Um dos meus livros sobre a cultura do Gharb al-Andalus1 leva o título emblemático de O Meu Coração é Árabe. Este título, que era o de uma canção árabe – Qalbî Arabî – que os Portugueses do Renascimento Europeu ainda cantavam, séculos depois de finda a conquista cristã, tem o valor mítico de uma intercultura do sentimento. Qalb/coração é, para os muçulmanos, o órgão simbólico do conhecimento espiritual, aquele onde desabrocha a rosa mística. Afirmar a arabidade do coração é assumir, no mais profundo do ser, o fascínio da civilização do Crescente. O testemunho de Gil Vicente, ao patentear a popularidade dessa canção, assume um significado antropológico que a abordagem das raízes da cultura portuguesa confirma de forma indiscutível. Poderemos dizer que a arabidade faz parte do coração dos portugueses?

Numa época, como a nossa, em que, para empregar uma expressão de Jung, a “coincidência dos opostos” é aceita como forma de ler a realidade, partindo da consideração das polaridades, estamos talvez, como nunca, em posição de entender o mecanismo Eu/Outro, ou seja, Cristão/Muçulmano, mecanismo esse que comportava atracção/repulsão e fascínio/receio.

Os proto-portugueses são o cadinho humano onde se realiza uma complexa alquimia étnica, cultural e espiritual, na qual o elemento romano-árabe é factor decisivo da matriz mediterrânica. A primeira fase deste processo completase com a incorporação de todo o território muçulmano e respectivos habitantes. É só nesse momento que a polaridade se completa e Portugal começa a tomar forma, enquanto nação. Os primeiros reis portugueses construíram um ordenamento jurídico que deu expressão a esta natureza compósita de país em maturação, mimetizando a tolerância islâmica, através de institutos jurídicos como o da Dhima, ao protegerem os direitos das suas minorias através das garantias dadas em Cartas de Foral e Ordenações.

A fascinação do Islão, sentida pelos proto-portugueses e primeiros portugueses, era uma inevitabilidade, dada a superioridade e sofisticação da cultura árabe, face à fruste rudeza dos povos do Norte da Europa na Alta Idade Média. Por isso, desde tempos recuados, os árabes estão ligados, na memória do Povo Português, ao maravilhoso, ao belo e ao requintado. Para as gentes pobres da Idade Média, os protagonistas da brilhante civilização do al-Andalus, terra das ciências e das artes, o árabe era o Outro que complementava o Eu. De tal maneira, que as lendas árabes constituem uma parte significativa do folclore português. Essas lendas são, invariavelmente, histórias de amor entre cristãos e muçulmanas ou vice-versa, em que eles são vítimas de um tempo intolerante para com os sentimentos dos amantes separados.

Estas polaridades sociais respeitadas, como dissemos, pelos primeiros reis de Portugal, vieram a ser dramaticamente postas em causa com a submissão da Coroa Portuguesa a interesses de ordem política. Num seguidismo das estratégias de Castela, foi utilizada a arma da religião como pretexto para uma brutal uniformização. O Islão foi banido do território português pela expulsão dos crentes ou pela conversão forçada. Tais cicatrizes dolorosas só recentemente começaram a sarar, com o renascimento da liberdade religiosa a permitir a abertura de mesquitas, e com descendentes dos espoliados da sua fé a reencontrarem uma herança perdida. Esse legado vem, não apenas do Gharb al-Andalus, mas também dos tesouros que os colonizadores e navegadores portugueses trouxeram do Maghreb2, do Mashreq3 e do Oriente longínquo, onde contactaram reiteradamente com a Civilização Muçulmana.

Dessas navegações adquirimos, não só apenas especiarias e pedras preciosas, mas ainda também convívios, palavras e costumes. Entre guerras e crueldades houve também amizades e alianças. Se, num passe de mágica, fosse possível apagar, de Portugal actual, todos os vestígios do legado árabe, a nível étnico e cultural, a paisagem humana, física e civilizacional que contemplaríamos seria inteiramente diversa. Tornar-nos-íamos, possivelmente, louros e não morenos como habitualmente somos. Deixaríamos de falar o latim arabizado que é o português, e perderíamos mais de mil palavras do nosso léxico. Muitas das nossas povoações deixariam de existir ou mudariam de nome.

Não saberíamos como nomear a maior parte do que comemos ou cultivamos. Como chamaríamos o jasmim, a laranja, a tâmara e a romã? Que nome daríamos ao alguidar, ao alfaiate, ao alaúde e ao alferes? A nossa poesia – o mais alto valor do génio português – sem o contributo árabe, não teria visto nascer, provavelmente, as cantigas trovadorescas. E sem o sentimento de saudade, herdado do nasib4 da qasida5 árabe, de raiz beduína, que seria feito do nosso lirismo? Que Camões seria possível? A este respeito, e bem, Fernando Pessoa afirma expressamente que nós somos um povo romano-árabe porque “foram os árabes que nos educaram”.

