Texto de: Prof. Dr. Nazeer Ahmed

O resgate recebido pelo sultão marroquino, Ahmed al-Mansur al-Saadi, dos portugueses, após a batalha de Alcácer-Quibir (em 1578), forneceu-lhe apenas um alívio financeiro temporário. As fontes tradicionais de renda para o emir, ou seja, comércio e agricultura, foram se sentindo cada vez mais fora de alcance.

No norte, o comércio do Mediterrâneo era monopolizado pela cidade-estado de Gênova (na Itália). Alguns dos comerciantes magrebinos trabalhavam em parceria com os comerciantes genoveses e enriqueciam, mas os benefícios não se revertiam para a população em geral ou para o emir.

No oeste, Portugal e Espanha ultrapassavam o Magrebe e estabeleciam comércio direto com a costa da Guiné. No sul, o poderoso Império Songai tinha se expandido, e ocupado as minas de sal de Taodini nas bordas da Mauritânia.

Os sultões do Magrebe foram privados das receitas fiscais sobre as minas de sal. Os berberes nas Montanhas Atlas e os agricultores assentados nos vales prestavam maior fidelidade as irmandades sufis locais do que aos emires que estavam envolvidos em lutas de poder constantes.

O dinheiro das doações que vinham de devotos em romarias aos mausoléus sufis era um tipo de receita voluntária. Este era o dinheiro que não estava disponível para os emires. A ausência de uma autoridade central forte o suficiente para recolher impostos e pagar um exército permanente, criou um círculo vicioso.

Um forte poder central era necessário para cobrar impostos, que eram precisos para sustentar a autoridade. Isto criou um círculo vicioso de tensão entre o Estado e a sociedade.

As forças armadas dos emires tornaram-se um instrumento de coerção para forçar os comerciantes ricos do Mediterrâneo e os agricultores pobres nas montanhas do Atlas a pagarem impostos. Coerção esta que destruiu a pouca legitimidade que ainda restava nos emires aos olhos do povo.

Resultado de imagem para Ahmad al-Mansur
Reconstrução artística do sultão Ahmad al-Mansor e mapa de seu império pelo jogo Civilization V.

Esta questão, a legitimidade do governo, é um elemento chave para a compreensão do desenrolar dos acontecimentos históricos no Magrebe, que influenciaram a luta entre os poderes da costa atlântica ocidental e, finalmente, tiveram um impacto sobre a história do mundo.

Em busca de novas receitas, o emir Ahmed al-Mansur, campeão de Alcácer-Quibir, lançou seus olhos para o sul, rumo ao Sudão. O Sudão histórico, que tradicionalmente era o fornecedor de ouro para o Magrebe, abraçava toda a faixa sul-africana do Saara, e não deve ser confundido com o estado moderno do Sudão.

Desde o século oitavo, a África do Norte estava engajada com um comércio pacífico e próspero, com as terras ao sul do Saara, para onde exportavam utensílios de metal, tecido fino, e cavalos em troca de ouro, marfim, nozes de cola e pimenta do Benin (Nigéria).

No século XI, membros de tribos das savanas, os almorávidas, irromperam em uma série de conquistas, e capturaram toda a África Ocidental e Espanha, um território que se estendia de Gana as fronteiras da França.

O comércio trans-saariano promovia a introdução do Islã e os africanos passaram a fazer parte da comunidade universal dos muçulmanos. Sultões muçulmanos que ocupavam um lugar de honra entre os emires do mundo, governavam os poderosos impérios do Mali (século XIV) e Songai (século XV).

Askia Muhammad, também conhecido como Askia, o Grande, em cujo reinado o Império Songai atingiu o seu apogeu (1493-1528), foi um patrono do aprendizado islâmico e procurou governar o reino de acordo com a shariah (lei islâmica).

Ele realizou o hajj (peregrinação a Meca) com uma grande comitiva em 1496 e foi nomeado o chefe espiritual do oeste do Sudão pelo sharif de Meca. Askia Muhammad buscou e recebeu conselhos de estudiosos bem conhecidos, entre eles o célebre al-Maghil (d. 1504) da Argélia. As cidades comerciais do Rio Níger: Timbuktu, Gao, Jenna, Kumba, Tekra e Dendi tornaram-se centros de aprendizado com bibliotecas extensas.

Bem conhecidos e respeitados estudiosos ensinavam em suas grandes mesquitas. Interações eruditas entre Timbuktu, Sijilmassa (no Marrocos), Cairo (no Egito), Meca e Medina eram comuns. Porém, a paz destas transações intelectuais estavam prestes a serem destruídas pelos canhões de Ahmed al Mansur.

Resultado de imagem para Askia Muhammad
Reconstrução artística de Askia Muhammad.

A ocupação das minas de sal em Taodini e Taghaza pelo Império Songai eram inaceitáveis para o emir saadiano. Primeiramente, Ahmed al-Mansur enviou pequenos contingentes para recuperar as minas de sal (1580).

Mas distâncias eram grandes e ele não conseguia segurar as cidades contra ataques vindos do sul. As hostilidades só serviram para atrapalhar ainda mais o comércio entre o Sudão e o Magrebe.

