A escravidão no mundo islâmico é algo que, diga-se de passagem, é muito interessante de se compreender. Não resta dúvida que de uns tempos pra cá, o livro do antropólogo Tidiane N'Diaye tenha levantado tantas discussões no que diz respeito a visão do islã sobre o escravismo. Nesse breve artigo, tratarei de todos os grandes pontos estabelecidos na coluna vertebral da obra de Tidiane, demonstrando o que é mito, o que é fato, e sem mais delongas, vamos lá.

A escravidão no Islã, legitimidade religiosa ou étnica?

Para compreendermos esses aspectos, devemos ficar entendidos que nas fontes medievais árabes, os habitantes da África Tropical eram geralmente divididos em quatro grandes categorias: os sūdān, os habash, os zanj e os nūba. O conceito al‑sūdān (plural de al ‑aswad [negro]) é o mais geral; já que  se aplica a todos aqueles de pele negra, independentemente do lugar de origem.

Para os Árabes, em um sentido mais restritivo, o termo sūdān, progressivamente, passou a designar os africanos negros no sul do Magreb, ou seja, os habitantes do Bilād al ‑sūdān (país dos negros) por excelência.  Todavia, certos autores empregaram este termo em um sentido mais amplo, contando também entre os habasha, povos habitantes de regiões tão distantes quanto o Níger ou os confins do Egito. Já o  termo zanj  designa basicamente os povos de língua banta da costa oriental da África que, desde os tempos pré-islâmicos, tinham sido trazidos como escravos para a Arábia, Pérsia e Mesopotâmia.  

Por sua vez, sendo  os zanj muito numerosos nesses países, logo o nome tomou o sentido geral, simultaneamente de “negro” e de “escravo”.  Os nūba (núbios) foram conhecidos pelos árabes após a conquista do Egito; todavia, é bem provável que esse nome designasse também todos os africanos originários das regiões situadas no sul da Núbia propriamente dita, os grupos nilóticos e orientais de expressão sudânica, que chegaram até os territórios do califado, passando pela Núbia.

O islã foi muito recebido e inclusive expandido pelos grupos  ditos “berberes”. Nesse âmbito ou nessa esfera berbere podem ser distinguidos diferentes grupos culturais: cabilas, rifenhos e tuaregues. Que esses grupos por seu vigor étnico e costumeiro tinham ojeriza aos grupos abaixo de seus domínios, no caso a África negra, não é algo que não poderia se esperar, o fervor religioso poderia ser um combustível para as intrigas aos vários grupos berberes e negros da região, mas não era substancialmente o único, algo acidental pode ser considerado.

Um caso interessante, que o próprio Tidine nos mostra,  é o do erudito e sábio Ahmed Baba ( 1556-1 627), de Tombuctu. Fervoroso muçulmano, este intelectual,  refutou a maldição de Cam em todo o Império Songai e denunciou vigorosamente o tráfico Saariano e oriental praticado pelas nações berberes e árabes islâmicas.

Como o próprio Ahmed Baba dizia, que mesmo ou caso admitamos que Cam é um antepassado dos negros, Allah é demasiado misericordioso para castigar milhões de seres humanos pelo pecado de um só. É a falta de crença e não a raça que é a fonte da escravidão. Qualquer não-crente, branco ou negro, pode ser escravizado; nenhum muçulmano, negro ou branco, poderia sê-lo.

  Dessa forma, longe de ser uma questão legitimada sobre ótica racial, ele elaborou uma espécie de “etnografia religiosa” que distinguia, no seio dos próprios povos negros, os muçulmanos dos pagãos. De modo correlato, proibia a captura de homens entre os primeiros e autorizava-a entre os segundos. Podemos considerar como o próprio Tidiane considerou, que essa   distinção serviu como um pretexto a líderes africanos, como Dan Fodio ou Elhadji Omar, levar a cabo guerras religiosas, como a de Sokoto, no norte da Nigéria, lá no século XIX por tal perspectiva.

Como os escravos eram um dos principais "produtos" negociados em Tombuctu, Ahmed Baba não condenava a prática da escravidão como um todo. Bernard Salvaing, professor emérito de História e especialista em cultura manuscrita do Mali, nos explica que havia preconceitos de fato, das tribos berberes do Norte, que os negros eram escravos e pagãos por natureza, e por isso, a resposta de Ahmed Baba era considerada inovadora. Ao mesmo tempo, é, claro, legitima, do ponto de vista da lei islâmica, a captura dos Kafur ou Kafir (infiéis).

Outro autor extremamente importante e muitas vezes mal compreendido é o grande Ibn Khadun. Existem muitas passagens, na sua maioria colocadas de modo equivocado, sem contexto, frases ou falas do erudito que o colocam como um pai do “racialismo” árabe-berbere islâmico, mas, uma pequena pesquisa, objeta essa visão deturpada.

Para Ibn Khaldun, fatores geográficos afetam as qualidades de cor e caráter dos seres humanos. No entanto, ele discordou dos genealogistas e outros que imaginavam que os negros "são os filhos de Ham, o filho de Noé, e que foram escolhidos para serem negros como resultado da maldição de Noé, que produziu a cor de Ham".  Todavia, o determinismo geográfico de Ibn Khaldun, refuta tal pressuposto. No livro, Society, State, and Urbanism : Ibn Khaldun's Sociological Thought  de Baali, Fuad, um intérprete de Khaldun, é dito que;

“É mencionado na Torá [Gen. 9:25] que Noé amaldiçoou seu filho Cam. Nenhuma referência é feita lá à escuridão. A maldição não incluía mais do que os descendentes de Cam deveriam ser escravos dos descendentes de seus irmãos. Atribuir a negritude dos negros a Ham revela desconsideração da verdadeira natureza do calor e do frio e da influência que eles exercem sobre o ar (clima) e sobre as criaturas que nele passam a existir.”