E Antero de Quental, não o esqueçamos, filia a nossa decadência na expulsão dos árabes. Nesse cenário de imaginação os núcleos históricos de muitas das nossas cidades perderiam o encanto do seu traçado labiríntico. Pensemos em Lisboa, sem Alfama nem Mouraria. Pensemos num Alentejo, sem a vertigem branca da cal das suas casas, e num Algarve sem açoteias6 nem chaminés, minúsculos minaretes sobre os telhados. Que artesanato teríamos? Sem tapetes de Arraiolos ou de Almalaguês, sem esteiras, sem filigranas, e sem azulejos. Que alcofas7? Que almotolias8? E a guitarra portuguesa, que seria dela, órfã de seu pai, o alaúde? E os adufes, e os pandeiros e as gaitas?

Estava escrito (maktub!) que sem destino não há fado e o nosso destino era cantá-lo e dançar mouriscadas9 e fandangos10. Os nossos ciganos também entoam cante jondo11 e no Alentejo, sob um manto polifónico, esconde-se a nostalgia dolente do cante herdada dos beduínos e da sulamiyya12 dos sufis13. Sem a Ciência Árabe – Medicina, Matemática, Astronomia, Geografia, Física e Botânica – que Renascimento teria sido esse? Que Filosofia teríamos tido, se os muçulmanos não tivessem preservado a maior parte do legado Greco-Latino desenvolvendo inovadoras direcções? Que Mística teria nascido aqui, sem Al-Urianî 14, Al-Martulî 15 ou Ibn Qasî 16?

Como é que um pequeno povo, como o nosso, teria chegado aos quatro cantos da Terra sem o auxílio das ciências de navegação árabes? Até os aviamentos que levávamos para bordo eram arrancados ao solo através de práticas agrícolas – ainda hoje usadas – trazidas pelos muçulmanos. Nesse aspecto, é sempre de lembrar, pelo que ilustra quanto ao carácter precursor das navegações luso-árabes, a viagem dos chamados Oito Aventureiros que, no século IX, em tempos do Califado de Córdova, partiram de Lisboa, por mar, tendo alcançado as Ilhas Canárias e depois o Marrocos.

Voltando à ficção histórica, que comida teríamos? Mais ou menos disfarçados, os guisados, cozidos e doces de grande parte da nossa cozinha tradicional não são senão receitas filhas de requintes introduzidos à mesa por Ziryab17 de Bagdade. O Gharb al-Andalus, território que grosso modo é hoje o de Portugal, participou da glória e do drama do Al-andalus. Al-Andalus é, para os Árabes, uma espécie da paraíso perdido, como o rei Faiçal da Arábia Saudita costumava sublinhar. Também para nós, Portugueses, o Gharb al-Andalus tem o valor de um símbolo: de sabedoria, de beleza e de tolerância. Fomos desapossados, durante séculos, dessa realidade-mito fundadora através da intransigência política e religiosa. A polaridade foi desfigurada ao retratarem-nos os Árabes e o Islão como parte do mundo do Outro, escondendo-nos que o Outro, afinal, somos Nós. Nestes tempos, em que surpreendentemente a Ciência, aproximando-se da Metafísica, quebrou as amarras do racionalismo aristotélico e cartesiano, urge afastar ridículos eurocentrismos ou quaisquer outros centrismos porque, em boa verdade, o centro está em toda a parte.

Devemos, como portugueses, e para utilizar uma expressão de García Gómez, ser capazes de “digerir a nossa História”, ao encontro dos factos e, também, dos mitos, porque eles são suporte das civilizações. Charles de Gaulle recebendo um dia um embaixador da Síria disse-lhe: “conheço-vos as areias e os sonhos”. É essa a percepção visionária que esperamos dos governantes, num momento da História em que os irmãos árabes precisam da nossa solidariedade. Eles são mensageiros de uma parte do nosso passado.

Deixaram-nos, entre tantas dádivas, a laranja perfumada (fruto e nome) e de nós levaram Bortuqal para designar o mesmo pomo. Parece uma justa retribuição neste comércio de afectos. Há um poema de amor de al-Mu’tamid Ibn ’Abbâd, que verti em português, e que é, talvez, o maior dom do Gharb al-Andalus, à literatura árabe, já que tais versos do célebre rei-poeta de Portugal ornamentam As Mil e Uma Noites (Alf Leila wa Leila).

A amada, neste contexto, bem pode simbolizar a cultura árabe a cuja beleza a cultura portuguesa, afinal, ainda rescende e que não pode ser ocultada. Diz ele:

Por receio de quem espia
com muita inveja a roer
ela n
ã
o veio nesse dia,
p’ra assim tra
í
da n
ã
o ser
p’la luz que do rosto esplende,
p’las j
ó
ias a tilintar,
e pelo perfume de
â
mbar
a que o corpo lhe rescende:
é
que ao rosto, com o manto,
tap
á
-lo ‘inda poderia,
e as j
ó
ias, entretanto,
facilmente as tirarwia,
mas a fragr
â
ncia do encanto
p’ra ocult
á
-la, que faria?