Texto de: Pedro Gaião

As polêmicas envolvendo a Basílica de Santa Sofia parecem transcender os séculos. Fundada no século VI, a jóia do imperador Justiniano ostentou o título de maior catedral do mundo por praticamente mil anos, até a Catedral de Sevilha, finalizada em 1520, reivindicar tal título.

Durante esse milênio de existência extravagante, a Basílica sofreu várias mudanças, exercidas ao gosto do regime religioso vigente. Poderíamos citar a desfiguração zelosa das suas imagens, promovida pelos iconoclastas bizantinos. Ou a vergonhosa profanação de seu espaço no Saque de Constantinopla (1204), que precedeu a subsequente latinização do templo. Por mais de meio século, a partir daí, tanto a Catedral como seu Patriarcado foram expropriados pelas forças ligadas ao Papa, com o Catolicismo Romano e o rito latino imposto em ambos.

Todos estes casos, porém, se referem a conflitos entre religiões cristãs: teologias e igrejas, entre seus cismas e heresias. A Conquista Otomana (1453), que converteu a basílica numa mesquita, parece ter feito destas apenas um amontoado de disputas fúteis.

E embora meu papel aqui não seja produzir juízos de valor sobre a medida recente que reverteu o status secular da dita Basílica, o fato é que tal decisão revigorou um debate bastante conhecido no meio cristão: que a “Igreja Católica”, seja no seu sentido romano ou ortodoxo, sempre foi atacada injustamente com expropriações por seus inimigos, dos quais os muçulmanos exercem bastante proeminência.

A narrativa também tem ainda um outro propósito, mas não menos importante: a Igreja e Fé Verdadeira seriam alvo de perseguição, conforme alertado por Cristo e pelas Sagradas Escrituras. Desta forma, muito além de queixas e reclamações, a questão das expropriações também tem finalidade apologética.

Mas não pense você que isto é um debate sobre Islã. Trata-se, mais profundamente, de um debate de cosmovisão sectária e particularista, onde uma determinada instituição seria unilateralmente agredida por todos os tipos de inimigos, sejam eles internos, como protestantes e outros hereges, ou por externos, como maometanos e pagãos.

Mas o que essa narrativa ignora, porém, é que desde a ascensão de Constantino os cristãos nunca se opuseram à expropriação de determinados templos pagãos sob Constantino, e mais tarde com a expropriação de todos os templos do Império Romano. E aqui não há engano: os católicos e ortodoxos modernos, como um todo, não se arrependem de fazê-lo, por nenhuma razão. Muito pelo contrário, tal ato é visto como um dever divino:

“O imperador Teodósio e o Santo Príncipe Vladimir, Igual-aos-Apóstolos, usaram toda sua autoridade como governantes para destruir templos pagãos. É verdade que alguns dos santos quebraram ídolos de ouro para distribuir aos pobres, mas eles são uma minoria: o exemplo mais lembrado sendo S. Teodoro Stratelates. Muitos santos que destruíram ídolos não o fizeram para especificamente alimentar os pobres, preferindo, ao invés disto, destruir completamente os ídolos. Muitos dos santos que destruíram ídolos o fizeram de maneira muito pública: o Mártir Polyeuctus esmagou os ídolos durante uma procissão pública! E em sua destruição, os santos não deixaram de desprezar abertamente esses “deuses” pagãos, como fez o Hieromártir Blaise. Portanto, não é a discrição que separa os santos dos iconoclastas, pois estes últimos também conspicuamente destruíram imagens.

[….]

Isso, portanto, deixa uma diferença entre os iconoclastas e os santos que destruíram ídolos, a única diferença que efetivamente separa todo iconoclasta de todo santo. Do ponto de vista ortodoxo, o pecado dos iconoclastas foi que eles destruíram, desonraram e contaminaram imagens do verdadeiro Deus e Salvador, Jesus Cristo. Os santos são celebrados por fazer exatamente o mesmo com imagens de falsos deuses. A diferença está no sujeito, ou protótipo, representado na imagem.” [1]

Este discurso, nu e cru na sua visão extremamente particular do que é belo e moral, e daquilo que é intolerante contra a “minha religião”, é simplesmente resguardado a nichos específicos: ambientes com público-leitor que tem a mesma religião e é predisposto a concordar com este tipo de atitudes, desde destruição de patrimônio religioso alheio até morticínios de indivíduos de outras religiões.