Desse modo,  para Ibn Khaldun, a cor negra (da pele) comum aos habitantes da primeira e segunda zonas é o resultado da composição do ar em que vivem e que surge sob a influência do forte aumento do calor no sul. Ele diz:

“O sol está no zênite lá duas vezes por ano, em intervalos curtos. Em quase todas as estações, o sol está em ponto culminante há muito tempo. A luz do sol, portanto, é abundante. As pessoas lá têm que passar por um verão muito severo. Algo semelhante acontece nas duas zonas correspondentes ao norte, a sétima e a sexta zonas. Lá, a cor (da pele) branca é comum entre os habitantes, também resultado da composição do ar em que vivem, e que surge sob a influência do frio excessivo do norte. O sol está sempre no horizonte, dentro do campo visual do observador humano, ou próximo a ele. Nunca sobe ao zênite, nem chega perto dele. O calor, portanto, é fraco na região e o frio forte em quase todas as estações. Em consequência, a cor dos habitantes é branca e eles tendem a ter poucos pelos no corpo. Outras consequências do frio excessivo são olhos azuis, pele sardenta e cabelos loiros”.

Ibn Khaldun, além disso, enfatizou seu ponto: os negros do sul que se estabelecem na zona temperada ou na zona fria, produzem descendentes cuja cor gradualmente se torna branca com o passar do tempo. Vice-versa, os habitantes do norte ou da zona temperada que se estabelecem no sul produzem descendentes cuja cor se torna negra. Desta maneira, na época de Ibn Khaldun, muitas pessoas acreditavam que os negros "eram em geral caracterizados pela leviandade, excitabilidade e grande emocionalismo, "e que" eles ficam ansiosos para dançar sempre que ouvem uma melodia.” Daí que  Ibn Khaldun,  atribuiu claramente o desenvolvimento dessas características a fatores geográficos. Ele mesmo,  criticou aqueles estudiosos, como Galeno, que acreditava "que a razão é uma fraqueza de seus cérebros [dos negros] que resulta em uma fraqueza de seu intelecto" .  Ibn Khaldun insistiu que “esta é uma declaração inconclusiva e não comprovada”. Para uma noção do processo de socialização, além disso, para uma exposição da capacidade mental dos negros, Ibn Khaldun ofereceu uma interpretação sociocultural digamos assim, para a questão da inteligência de outros grupos. Por exemplo, ele discutiu a crença corrente em sua época de que os" orientais "eram mais inteligentes e com mentalidade científica do que os "habitantes ocidentais", por exemplo, os norte-africanos.

Ele por sua vez, declara firmemente que isso não se devia a qualquer diferença na constituição originária  da cognição,  como os viajantes mal informados tendiam a acreditar.  Para ele, Todos os homens, ocidentais e Orientais, são quase os mesmos em seu potencial mental; a diferença surge apenas como resultado de diferentes culturas e desenvolvimento social. Ibn Khaldun vê a mente como um produto grande do ambiente social; isto é, o conhecimento aumenta ou diminui apenas por causa dos contatos e experiências que a pessoa recebe de seu ambiente. Alguns nômades são originalmente mais inteligentes do que muitos dos urbanos; mas a urbanização e seus concomitantes, por exemplo o artesanato e os hábitos e modos técnicos refinados associados às condições urbanas, fazem com que os urbanos pareçam mais sofisticados do que os nômades e vice versa.  O conhecimento é adquirido, para ele por natureza, os seres humanos são ignorantes; mas por causa de sua capacidade de pensar, eles aprendem adquirindo conhecimento e técnica.

Ibn Khaldūn  rejeitou de modo enfático,  a maldição hereditária, ele diz;

“Os genealogistas, que nada conheciam da natureza das coisas, imaginaram que os negros são os filhos de Hām, filho de Noé, e que a cor de sua pele é a consequência da maldição de Noé, que provocou a negrura de Hām e a escravidão infligida por Deus a sua descendência. Se a Tora conta que Noé jogou a maldição sobre seu filho Hām, por outro lado, ela não evoca a cor da pele desse último. A maldição somente fez dos filhos de Hām os escravos dos descendentes de seus irmãos. Atribuir a cor da pele dos negros à sorte de Hām testemunha uma ignorância da natureza verdadeira do calor e do frio; bem como de sua influência sobre o clima e as criaturas desta Terra”.

Com essas passagens, fica claro o intuito de denegrir a imagem do erudito, seja ela proposital ou não, seguem sendo argumentos falaciosos, imputados de modo errado ao erudito mulçumano, Ibn Khaldun buscou por métodos epistemológicos compreender vários aspectos da antropologia humana, mas sem com isso utilizar-se do fator religioso para legitimar ou validar suas posições.  Outra passagem importante de Tidiane, que também o contradiz, é sobre a Revolta de Zanj no Iraque. O lider da revolta, o Ali Ben Mohammed não era zanj, mas um aliado providencial dos africanos,  tido como um árabe e branco, que  defendia a igualdade entre todos os homens, sem distinção de cor, outro fator importante para a queda estereotipada do Islâmico Racialista radical.

Vamos agora a outros pontos, como as proporções do Tráfico Islâmico, Estimativas, Rotas, etc.

Nesse aspecto, Tidiane não falha ao usar alguns autores importantes no estudo do comercio de escravos islâmico. Por exemplo, ele cita o historiador Raymond Mauny, que estudou longamente o tráfico. Esse autor teria chegado a cifras ou estimativas de 20 mil cativos africanos deportados todos os anos através do deserto, ou seja, dois milhões por século, do século VII ao século XIX, e outros quatro milhões de escravos exportados pelo Mar Vermelho, e outros deportados pelos  portos suaílis do oceano Índico. Mas , o foco maior dele, nesses  estudos como mais credíveis, são os dados do historiador americano Ralph Austin. Com base nas estimativas desse autor, pode-se compreender que cativos africanos foram deportados através do Saara, do Mar Vermelho e do oceano Índico desde a Alta Idade Média.  Nesse caso, Tidiane apenas reafirma as estimativas de Austin, que vão entre o número de africanos deportados pelo tráfico do Saara (7.400.000), entre o século VII e o início do século xx.