Caravanas comerciais evitavam a rota oeste através do Marrocos e se mudavam para o leste, rumo as áreas centrais do Saara até a costa tunisina. Diante de tal situação, o desesperado al-Mansur decidiu então invadir o Império Songai, que ele acreditava que iria ceder-lhe o ouro que ele precisava para pagar seu exército.

A força de mais de 4.000 soldados foi reunida. Composta por berberes, tuaregues, turcos, árabes e prisioneiros de guerra portugueses, mouriscos recém expulsos da Espanha e renegados europeus também faziam parte da marcha.

A força foi bem equipada com mosquetes e canhões. As novas armas de fogo não eram conhecidas no Sudão da época, e desempenharam um papel decisivo nos eventos que se seguiram.

A invasão saadiana foi rejeitada pelos ulemás (clérigos muçulmanos) do Marrocos, bem como pelos comerciantes. Os ulemás tomaram uma posição com base na inadmissibilidade de um governante muçulmano invadir os territórios de outro.

Os comerciantes estavam preocupados que a invasão fizesse aumentar as rupturas sociais e perturbasse ainda mais o comércio. Mas al-Mansur estava tão carente de dinheiro que ele não viu nenhuma escolha a não ser continuar com esta aventura mal aconselhada.

As forças marroquinas atravessaram o Saara e apareceram nas fronteiras do Sudão em 1592 lideradas por Judar Pasha, um cristão espanhol que havia abraçado o Islã.

O Império Songai estava longe de ser o poder coeso que foi quando governado por Askia Muhammad. Após a morte do grande Askia, o império experimentou um longo período de instabilidade sob uma sucessão de monarcas.

Songai não era um reino monolítico habitado por uma única tribo, mas um conglomerado de tribos que deviam sua lealdade ao imperador, algumas de boa vontade e algumas por coerção. Como a instabilidade aumentada, as tribos mossi no sul do Sudão e as tribos hausa no leste se rebelaram.

Apesar dos distúrbios, o reinante Askia Ishaq II levantou um grande exército e se encontrou com a força marroquina em Tondib. Os soldados de Ishaq II eram bem disciplinados, mas os mosquetes e canhões marroquinos ganharam o dia.

Enfrentando a derrota, Ishaq retirou-se para o leste, na base de Dendi. A partir daqui, songaís continuaram a guerra em forma de guerrilha. O saadianos tomaram Timbuktu e Gao e se espalharam ao longo do rio Níger para ocupar Jenné, onde houve uma grande batalha.

Havia uma grande quantidade de destruição e caos. As grandes cidades ao longo do Níger foram saqueadas. Bibliotecas foram queimadas, e estudiosos pereceram. O legado desta invasão foi profundo em seu impacto sobre a África Ocidental muçulmana.

Ahmed al Mansur se saiu parcial e temporariamente bem sucedido na resolução de seus problemas de receita. As grandes cidades de Timbuktu, Gao e Jenné foram tão completamente destruídas que nunca recuperaram sua antiga glória como centros mundiais de aprendizagem.

As rotas de comércio trans-saarianas ao longo do Marrocos ocidental e do sul através da Mauritânia foram fortemente perturbadas, empobrecendo ainda mais tanto o Sudão como o Magrebe.

Embora Ishaq II continuasse com sua ação de retaguarda, o Império Songai, que derivava muito de seu poder dos prósperos centros de comércio ao longo do rio Níger, nunca recuperou a sua antiga importância. A agricultura sofreu, aumentando a desintegração social, abrindo as portas dos territórios songaís a invasões dos mossi pelo sul e tuaregues no norte.

Muitos dos homens instruídos de Timbuktu migraram mais para o leste ao longo do rio Níger, ao próspero reino de Kanem-Bornu, fornecendo um impulso à aprendizagem islâmica em Katsino e Kano (norte da Nigéria).

O saadianos não conseguiram controlar Songai por muito tempo. Embora reforçados por contingentes adicionais, eles eram muito poucos em número para conquistar toda a região e para policiar as rotas comerciais que conduziam o ouro das minas de Gana através do vale do Níger para o Norte da África.

Eles logo se cansaram, e por volta de 1618 tinham desistido de seus esforços para subjugar o Sudão. Aos agora governantes saadianos de Timbuktu, Gao e Jenné foram dados o grandioso título de paxá, e deixados à sua própria destreza para gerirem os negócios locais.

Estes governantes casaram-se com a população local. Os filhos destes casamentos (com os invasores marroquinos, andaluzes/mouriscos, turcos, etc) vieram a ser conhecidos como arma (do árabe ar-rumah, ou fuzileiros).

Os arma continuaram a governar em cooperação com os agentes de poder do Sudão até 1700, quando perderam sua força e foram absorvidos pelo meio africano. Em retrospectiva histórica, o principal beneficiário da invasão marroquina foi o comércio transatlântico de escravos.

O colapso dos impérios Mali e Songai fez multiplicar a guerra inter-tribal na África Ocidental (agora sem poderes centralizados). Estas guerras adquiriram maior intensidade com os europeus alimentando-as com armas de fogo e rum.

Os soldados do lado perdedor de cada guerra tribal eram capturados como escravos. Alguns foram transportados para a região da Sene-Gâmbia e eram vendidos para os europeus. Entre estes escravos, estavam um grande número de muçulmanos.

Fonte: