber de jurisprudência, mas sim pela sua exímia liderança.

Abbas chegaria ao trono do Império Safávida em uma época conturbada, tendo como seu principal inimigo nada menos que o próprio Império Otomano. O novo governante persa, porém, não seria um oponente fácil, mas sim um dos maiores estrategistas de seu tempo. Abbas criaria uma casta militar muito semelhante ao que seus inimigos Otomanos possuíam com os Janízaros, porém iriam além de ser uma classe guerreira dentro do Estado Safávida, mas também atuando na administração do Império e mitigando a influência de outras classes guerreiras mais antigas, como os Qizilbash, outrora responsáveis pela ascensão do Shah Ismail I e a fundação do próprio Império Safávida.

Outro marco muito importante na lendária administração de Abbas no Império Safávida foi a mudança da capital para Isfahan por volta de 1597-98, juntamente com seus grandes investimentos em arquitetura, artes e comércio.

Uma das características do governo de Abbas I foi a sua grande tolerância com as comunidades cristãs locais, inclusive permitindo a construção de igrejas e tolerando o trabalho de missionários que procuravam expandir a fé cristã. Contudo, muito embora fosse tolerante com os cristãos, um dos inimigos famosos de Abbas foi justamente Portugal. Os portugueses haviam se estabelecido no Golfo Pérsico no século XVI, e em 1602 o exército iraniano sob o comando do Imam-Quli Khan conseguiu expulsar os portugueses do Bahrein. Posteriormente em 1622, Abbas também conseguiria reconquistar o estreito de Ormuz com a ajuda de ninguém menos que os ingleses que enviaram quatro navios.

O Shah viria a morrer em 1629, sendo um dos maiores governantes do Império Safávida, deixando um legado praticamente impossível de ser superado ou até mesmo equiparado pelos seus sucessores. Em pouco menos de um século após a sua morte em 1722 o grande império xiita veria também a sua queda.

Jamal al-Din Afghani 

A outra personalidade da história afegã de grande importância viveu mais próxima de nossos tempos do que os demais. Seu nome era Sayyid Jamal al-Din al-Afghani, conhecido também apenas por al-Afghani.

Nasceu em 1839 no Afeganistão e foi educado primeiramente em casa e depois levado por seu pai para estudos complementares em Qazvin, em Teerã e, finalmente, enquanto ele ainda era um jovem, para as cidades-santuários xiitas no atual Iraque.

Al-Afghani é conhecido tanto por seu ativismo político quanto pela criação do que foi cunhado de “modernismo islâmico”, uma tentativa de alguns grupos muçulmanos em responder aos desafios da sociedade Ocidental e reconciliar a fé islâmica com valores modernos “tipicamente ocidentais”, como a democracia, direitos civis, a ideia de progresso e assim por diante, sendo al-Afghani um dos maiores responsáveis pelo seu surgimento.  O modernismo islâmico de al-Afghani, contudo, não deve ser confundido com uma espécie de liberalismo, mas sim algo mais próximo de outra corrente modernista: o salafismo. Porém outra observação deve ser feita: muito embora al-Afghani se denominasse salafi, o mesmo não deve ser confundido com o que hoje entendemos por salafismo, que possui uma certa ligação com o wahabismo.

Era esperado que al-Afghani viesse a ter algum envolvimento político, não sendo por acaso que tenha começado sua carreira justamente na Índia Britânica. Por conta disso, teria viajado pelo mundo islâmico para locais feito Iraque, Turquia, Egito etc., e mantendo ligações com militantes dessas localidades contra a presença estrangeira nos países muçulmanos.

O ponto crucial de sua ideologia era a unidade pan-islâmica e que a única maneira de superar a interferência ocidental no mundo islâmico era através de um esforço conjunto. Algo interessante é que na defesa de sua ideologia contrária à interferência ocidental, al-Afghani sustentava a posição de que não somente muçulmanos deveriam se aliar, mas os hindus também deveriam fazer parte dessa luta contra o invasor, que era um inimigo em comum dessas terras.