Nas regiões próximas do mar Vermelho e do oceano Índico, teriam sido transferidos cerca de oito milhões de africanos.  Dessa forma, teria se chegado, a um total de mais de 17 milhões de africanos deportados. Desta forma, tal tráfico segundo esses dois historiadores estariam efetivamente ligados à  mais de 40 por cento dos 42 milhões de cativos africanos deportados ao redor do globo.

Como não se pode deixar de imaginar, eram longas viagens por rotas que, no século IX, ligavam Marrocos, Argélia, Líbia, Tunísia e o Egito às margens dos rios Senegal e Níger, ao sul da Mauritânia e ao lago Chade. Já na metade desse século os escravos eram os principais produtos dos caravaneiros do Saara, que por ali transportaram cerca de 300 mil pessoas. As cáfilas rumavam do Norte da África para as savanas sudanesas carregadas de espadas, tecidos, cavalos, cobre, contas de vidro e pedra, conchas, perfumes e, principalmente, sal. No retorno, depois de meses, traziam ouro, peles, marfim e, cada vez mais, escravos. A intensificação do comércio de longa distância exigia o aumento do número de cativos. Além de mercadoria rentável, o escravo era o carregador nas exaustivas viagens das caravanas: era ele que fazia o transporte das barras de sal, dos fardos de tecidos, dos cestos de tâmaras, das armas, e dos objetos de cobre.

Para Paul Lovejoy, o auge do tráfico de escravos para os domínios árabes foi atingido no período de expansão do islã no norte da África.  Entre 800 e 1600, o tráfico de escravos no Mar Vermelho foi de 1.600.000 pessoas; na África Oriental, no mesmo período, ele atingiu 800 mil indivíduos. Foi a África negra a que mais abasteceu os mercados de escravos mediterrâneos, principalmente depois da ocupação do Egito e da África do Norte pelos árabes. O Egito do século VIII era abastecido de mão de obra cativa pelos Estados cristãos da Núbia, tributários do califado, que bastante lucravam com tal fator. No século IX, o califado de Bagdá chegou a contar com 45 mil escravos negros trazidos pelos comerciantes berberes. Porém, foi a partir do século X que o número de escravos provenientes da África subsaariana excedeu o número de escravos turcos e eslavos. Por seu turno, tal tendência se acentuou ao longo do tempo, explicando a importante presença de negros nas populações árabes hodiernas. Desta maneira, ao ser  somado, aproximadamente 7.200.000= ( 4.800.000 + 1.600.000 + 800.000), todos esses escravos africanos foram enviados para o mundo muçulmano entre 650 e 1600, ou seja, ao longo de um milênio. Nos dois séculos seguintes, temos mais 2,2 milhões; no século XVIII aproximadamente 715 mil pessoas foram capturadas na África subsaariana e escravizadas no Egito, Líbia, Tunísia, Argélia e Marrocos.  Incluindo-se o século XIX, temos assim um total próximo de quase 12 milhões de escravos, durante treze séculos, na área civilizacional árabe, cifra equivalente segundo Lovejoy, à praticável pela Europa na África em um período bem mais curto, em quatro séculos.

No âmbito do escravismo oriental, segundo outro pesquisador, no caso Ronald Segel, entretanto, em 1653, uma frota vinda do sultanato meridional árabe de Omã, capturou os portos escravagistas do norte. Basicamente com os pés na Arábia e outro na África, Omã se tornou um regime bipolar, baseando sua economia no comércio de escravos, ancorada na ilha de Zanzibar, atual Tanzânia. Nos anos de 1780, os omanis capturaram o mercado de escravos rival de Kilwa e por sua vez, desviaram o fluxo desse comércio para suas próprias rotas. Nos anos de 1834, 6.500 escravos estavam sendo exportados de Zanzibar por ano. Já em 1859, há registro de 19 mil escravos chegando a Zanzibar, vindos do interior. Depois de 1840, o Sultão  de Omã transferiu sua corte da península Arábica para a cidade de Zanzibar, mais rica e mais cosmopolita, se tornou independente de seu parceiro comercial árabe em 1845. Em 1871, o sultão obtinha um quarto de sua renda por meio do comércio escravagista.  No seu livro Islam’s Black Slaves “Os escravos negros do Islã”, Ronald Segal fala de estimativas de 11,5 milhões ou 14 milhões de escravos africanos deportados para o mundo islâmico.

Sem embargo,  é bastante arriscado propor, como T. Lewicki, estimativas do número de escravos deportados pela África Negra em direção ao mundo muçulmano. Com efeito,  segundo T. Lewicki, 12 a 16 milhões de escravos negros teriam transitado pelo Cairo somente no século XVI. Essas estimativas são consideradas exageradas por alguns especialistas. Dentro de alguns nuances, três delas explicam que esse tráfico tenha sido muito aquém dos números apresentados:

  1. O baixo nível de desenvolvimento da economia muçulmana da época, sendo impossível absorver tal quantidade de escravos.
  2. Com exceção dos zanj do Baixo-Iraque, em nenhum outro lugar do mundo árabe se encontrava um núcleo importante de população negra historicamente ligada à escravidão das Rotas do Saara.
  3. Além disso, o custo elevado dos escravos, decorrente dos riscos ligados às condições de transporte através do deserto, não podia, dessa forma, permitir um êxodo tão importante de população.  Sobe tal aspecto, é significativo que, na iconografia árabe da época, o mercador de escravos tenha muitas vezes sido apresentado como que os especialistas chamam de “o homem de bolso furado”.

Um ponto interessante, é que no islã, o Estado controlava estritamente os mercados de escravos, de modo a proteger os compradores de práticas comerciais desleais. Todas as transações não se desenrolavam de modo exclusivas em público. Podia -se também comprar escravos por meio de agentes (dallāl) que cobravam uma comissão. Para esses traficantes de escravos, chamados importadores (djallāb) ou mercadores de gado (nakhkhās), eram simultaneamente, desprezados em razão de seu trabalho e invejados por conta de sua fortuna. Já o preço do cativo dependia da proveniência, do sexo, da idade, o estado físico e das capacidades dos escravos. No geral, alusões aos diferentes preços dos escravos encontram-se nas narrativas árabes clássicas. Aproximadamente, na metade do século VIII, o preço médio de um escravo era de 200 dinares. Em Omã, um bom escravo negro podia valer de 25 a 30 dinares.

Por outro lado, os casos isolados de fato podem nos levar a compreender nuances da escravidão no islã, como é o caso de senhores da guerra, ou Imperadores, Sultões que detiam muito poder e prestígio para obter escravos.

Ahmad ibn Tūlūn, um governador islâmico, mais tarde soberano do Egito, recrutou um numeroso exército de escravos negros, principalmente núbios. Conta -se que, quando de sua morte, entre outras possessões, ele deixou alguns  mamelucos, cerca de 45.000 negros, os quais se encontravam organizados em unidades distintas e alojados separadamente nos acantonamentos militares. Outro importante soberano, Mulai Ismail instalou a dinastia alauita, reinante até os dias de hoje. “Um homem de extraordinária ambição e crueldade absoluta”, descreve,  o historiador Martin Maredith, esse Soberano criou um gigantesco exército composto de 150 mil escravos negros. Capturados no Sahel ainda crianças, os escravos de Ismail eram levados acorrentados à capital, onde recebiam oito anos de formação militar rigorosa. Aos dezoito anos, os meninos eram convocados para regimentos abid, recebiam uma escrava por esposa e eram incentivados a criar a próxima geração de escravos-soldados. Dos abid saía a guarda pessoal do sultão, a chamada “Guarda Negra”, de lealdade feroz ao soberano.

Outro,  ambicioso líder militar, Muhammad Ali, que havia chegado ao Egito, em 1801, como oficial de um contingente albanês de tropas otomanas na campanha para expulsar os invasores franceses. Se fez forte do tráfico de escravos negros do Bilad as-Sudan para o Egito, que tinha sido um pilar do comércio regional durante séculos. No  século XVIII, o principal fornecedor para o Egito era o reino sudanês de Darfur, que lançava regularmente ataques de cavalaria contra tribos negras ao sul. Os escravos eram levados ao longo da dar al-’arbain (“a estrada dos quarenta dias”), que ia de El-Fasher, em Darfur, para o norte, até o Nilo, em Assiut. No ano de 1796, um viajante inglês, William Browne, acompanhou uma caravana com 5 mil escravos de Darfur até o Egito. Em 1798, as autoridades francesas no Cairo relataram:

“Todo ano, vinham duas caravanas de Darfur, cada uma composta de 4 a 5 mil camelos … o número de escravos trazidos para o Egito em um ano é uma média de 5 a 6 mil, dos quais três quartos são moças ou mulheres. Os escravos têm de seis ou sete a trinta ou quarenta anos de idade. São vendidos em várias cidades por onde a caravana pare, mas quase exclusivamente no Cairo.”

Fora a força  expedicionária de Muhammad Ali partiu para a Núbia em 1820 com ordens específicas. “Estejam cientes de que o objetivo de todos os nossos esforços e despesa é adquirir negros”. Em maio de 1821, a região do Sennar rendeu-se sem resistência logo depois. Aproximadamente 30 mil escravos foram enviados pelo rio para o Egito, mas apenas cerca da metade sobreviveu; os demais morreram no trajeto de doença, fadiga, etc.

Em 1824, os comandantes de Muhammad Ali criaram uma sede em um promontório formado pela confluência dos dois Nilos, uma área conhecida pelos árabes locais como El Khartoum, por sua suposta semelhança com uma tromba de elefante. A cada ano, expedições militares atacando os shilluks e os dinkas ao sul do Nilo, capturando Cordofão a oeste e alcançando as montanhas de Nuba, ao sul de Cordofão. Na década de 1830, Muhammad Ali aumentou o número de regimentos de um para três, tanto para consolidar o governo egípcio como para expandir as operações de assalto para obtenção de escravos. Em 1838, cerca de 10 mil escravos eram enviados anualmente pelo Nilo para o Egito.

Como esse Tráfico Oriental, Mar Vermelho e indico envolviam muitos etíopes, os mais importante locais para as suas saídas era sem dúvida, Massawa. As rotas comerciais de Gondar , localizadas nas Terras Altas da Etiópia, levavam a Massawa via Adwa . Os traficantes de escravos de Gondar levavam cerca de 100 a  200 escravos em uma única viagem para Massawa, a maioria dos quais eram mulheres. 

Um pequeno número de eunucos também foi adquirido por traficantes de escravos nas partes do sul da Etiópia, falaremos deles mais adiante. Esses cativos, contudo, constituía principalmente de crianças pequenas, eles levavam vidas mais privilegiadas e comandavam os preços mais altos nos mercados globais islâmicos devido à sua raridade.  No entanto, a maioria desses meninos veio do principado de Badi Folia na região de Jimma , situada a sudeste de Enarea.. Mas, não só a busca de cativos para eunucos, como ação islâmica na região, levou governantes oromo locais a expulsar todos os que o praticavam em seus reinos. Mas, no tráfico indico e do Mar Vermelho, eram as guerras o primor de qualquer tráfico no local, até mais do que o tráfico do Saara. A região era dividida em grupos, como os Somalis eram as tribos islamizadas, a guerra contra o infiel era mantida até mesmo pelas tradições étnicas da região. Por sua vez,   os oromo tornaram -se o grupo étnico mais importante em número do Nordeste da África. Aquela coisa de ideal do herói, matador e caçador de elite, era comum a todos os povos do Nordeste da África.  Para isso, os oromos estava pronto para arriscar sua vida em lugares selvagens em busca dos cobiçados troféus. O guerreiro tinha direito a certos privilégios, tais como o porte de enfeites reservados aos matadores, contudo, em parte alguma da África o culto do matador foi tão integrado ao sistema local quanto ao dos oromo.

Esse sistema exigia que cada classe dirigente gada fizesse uma expedição guerreira com matanças, os oromo atacavam, a cada oito anos, os povoados vizinhos ( incluindo os Somalis, mas, o principal alvo eram os sidama, darasse, burgi e todos os membros do grupo konso. E por isso, deu -se conta de que o sistema gada reforçava o poderio militar e o adotaram, modificandox-o um pouco. Veja, assim como no norte africano, as consequências de conflitos étnicos eram o verdadeiro pilar para desencadear espólios de guerra, rebaixados ao escravismo.

 

Olivier Pétré-Grenouilleau em seu livro ( Les traites négrières Essai d’histoire globale)  ao citar o autor Ralph Austen,  nos permite ter os números no Mar Vermelho e Oceano Índico, desde o início da Idade Média . As regiões próximas ao Mar Vermelho e ao Oceano Índico teriam visto a deportação de cerca de oito milhões de pessoas, talvez mais de um terço delas durante o século XIX. Esse tráfico do Vale do Nilo Superior e a Abissínia também foram fontes significativas de escravos no Império otomano. Os pagãos e muçulmanos de áreas do sul da Etiópia, como kaffa e jimma, foram levados para o norte, para o Egito otomano e também para portos no Mar Vermelho para exportação para a Arábia e o Golfo Pérsico . Segundo Austen, em 1838, estimava-se que 10.000 a 12.000 escravos chegavam ao Egito anualmente usando essa rota.  Um número significativo desses escravos eram mulheres jovens, garotos, etc. Ao citar o viajante suíço Johann Louis Burckhardt que chegava na estimava  que 5.000 escravos etíopes passavam pelo porto de Suakin somente todos os anos.  Em alguns casos, escravas etíopes eram preferidas aos homens, com algumas cargas de escravos etíopes registrando proporções de escravos mulheres para homens de dois para um.

Os negros eram empregados em vários setores.  Nas vastas planícies salinas da Baixa Mesopotâmia, eles eram empregados, em grupos de 500 a 5.000, para livrar o solo de seu revestimento nitroso (sebākh), no intuito de desobstruir as terras aráveis destinadas ao cultivo (talvez da cana -de -açúcar), bem como para extrair e amontoar o salitre da camada superficial do solo. O trabalho desses negros era vigiado por intermediários e contramestres. Contudo, uma  vida nas salinas era particularmente penosa e as condições nas quais tais “varredores” (kassāhīn), era complicada.  Através dos relatos do cronista muçulmano al -Tabarī é indicado que infortunados eram insuficientemente nutridos e com frequência eram vítimas de paludismo e de outras doenças. O trabalho  coletivo em grandes explorações não era praticado somente na região do Shatt al -Arab, no baixo Iraque, mas,  também na província de al -Bahrayn. Nessa região no século IX, sob os kermatas, 30.000 negros eram sujeitados a trabalhos penosos. Segundo outro pesquisador mulçumano, o Ibn al -Mudjāwir, tal comércio de escravos zandj servia também para abastecer em mão de obra as pedreiras do Sul Árabe, em Aden.

Por outro lado, os soldados negros apareceram esporadicamente no início do reinado dos abássidas, mas, é após a rebelião dos escravos do Iraque, na qual os negros realizaram proezas militares, foram recrutados em massa.  Relatou -se que, sob o reinado do califa abássida al -Amīn, fora constituído um batalhão especial de guarda-costas etíopes, denominados “os corvos”. Ao longo da luta pelo poder que ensanguentou o reinado de al -Muktadir , cerca  7.000 mil negros combateram do lado do califa. Segundo as crônicas árabes da época, os regimentos negros, chamados ‘abīd al ‑shirā’ (escravos comprados), tornaram -se um importante elemento dos exércitos fatímidas. Eles conquistaram um papel principal no reinado de al -Mustansir (1035 -1094), graças ao indefectível apoio que lhes foi conferido pela mãe do califa, escrava sudanesa de muito caráter. No apogeu de sua potência, eles eram 50.000.

No que tange ao Morticínio e a queda demográfica da África no tráfico islâmico, Tidiane cita Austen mais uma vez,  segundo ele,  é necessário acrescentar (1 565 000) cativos falecidos durante as viagens e que outros 372 mil teriam ficado ao longo do deserto ou nos oásis, na sua maioria fragilizados pelos deslocamentos longos dessas rotas desérticas. Creio, que o morticínio seja contabilizado na sua totalidade, no tráfico Saariano, já que ele foi maior densamente do que o Oriental especificamente Mar Vermelho e Oceano Indico.

Mas, para termos uma noção de fato desse morticínio teremos que analisar esse fenômeno em analogia a outro tráfico negreiro, o tráfico ocidental ou Trans-atlântico.

Hoje, sabe-se, com relativa precisão, que aproximadamente 12.521.337 negros  embarcaram para a travessia do Atlântico em cerca de 36 mil viagens de navios negreiros, entre 1500 e 1867. Dos quais, 10.702.657 chegaram vivos à América. Os mortos seriam  1.818.680 como anota P.Curtin, Herbert Klein, etc. Já os 200 mil restantes foram vendidos na Europa ou na própria África. O historiador Thomas Fowell Buxton, como cita Klein,  argumentava que apenas cerca de 18 por cento da mortalidade sofrida no processo do tráfico ocorria a bordo do navio, e que quase 71 por cento ocorria no transporte dos escravos até o litoral, o restante da mortalidade era devido às adaptações às novas condições de vida no Novo Mundo após o desembarque.