Você não verá páginas militantes de apologética católica falando sobre como a Igreja condenou a tese de Lutero contra a queima de hereges, já em sites internos para militantes católicos

“A bula Exsurge Domine, do Papa São Leão X, ao condenar os erros do heresiarca Martinho Lutero […], listou a seguinte proposição que, entre outros erros,‘são ou heréticos, falsos, escandalosos, ou ofensivos ao ouvidos piedosos, assim como sedutores das mentes simples, originando-se de falsos intérpretes da fé que em sua orgulhosa curiosidade almejam a glória do mundo, e contrários ao ensinamento dos Apóstolos, desejam ser mais sábios do que poderiam ser’ : ‘É contra o desejo do Espírito Santo que heréticos sejam queimados.’” [2]

Faz sentido querer ocultar dos neófitos e dos curiosos de outras religiões que a Igreja ensina, tanto por um suposto ensino apostólico quanto por desejo da Santíssima Trindade, que a religião do amor deve queimar hereges na fogueira, que é correto destruir propriedade dos pagãos, instituir censura ou que o Estado deve proibir a liberdade de Consciência para outras religiões que não a católica (Mirari Vos de 1838) [3]. Simplesmente porque a apologética mais tradicional nestes meios “cristãos’ é a apologética das máscaras, onde os projetos de poder e de controle social dignos de um Reich Nazista são ocultados em favor de externalidades bonitas, de esmolas ou do legado civilizacional.

É uma hipocrisia enorme, diante de tudo isto, querer acusar o proselitismo islâmico de subversão social, projetos de poder e prospecção de dominação; na verdade o pior dos Califas dificilmente faria metade do que um Rei espanhol ou um santo contrarreformista teria defendido.

O discurso de patrimônio cultural e de direito religioso vale apenas para a religião deles. Veja os casos célebres dos maiores templos pagãos da religião clássica. O Pantheon de Roma, exemplar da mais sofisticada arquitetura religiosa romana, foi convertida em “Basílica de Santa Maria”. Suas ricas estátuas de mármore foram sumariamente destruídas ou vandalizadas por cristãos, causando uma perda inestimável de patrimônio histórico. Nunca se foi questionado a validade de tal ato; afinal, pela doutrina cristã, toda imagem de escultura de um ídolo merece ser destruída.

“O Triunfo da Fé Cristā” de Tommaso Laureti, 1585. A pintura mostra um crucifixo posto num altar onde uma refinada estátua de mármore de uma divindade pagã costumava ficar.

O argumento de preservação de patrimônio histórico aqui não possuir qualquer valor. E não tem valor porque é um argumento hipócrita. De São Bonifácio à Carlos Magno, o iconoclasmo contra outras crenças sempre foi visto como uma conduta ilibada.

Na melhor das hipóteses, um templo pode ser desfigurado daquilo que remeta com obviedade a sua herança pagã, ou pelo menos refigurado. Precisamente o caso do Parthenon, o famoso templo de Atenas e uma das 7 Maravilhas do Mundo Antigo, convertido de templo de Atena a basílica de Nossa Senhora; preservam-se associações úteis, destrói-se todo o resto. Como Michael Baigent e Richard Leigh bem mostram:

“Assim, igrejas e santuários cristãos eram habitualmente erguidos em locais antes sagrados para crentes pagãos. Em 601 o Papa Gregório I estabeleceu essa prática quase como política oficial. Numa carta a um abade, escreveu que havia chegado à conclusão de ‘que os templos dos ídolos entre esse povo não devem em hipótese alguma ser destruídos. Os ídolos devem ser destruídos, mas os próprios templos devem ser aspergidos com água benta, e neles instalados altares e depositadas relíquias. Pois se esses templos são bem construídos, devem ser purificados do culto aos demônios e dedicados ao serviço do verdadeiro Deus. Dessa maneira, esperamos que o povo, vendo que seus templos não foram destruídos, abandone seu erro e, acorrendo mais rapidamente a seus locais de costume, venha a conhecer e adorar o verdadeiro Deus. E como existe o costume de se sacrificar muitos bois ao demônio, que alguma outra solenidade substitua essa, como um dia de Dedicação ou a Festa dos Santos Mártires, cujas relíquias estejam ali guardadas.” [4]

Este ritual de purificação é similar àquele visto pelos portugueses, durante a conquista cristã da Ceuta (1415), no Marrocos. Após o massacre dos civis dentro da mesquita (cuja iniciativa, tomada por parte de jovens guerreiros, lhes rendeu o sobrenome Mesquita e títulos de cavalaria), sal consagrado foi posto nas paredes e nos portais do templo, purificando da sujeira de sua falsa religião e a consagrando como um templo cristão. Antes da Conquista Portuguesa, Ceuta era dotada de 20 mesquitas identificadas (GONZALBES,p. 19) [5]. Após sua conquista, que também implicou no morticínio ou escravidão de toda a sua população de 30 mil habitantes (com a população posterior sendo basicamente a própria guarnição militar portuguesa), todas as mesquitas foram destruídas ou convertidas em igrejas (GONZALBES,p. 131) [6].


Catedral de Ceuta, construída sobre a antiga Mesquita Maior de Ceuta.

De forma semelhante, a Conquista de Granada (1492) tratou de converter a sua principal mesquita numa Catedral, sendo esta a primeira das ordenanças estabelecidas pela Rainha Isabel, a Católica, após a conquista da cidade. Mas a Grande Mesquita de Granada não foi a única mesquita convertida das grandes cidades do Reino de Castela, existem pelo menos outras 28 mesquitas expropriadas de cidades-chave dos territórios muçulmanos na Reconquista.

Os decretos de expulsão dos judeus e dos muçulmanos no final do século XV, inicialmente na Espanha, mas também em Portugal, determinaram a conversão, secularização ou abandono de todos os templos não-cristãos na Península.

E se por um lado teremos uma lenda confusa sobre a origem da Mesquita de Córdoba, sabe-se com certeza que, ao menos, o complexo era dividido igualmente entre cristãos e muçulmanos, até ser finalmente comprado dos cristãos os direitos de uso islâmico exclusivo. E isto não é exatamente algo atípico.

Desde o Califado Omíada, senão antes, existe ampla evidência de templos compartilhados entre cristãos e muçulmanos no Oriente Médio, como na própria Catedral de Damasco [7].

“Este fenômeno foi cuidadosamente estudado por Suliman Bashear, que provou de forma convincente que os primeiros governantes islâmicos rezavam em igrejas cristās. Existem até mesmo tratados contemporâneos, especialmente entre os xiitas, que discutem as formas pelas quais a pregação em igrejas cristãs é permitida, com referência frequente à presença de imagens nelas.” [7]

As evidências arqueológicas também indicam que, ao contrário do que a lenda anti-islâmica afirma, não foi, provavelmente, por ordens do Califado que imagens foram retiradas de templos cristãos por ação de zelotes públicos muçulmanos. Ao invés disso, teria sido por iniciativa metódica dos próprios cristãos remover estas imagens, de forma que:

“Não é insensato supor que muitos cristãos, mesmo se eles não se convertessem ao Islã, ao menos tentaram se acomodar aos costumes dos seus soberanos muçulmanos evitando qualquer ofensa ou confronto. Alguns podem até mesmo tentado reconciliar sua própria religião com aquela dos seus novos governantes, senão em matéria de dogma, ao menos na aparência exterior. O movimento para superar as diferenças no culto pode ter sido especialmente marcado no culto às imagens, porque existia, de fato, uma tradição compartilhada de iconofobia nas duas religiões” [7]

Uma noção de uso compartilhado de templos da religião conquistada seria impossível dentro da ótica católica e bizantina do mundo cristão. Seu modus operandi trabalharia com a expropriação de templos muçulmanos, mesmo que fossem apenas os principais. Hipocrisias a parte, a questão de expropriação de templos é bem menos linear do que a narrativa tradicional conta; e, definitivamente, mais condenatória aos cristãos católicos e ortodoxos do que aos muçulmanos.

E embora talvez seja difícil dizer que eles estejam errados na visão deles, especialmente por se basearem no exemplo dos reis de Israel e dos antigos profetas, dificilmente poderíamos condenar os muçulmanos por se justificar no mesmo, sem um argumento que não apelasse para uma Petição de Princípio (ie. o cristianismo pode fazê-lo porque é a religião verdadeira).

Resta, portanto, sanar estas disputas de propriedade por meios das armas. Como se fez por todo este tempo, até então sem um resultado conclusivo. De outro modo, as igrejas tomadas por muçulmanos não serão devolvidas, nem as mesquitas que tomamos serão devolvidas. Nisto tudo, uma coisa é certa: conquistadores não pedem desculpas.

Bibliografia:

[1] A Reader’s Guide to Orthodox Icons. Are Saint who destroyed idols Iconoclasts? Disponível em: <https://iconreader.wordpress.com/2012/08/20/are-the-saints-who-destroyed-idols-iconoclasts/>.

[2] https://fratresinunum.com/2009/01/20/felipe-aquino-e-contra-a-pena-de-morte-lutero-tambem-era/

[3] https://www.amazon.com/Encyclical-Liberalism-Religious-Indifferentism-Mirari/dp/0935952470

[4] https://www.amazon.com.br/Inquisition-English-Michael-Baigent-ebook/dp/B002XHNNA2/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&dchild=1&keywords=Inquisition+baigent&qid=1595718997&s=books&sr=1-1

[5] GOZALBES CRAVIOTO. p. 19. Disponível em: https://www.amazon.co.uk/urbanismo-religioso-cultural-Ceuta-Media/dp/8492097507.  

[6] ibid. 131.

[7] CODOÑER, Juan S. Melkites and Icon Worship during the Iconoclastic Period. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/43916679#metadata_info_tab_contents>