Não é a primeira vez que explicamos que a relação entre potentados cristãos e muçulmanos medievais na Península Ibérica está bem distante da narrativa dicotômica, moralmente imaculada e puramente religiosa proposta pelos veículos políticos convencionais, pela mídia de massa e por tudo aquilo que bebe diretamente da já academicamente desacreditada narrativa histórica propagada pelo Fascismo Espanhol do século passado. Ainda assim, o ceticismo indevido de certos indivíduos e o próprio interesse genuíno pela História à luz dos fatos nos move cada vez mais a descobrir ou divulgar episódios e eventos que sepultam devidamente qualquer lastro de dúvida a esse respeito.

Este é precisamente o caso do nosso episódio: a Batalha de Cabra (1079), um curioso confronto entre dois principados andalusos travado por exércitos cristãos dos dois lados, com destaque para ninguém menos que o principal e mais controverso herói da Reconquista: Rodrigo Diaz de Vivar, mais conhecido como El Cid ou El Campeador.

Para explicar como chegamos neste exótico arranjo, precisamos falar da Desintegração do Califado de Córdoba. Como descrito anteriormente em um punhado de circunstâncias, o Emirado de Córdoba – posteriormente elevado a Califado – nunca foi exatamente um Estado coeso, uma vez que foi formado de uma forma razoavelmente artificial e que dependia da força e habilidade da sua potestade máxima, assentada em Córdoba, para fazer valer sua autoridade sobre os diversos governantes intermediários espalhados pela península. Podem se assinalar quatro grandes fatores na sua queda: I) emires e califas tornavam-se cada vez mais incompetentes; II) disputas pelo trono de Córdoba tornavam-se mais frequentes e desgastantes; III) governantes locais tornavam-se mais autônomos, rebeldes ou ousados; IV) os reinos cristãos ao norte começaram a se “atualizar” e diminuíram a lacuna política, bélica e civilizativa que anteriormente os tornava incapazes de empreender guerras bem sucedidas contra o gigantesco reino islâmico do sul.

Assim, já no início do século XI, províncias do Califado, uma a uma, começaram a se desprender no meio do completo caos político da Espanha Islâmica, totalizando, ao todo, 33 principados, ou Taifas, que eram governadas por clãs islâmicos de diferentes etnias, entre ibéricos, árabes, berberes e até eslavos. À esta altura, os Estados Cristãos do Norte já começavam a traçar sua complexa cadeia de taifas clientes e inimigas; mas, não necessariamente, de uma forma ordenada entre si.

Uma das formas de dominação que os reinos cristãos estabeleceram sobre certas taifas foi o sistema de “parias”, que do castelhano traduz-se simplesmente como pagamento ou saldo. Assim como a contraditória proteção de milícias criminosas no Rio de Janeiro, as parias eram basicamente um imposto que uma taifa pagava a um reino cristão para que este a protegesse do próprio. E, assim como as taxas de milícias cariocas, a quantidade de tributo beirava à valores exorbitantes; pelo menos, para a realidade de um reino cristão: apesar de onerosos, a riqueza e desenvolvimento das taifas andalusas, mesmo no cenário fragmentado e agitado desse período, era tamanha que era, de fato, possível pagar tais tributos sem cair em uma crise fiscal. Mas as parias não apenas impediam que uma taifa fosse invadida e conquistada pelo reino cristão ao qual ela prestava tributo, ela também impedia que outros reinos cristãos – e até outras taifas – pudessem conquistar o principado tributário em questão, uma vez que o reino cristão ao qual se pagava tributo passava a se responsabilizar pela proteção do tributário. Em certo sentido, considerado essa relação de vassalos tributários já no século XI, poderíamos até mesmo questionar se a “Reconquista” de fato é algo que se estende até o ano de 1492; se é que faz sentido falar em outro conceito artificial e criticado como este.

É neste contexto que, no ano de 1079, o poderoso monarca Afonso “el Bravo” de Leão (rei de Leão, Galícia e Castela, intitulado Imperador de Toda a Espanha) envia delegações armadas distintas a duas taifas, Granada e Sevilha, com a intenção de recolher as parias. Enquanto a delegação de Sevilha era encabeçada por El Cid, a delegação de Granada era encabeçada pelo conde García Ordònez. O que geralmente seria um procedimento de rotina se degenerou numa guerra quando o rei Abdullah ibn Buluggin, rei da taifa de Granada, invadiu a taifa de Sevilha do rei al-Mutamid. Tanto o exército invasor de Granada quanto o exército defensor de Sevilha foram auxiliados pelas delegações armadas designadas, lançando luz sobre o curioso arranjo geopolítico de Estados Cristãos e Muçulmanos nesta época.