Dessa forma, a travessia marítima levava, em média, um mês da África até o Brasil e dois meses da costa da África Ocidental até o Caribe e América do Norte. A  maioria dos escravos passava, pelo menos, de seis meses a um ano esperando o embarque nos navios negreiros europeus desde sua captura, com o tempo de espera a bordo sendo de três meses, em média. Contudo, nessa travessia atlântica os navios negreiros foram estimados, para o período 1630-1803, em quase 15%. Mas, qual foi de fato o impacto demográfico desse comércio de negros na África? Devido à falta ou a raridade dos censos populacionais no continente, ficamos nas estimativas muito amplas, e, no entanto, bem significativas. Segundo Paul Lovejoy, em 1700, a região da África Ocidental submetida à caça de escravos contava com 25 milhões de habitantes. Um quarto destes foi caçado e escravizado. Mas, em um século e meio depois, em 1850, a população da região tinha caído para vinte milhões de habitantes, um retrocesso intenso.

A castração dos negros seria um argumento racial e válido para combater a reprodução africana em suas terras, e a legitimidade da escravidão?

Um ponto interessante nesse assunto, é que, como próprio Tidiane fala,  a castração no islã é proibida. Mas, era geralmente praticada após a travessia do Sara, muitas vezes no Egito. Lá os monges cristãos coptas se tinham especializado nela. Basicamente aqui Tidiane mais uma vez se baseia como descrição nos trabalhos de alguns historiadores, dentre eles o francês Jacques Heers; para ele esses negócios assumiram uma escala surpreendente: busca de jovens e de pessoas de qualidade, mercados e redes adequadas, também centros de castração especializados, preferencialmente localizados em países vizinhos, entre os infiéis, já que a lei islâmica proibia os muçulmanos de praticá-los. Até mesmo as mutilações, em uma passagem, é dito;

“O comerciante Al-Hajj Faraj al-Funi me disse que o governante muçulmano de Amhara [na Etiópia] proibiu a castração de escravos; ele considerou este ato abominável e segurou firmemente a mão de sua repressão. Mas os bandidos vão para uma cidade chamada Wâslu, que é povoada por uma população mista e sem religião; e é aqui que os escravos são castrados.”

Para Heers, essas pessoas, sozinhas em todo o país da Abissínia, ousam agir assim. ‘‘Quando os mercadores compravam escravos, levam-nos consigo, fazendo um desvio por Wâslu, onde são castrados, o que aumenta muito o seu valor. Então, todos aqueles que foram castrados são levados para Hadiya, dos Somalis e Oromo’’, observa -se também que “a castração é praticada pelos Gallas ( grupos que já comentei no sul da Etiópia] em meninos de dez a quinze anos, pela remoção dos testículos; a ferida é tratada com manteiga’’, essa passagem é retratada por Tidiane. Dai que sai as “cargas inteiras” destes eunucos pelo porto de Tadjoura, o cansaço da viagem e o mau tratamento mataram 70 a 80% deles.

Segundo Heers esses apanhados dentre os povos do Níger ou da região do Lago Chade chegaram ao Egito à custa de um longo percurso de caravanas, exaustivo, perigoso, pontuado por etapas, certamente locais de repouso, mas também centros de castração: às margens do Nilo em Gondokoro ou em Cartum e nos oásis de Kebaboou e Mourzouk, em Fezzan, etc.

Como deixa claro esse historiador, foi assim que se estabeleceram mercados e redes especializadas, com os seus centros de castração localizados preferencialmente nas terras dos vizinhos Kafir, nomeadamente na Etiópia, desse  modo, os cativos zenjs, oriundos da África.

Altura da sua estada neste país, relata ele, quem procedia às operações eram dois monges coptas, de quem se dizia que superavam em destreza todos os seus predecessores e que possuíam uma casa onde receber as vítimas. Contudo, eles encontravam-se protegidos pelo governo, ao qual pagavam um imposto anual. A operação em si, por mais extraordinário que possa parecer, raramente era fatal. E todas as pessoas que ele questionara a este respeito em Siout lhe asseguraram que isto era até superior à proporção normal, visto que os mortos não costumavam ser mais de dois em cem (o que é contrariado pela maior parte das fontes credíveis). Os garotos escolhidos tinham entre oito e 12 anos porque, passada esta idade, existe um grande risco de mortalidade. Um rapaz em quem a operação fosse bem-sucedida valia, em Siout, mil piastras.

Desse modo, se tinha provavelmente custado cerca de 300 piastras ao proprietário, em semanas antes. Já o Padre copta recebia entre 45 e 60 piastras.  Como o eunuco era símbolo de riqueza, produziam-se, em média, cerca de 150 eunucos por ano. Óbvio que um procedimento desses era muito complexo, como fala Tidiane, “ a  castração que os árabes muçulmanos praticavam nos deportados africanos era uma operação complexa, delicada e, principalmente, muito perigosa. Quando o êxito não era pleno, nomeadamente devido à precariedade dos recursos medicinais da época, tal intervenção provocava hemorragias ou infecções, quase sempre fatais. Nesse ponto, ela geralmente era praticada em (pacientes) de menos de sete anos e raramente depois dos 12 anos.’’  

A fonte inicial mais conhecida de eunucos na África estava na Etiópia. Apesar dos esforços do rei de Amhara para proibir a prática, a castração continuou a ser realizada no século XIV na cidade de Washlu, sendo o cuidado dos sobreviventes a especialidade do principado muçulmano de Hadya [. . .] Diz Heers em seu livro ‘’..os eunucos etíopes já eram conhecidos na Arábia, como servos e porteiros da Mesquita em Medina, todos eunucos, inclusive etíopes.’’