Em 1881 al-Afghani publicaria uma série de obras polemistas intitulada de Al-Radd 'ala al-Dahriyyi, ou Refutação aos Materialistas, onde propunha refutar uma série de afirmações oriundas do Ocidente, procurando também agitar o movimento pan-islâmico em reação às investidas ocidentais. Fato curioso é que essa obra se encontra uma tentativa de refutar a Origem das Espécies de Charles Darwin, porém al-Afghani foi muito criticado por essa tentativa devido aos erros grosseiros que cometeu sobre a teoria darwinista. Posteriormente al-Afghani viria a aceitar certos aspectos da teoria da evolução, afirmando ainda que pensadores muçulmanos já haviam proposto teorias semelhantes muito antes de Darwin, o que não deixa de ser uma verdade histórica.

Al-Afghani faleceria em 1897 aos 58 anos vítima de câncer na mandíbula, deixando para trás um legado interessante na região enquanto resistência ao imperialismo ocidental, principalmente britânico.

Ibrahim ibn Adham 

Ibrahim ibn Adham, também conhecido somente por Ibrahim Balkhi, foi um dos grandes santos sufis ascetas da história islâmica. Conforme as tradições sufis, Ibrahim teria nascido no atual Afeganistão, enquanto sua família era oriunda de Kufa, no Iraque. Alguns escritores traçaram sua linhagem até Abdullah, o irmão de Jafar al-Sadiq, filho de Muhammad al-Baqir, e o neto de Husayn ibn Ali, sendo essa a árvore genealógica mais famosa de seus ancestrais sufi, com a maioria dos autores a traçando até Omar bin al-Khattab, companheiro do profeta Muhammad e segundo califa do Islam.

Ibrahim nasceu provavelmente por volta de 730 no Afeganistão. Sucessor ao trono, o mesmo abdicou da realeza para viver a vida de asceta. Tendo migrado por volta de 750, ele escolheu viver o resto de sua vida de maneira semi-nômade, muitas vezes viajando mais ao sul para regiões feito Gaza. Muito embora tenha optado pelo ascetismo, Ibrahim ibn Adham não era medicante igual muitos outros ascetas da história, optando assim por trabalhar para obter seu sustento, por vezes chegando a moer milho, cuidar de pomares e assim por diante. É dito também que o mesmo teria também participado de expedições militares.

O primeiro mestre espiritual de Ibrahim não foi outro sufi, como muitos poderiam imaginar, mas sim um monge cristão chamado Simeão. A historicidade de alguns aspectos da vida de Ibrahim é muito obscura, por vezes contendo fatos envoltos de lendas ou semi-históricos, porém sem dúvida foi um dos maiores santos e ascetas sufis da história islâmica, ajudando a influenciar o desenvolvimento do Sufismo e sendo elogiado pelo nosso primeiro biografado, Rumi, que contou sua história em sua obra, o Masnawi.

É dito ainda que Ibrahim teria tido um encontro místico com ninguém menos que Khidr, figura mencionada no próprio Alcorão e referência pelo seu conhecimento místico, que chegou inclusive a responder questões do próprio profeta Moisés.

Como pode ser visto através dessas breves biografias, o Afeganistão abriga e abrigou muito mais do que contendas militares, grupos extremistas ou coisas do gênero. Na realidade, o Afeganistão assim como a Ásia Central como um todo sempre foram palco para o surgimento de personalidades brilhantes nas mais diversas áreas. Hoje marcado pela violência e radicalismo, o mesmo Afeganistão já foi o berço e o lar de inúmeros santos e demais pessoas virtuosas que deixaram um legado que transcende todos os problemas que o país hoje enfrenta.

REFERÊNCIAS

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CHITTICK, William C. The Sufi Path of Love: The Spiritual Teachings of Rumi. University of New York Press. 1984.

BLACK, Antony. The History of Islamic Political Thought: From the Prophet to the Present. Edinburgh University Press. 2011.

OSMAN, Nadda. Five people from Afghanistan who shaped Middle Eastern history. Middle East Eye. 2021.                                                 

KUNG, Hans. Islam: Past, Present and Future. OneWorld. 2007.                                                                                                                 

LEAMAN, Oliver: The Quran: An Encyclopedia. Taylor & Francis. 2006.