“O rei de Granada al-Muzaffar (Abdullah), aproveitando a presença dos castelhanos, pede sua ajuda para lutar contra o rei de Sevilha, ao que os cristãos concordam, cada um trazendo sua mesnada. Ao ouvir a notícia, Rodrigo Díaz envia uma carta ao rei de Granada e às forças castelhanas para não avançar na guerra contra al-Mutamid ou invadir seu reino (El Cid, como beneficiário dos párias, foi obrigado a prestar defesa e proteção do rei de Sevilha); mas a advertência do Campeador provocou chacota, de modo que, confiantes de sua superioridade numérica, as tropas mouriscas e cristãs avançaram até chegar a Cabra. Ali ocorreu um duro confronto.” (CABELLO, 2019)

Ambos os exércitos foram comandados por cristãos, sendo o de Sevilha comandado por El Cid e o de Granada por García Ordonez. O combate que se seguiu resultou numa vitória decisiva para a taifa de Sevilha e na captura de todos os principais nobres cristãos do exército de ibn Buluggin. Contudo, por força do espírito cavalheiresco e cristão, curiosamente atípico para a própria Idade Média, El Cid libertaria todos os cavaleiros e nobres cristãos ao terceiro dia, sem lhes cobrar resgate. Conforme sintetiza a Historia Roderici:

“O exército do rei de Granada sofreu um tremendo massacre de maometanos e cristãos, até que estes fugiram de Rodrigo Díaz, derrotados e envergonhados. Nesta batalha foram capturados o conde García Ordóñez, Lope Sánchez e Diego Pérez com muitos de seus soldados. Obtida a vitória, Rodrigo Díaz os manteve cativos por três dias; então ele os despojou de suas tendas e outros pertences e permitiu que partissem livremente".

Além da vitória moral sobre seu antigo rival na corte, Vivar foi recebido pelo rei muçulmano de Sevilha debaixo de honras e muitos presentes, conforme relata a própria Historia Roderici. Diga-se de passagem, El Cid, o tradicional cognome De Vivar, é uma castelhanização do título dado pelos próprios muçulmanos ao herói de guerra: al-saiyd, ou ‘’senhor’’.

“Paralelamente ao retorno das tropas derrotadas que voltaram de mãos vazias à corte leonesa, El Cid e seu exército marcharam com as parias coletadas e uma multidão de presentes de gratidão do rei al-Mutamid. Sob a mesma bandeira e com o apoio dos muçulmanos, as duas embaixadas sob o comando de Afonso VI se enfrentaram, mas o que surpreende foi a postura do rei ao saber da batalha ocorrida entre seus homens: ele não fez nada. Rodrigo, vitorioso da batalha, voltou a Sevilha, onde al-Mutamid deu-lhe as párias para o rei Alfonso, aos quais acrescentou muitos presentes e presentes que El Campeador trouxe para seu rei.”

No fim, o complexo mapa de alianças e guerras da península ibérica confirma não só a ignorância do discurso dicotômico, como prova até mesmo como cristãos e muçulmanos colocavam seus compromissos de honra e dever aos seus aliados acima dos seus próprios alinhamentos religiosos. Que curioso, então, que um rei muçulmano honre um cavaleiro cristão por proteger seu reino do ataque de outro reino muçulmano comandado por um outro cavaleiro cristãos. O que pareceria um delírio secularista e ecumênico vindo de algum livro atual de fantasia é, na verdade, história do século XI.

Bibliografia:

FRUTOS, Alberto M. CHICO, Ángel E. O Carmen Campidoctoris y la matéria cidiana. Madri: Sociedad Estatal Espana Nuevo Milenio, 2001, p. 52-63.

CHAYTOR, John H. A History of Aragon and Catalonia. Cap. 3: The Reconquest. Londres: Methuan, 1933, p. 39-40.

DIEZ, Gonzalo M. El Cid Histórico. Booklet, 2001.

CABELLO, Antonio S. 940 años de la batalla de Cabra ganada por Rodrigo Díaz de Vivar (Lectura dramática de fragmentos del Poema de Mío Cid). La Opinión, 2019. Disponível em: http://www.laopiniondecabra.com/ampliar.php?sec=actualidad&sub=noticias&art=6203&fbclid=IwAR2HBs2FVCYDoiIFJNajObtyEFhg7f8AmHqOc6noC2jjAD2ejXu7_QHH-QU. Acesso em 7 de abril de 2021.