Segundo o pesquisador Peter Charles Remondino, na obra History of Circumcision from the Earliest Times to the Present, os coptas egípcios, supostamente os primeiros cristãos africanos, venderam eunucos apenas aos muçulmanos por causa da proibição destes contra a mutilação das criaturas de Deus. A mutilação também incluía marcar escravos e queimar seus dentes. Os africanos capturados, que não eram cristãos nem muçulmanos, "não se enquadravam no âmbito da lei eclesiástica". Os africanos eram "o outro" para ambas as religiões. O seguinte ditado, atribuído ao Profeta, é a razão de os muçulmanos evitarem a castração:

“Quem matar um escravo, nós o mataremos. Quem cortar o nariz de um escravo, seu nariz nós cortaremos; e quem quer que castra um escravo, ele também deve ser castrado.”

Nesse livro, Remondino descreve que os viajantes pela área que às vezes racionalizavam a escravidão geralmente tinham opiniões negativas sobre a castração dos escravos africanos. Durante suas viagens em 1737, Frederick Lewis Norden escreveu sobre a prática de fazer eunucos no Alto Egito. Embora ele não tenha revelado quem eram os praticantes, parece que provavelmente eram coptas. Norden designou especificamente a aldeia de Denesle (cerca de 160 quilômetros ao norte de al-Nazala). Portanto, parece que desde o século XVIII até meados do século XIX, os coptas do Alto Egito controlaram a confecção dos eunucos. George Baldwin, cônsul geral do duque de Leeds, confirmou isso em um relatório de 1789.

Além disso, suas informações alegavam que a castração de escravos era uma profissão transmitida de pai para filho. Ele não acreditava que houvesse mais de 20 eunucos fabricados anualmente. Outro viajante do final do século XVIII, W. G. Brown, escreveu que em algumas famílias, fazer eunucos era hereditário, refletindo o ponto de vista de Baldwin. Os Padres e monges cristãos coptas, de acordo com Hermann Ludwig von Puckler-Muskau, ganhavam muito dinheiro com seus negócios.  Os números dos que se tornaram eunucos ainda não são claros. O prefeito da vila, onde eram realizadas as operações (1798), relatou que ali aconteciam de um a duzentos eunucos anualmente.

Já o  Burckhardt (1813) fala sobre cento e cinquenta eunucos feitos anualmente, embora em 1812, 'Muhammad Ali fizesse com que duzentos jovens escravos de Darfur fossem mutilados, os quais ele enviou como um presente ao Grande Signor (o Sultão).' Light (1814) viu "dois barcos contendo cento e cinquenta meninos negros a caminho do Cairo, que haviam sido totalmente castrados", e Clot Bey (1836) afirmou que trezentos eunucos vêm anualmente das mãos dos castradores.

Dois monges coptas operavam o centro de castração e as taxas de mortalidade eram surpreendentemente baixas. Burckhardt relata que sabia de apenas duas mortes entre 60 jovens que investigou. Outros lhe disseram que mesmo essa era uma taxa alta, geralmente ficava em dois em 100. Os monges produziam cerca de 150 meninos por ano, mas a maioria dos egípcios desprezava tal prática. No entanto, o governo os protegeu por causa dos impostos anuais que pagavam, citado por Heers lá em cima.  No século XIX, 200 a 300 meninos eram castrados anualmente no Alto Egito no mosteiro de Dayr al-Jandala, ao sul de Abu Tig.

Localizada na rota de caravanas entre o Sudão e o Egito, padres coptas realizaram a operação em meninos com idades entre oito e dez anos. Apesar de suas alegadas habilidades, dois em cada três morreram. A pesquisa de diferencial de preço da Hogendorn indica que a taxa está correta. Após a proibição dessas operações, o Cordofão e o Darfur forneceram eunucos. Só o Sudão fornecia, segundo estatísticas confiáveis, cerca de 3.800 eunucos por ano, cativos provenientes da Abissínia e dos países vizinhos, sendo recolhidos por grupos de guerra e sequestro,  ou por compra, entre a população jovem masculina dessas regiões. Tais crianças são levadas para a fronteira do Sudão e as taxas alfandegárias são pagas por sua passagem através da fronteira, sendo a taxa de cerca de dois dólares por cabeça. Por outro lado, a mortalidade entre eles chega a cerca de 33 por cento. Esses eunucos simplesmente castrados rendiam cerca de US $ 200 cada. A grande fábrica de eunucos do país, no entanto, encontra-se no Monte Ghebel-Eter, em Abou-Gerghè; neste local segundo o autor,  existe um grande mosteiro copta, onde as infelizes criancinhas africanas estão reunidas, nas palavras de Remondino;

“O edifício é uma estrutura grande e quadrada, semelhante a uma antiga fortaleza; no andar térreo fica a sala de cirurgia, com todos os aparelhos necessários para realizar essas horríveis operações. Os monges coptas têm um negócio próspero e fornecem a Constantinopla, Arábia e Ásia Menor muitos de seus eunucos completos, muito procurados e caros.”

Segundo ele, nesse local fabricam os dois graus - aqueles que são simplesmente castrados e aqueles nos quais a ablação completa de todos os órgãos foi realizada, o último trazendo de $ 750 a $ 1000 por cabeça, já que apenas os mais robustos são levados para esta operação, que, no entanto, mesmo no mosteiro, tem uma mortalidade de 90 por cento. Diz Remondino:

“ A ferida resultante necessariamente desnuda os ossos púbicos e deixa uma ferida grande e aberta que não cicatriza bem. Uma curta cânula ou cateter de bambu é então introduzida na uretra, da qual pode se projetar cerca de cinco centímetros, e nenhuma atenção é dada a qualquer hemorragia arterial; toda a ferida é simplesmente engessada com algum composto hepático e a pequena vítima é então enterrada na areia quente até o pescoço, sendo exposta aos raios quentes e abrasadores do sol; a areia e a terra são fortemente comprimidas ao redor de seu corpinho de modo a impedir qualquer possibilidade de qualquer movimento por parte da criança, sendo a perfeita imobilidade considerada pelos monges o principal elemento necessário para promover um bom resultado.”

Na sua pesquisa, estima-se que 35.000 pequenos africanos eram sacrificados anualmente para produzir a cota média sudanesa de seus 3.800 eunucos. Outro ponto importante era que os  eunucos foram chamados para todos os tipos de funções e responsabilidades: por exemplo, os homens de conselho, tutores não tanto das mulheres e da casa doméstica, mas do palácio, lugares de reunião e audiências, salões ou jardins reservados para entretenimento, até mesmo lugares sagrados. Em Medina, dizem, que os  “ servos e guardiães desta nobre mesquita são abissínios ou outros escravos, que têm boa aparência, aparência limpa e usam roupas elegantes. Seu líder é chamado de xeque dos servos e se assemelha aos grandes emires por sua aposta.”, nos declara Remondino.

Com grandes responsabilidades, esses escravos privilegiados pesaram nas decisões, forjaram grande fama, acumularam fortunas, muito geralmente eles próprios possuíam bens de todos os tipos e, de modo natural,  viram-se por sua vez senhores de um bom número de escravos. Estes também foram encontrados em exércitos, raramente tropas/ oficiais subalternos, mas em postos de comando. Ou, para o maior número acreditar nos contos e nas iluminações da corte sobre ela, familiares e criados do príncipe, assistentes durante cada recepção ou cerimônia pública, para fazer número e impressão, sinal de munificência.

Os eunucos negros, tiveram alguns a alcançar altas funções e desempenharam um papel determinante nos assuntos do Estado na Idade Média. Pode fornecer vários exemplos:

o eunuco negro Kāfūr al -Ikhshīdī,  que se tornou regente do Egito, ou ainda Muflih, “O Negro”, favorito do califa al -Rādī  encarregado de formular a política do Estado.  O príncipe ‘Adud al -Dawlah tinha por camarista um eunuco negro chamado Shakr (“açúcar”) do árabe, que foi a única pessoa a alcançar a honra, disputada por todos, de ganhar a confiança deste senhor desconfiado e tirânico, esses são alguns infinitos casos.

 

Mas,  será que o islã legitima a escravidão? O que é fato nisso tudo.

Nesse espaço, me baseio na obra de um estudioso de jurisprudência islâmica , o Jonathan C. Brown, ( Slavery and Islam).  No capítulo ( Slavery in the Quran & Sunna); É dito que o  Alcorão não é, antes de mais nada, um livro de leis, desse modo,  não é surpreendente que trate dos aspectos legais da escravidão em apenas alguns contextos. Ele permite o casamento entre homens e mulheres muçulmanos livres e escravos, além de permitir que o proprietário de uma escrava a tome como surriyya (plural sarārī) - uma escrava cujo mestre tem uma relação sexual com ela. Segundo ele, ao citar o Alcorão e as Suras;

“ (Alcorão 2: 221, 4:25). * O Alcorão atribui a uma escrava culpada de ofensa sexual metade da punição de uma mulher livre (4:25) e diz aos proprietários que aceitem acordos de alforria caso os escravos os proponham (24:33). Mas, de longe, as menções mais marcantes da escravidão no Alcorão vêm nas muitas exortações aos escravos livres, seja como uma boa ação feita por amor a Deus ou como uma expiação exigida por certos pecados ou crimes”.

Em alguns versículos, é revelado no início da carreira do Profeta estabelecer que aos muçulmanos que tiveram a escolha de dois caminhos e que o caminho deles é o difícil (ʿaqaba).  É libertar um escravo, alimentar o faminto, o órfão, seus parentes e estranhos (90: 12-16). Por sua vez, o Alcorão também inclui escravos entre os grupos que podem receber o imposto de caridade Zakat exigido de todos os muçulmanos. Para Brown, isso foi  amplamente entendido como oferecer ajuda aos escravos que tinham acordos de mukataba a fim de ajudar a completar a compra de sua liberdade como está na sura; (2: 177, 9:60) .

Contudo,  o versículo do Alcorão que é visto como a âncora para a concepção do Islã de a escravidão é o comando:

“ Adore a Deus e não atribua parceiros a ele. E seja virtuoso para com os pais e parentes, para com os órfãos e indigentes, para com o vizinho que é parente e o vizinho que não é parente, para com o companheiro ao seu lado e o viajante, e para com aqueles que você possui por direito (ou seja, escravos). (4:36)”

Portanto, o Alcorão define a alforria como uma forma explícita de expiação por uma variedade de pecados e delitos. Um muçulmano que acidentalmente mata outra pessoa deve libertar um escravo e pagar uma indenização à família da vítima (4:92).

 Um muçulmano que por sua vez,  quebra seu juramento deve libertar um escravo ou, se não puder, alimentar dez pessoas necessitadas ou, se não puder fazer isso, jejuar por três dias (5:89).

Um homem muçulmano que retorna para sua esposa após ter feito um juramento de renúncia (ẓihār) deve libertar um escravo ou, se incapaz, alimentar sessenta necessitados ou, se não puder fazer isso, jejuar por dois meses (58: 3).

Por fim, a legitimidade da escravidão no Alcorão não é evidente, por sua vez, as passagens existem no que tange à conduta ou tratamento de escravos que podem ser tomadas por um proprietário mulçumano, apesar desse artigo não ser uma análise estritamente e de modo específico relacionada às Exegeses que podem ser feitas a jurisprudência islâmica, podemos ter uma noção básica desse fenômeno na escritura sagrada dos mulçumanos.

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