A guerra wahhabi-ottomana ou otomano-saudita foi um conflito de quase uma década no inicio do século XIX, que aconteceu entre os anos de 1811 à 1818. O Eyalet, província do Egito otomano, combateu ferozmente o insurgente Emirado de Diriyah, na Península Arábica, bem como a nova corrente religiosa difundida por ele, o wahabsimo.

Contudo, para entender a natureza desse choque de espadas e ideias, precisamos compreender o que é o wahabismo e compreender a sua origem.

O que é o Wahabismo?

O wahabismo foi uma doutrina desenvolvida e articulada em meados do século XVIII pelo clérigo árabe Muhammad Ibn Abd al-Wahhab (d. 1792). No coração do movimento, estava um reformismo firmemente puritano que visionava um suposto retorno às práticas das primeiras gerações do Islã, o chamado “salaf al-Salih”.

Como parte de seu programa de reformas, Ibn ‘Abd al-Wahhab acreditava que o Islã deveria ser purificados de todos os santuários e túmulos, escolas de jurisprudência e teologia tradicionais, e todo o legado filosófico milenar que ele via como uma inclinação a tendências politeístas heréticas.

Ele também considerou a grande maioria dos muçulmanos da época, para quem todo este legado representava um papel central na espiritualidade e na prática religiosa, e que se opunham a seus ensinamentos como infiéis.

Muçulmanos xiitas e sunitas (principalmente aqueles apegados ao sufismo) foram especificamente selecionados pela doutrina wahabi como politeístas e fora do rebanho do Islã.

O wahabismo apresentava aos muçulmanos uma nova visão de Deus, da natureza do Profeta e tudo o que a religião tinha sido por séculos até então, juntamente com duas escolhas: aceitação ou espada. Assim, a doutrina do takfir (excomunhão) e uma iconoclastia agressiva foram dois aspectos definidores do wahabismo desde o seu início.

Embora inicialmente evitado e rejeitado, pela população sunita de Najd no centro da Península Arábica e até pela própria família de Ibn Abdul al-Wahab, seus pontos de vista encontraram uma forte adesão e apoio após sua aliança com um senhor da guerra árabe.

Muhammad Ibn Saud, em 1744, viu a potencial utilidade política de tais doutrinas, o que legitimariam suas conquistas e pilhagens dentro do Império Otomano. Apoiado pela força militar e política de Ibn Saud, Ibn Abd al-Wahhab foi capaz de concretizar sua visão de uma Arábia purificada de todas as “inovações” na religião.

Ibn Saud protegeria e propagaria as doutrinas da missão wahhabi, enquanto Ibn Abdul Wahhab apoiaria o governante, fornecendo-lhe “legitimidade e poder”. Ibn Abdul Wahhab prometeu a Ibn Saud:

Quem defender sua mensagem, por meio dela, governará terras e homens.

Ibn Saud abandonaria as tributações “não-islâmicas” das colheitas locais e, em troca, Deus poderia compensá-lo com o butim de saques que excederiam o que ele renunciou.

A aliança entre a missão Wahhabi e a família Al Saud resistiu há mais de dois séculos e meio, sobrevivendo à derrota e ao colapso. As duas famílias se casaram várias vezes ao longo dos anos e, na futura Arábia Saudita, o ministro da religião sempre seria um membro da família Al Ash-Sheikh, ou seja, um descendente de Ibn Abdul Wahhab.

A expansão do movimento

Ao longo do século XVIII, o movimento expandiu violentamente as fronteiras do nascente Emirado de Diriyah e continuou a crescer em toda a Arábia, estendendo-se para a terra do Hijaz, abrangendo as cidades sagradas de Meca e Medina por volta de 1805.

Nas terras conquistadas, milhares de muçulmanos foram abatidos e centenas de relíquias históricas e santuários foram destruídos. Este foi especialmente o caso na cidade de Taif, que tentou resistir aos wahabitas. Como resultado, a cidade foi saqueada, a população masculina assassinada, e as mulheres e crianças levadas como escravos.

Por volta de 1802, o Emirado de Diriyah tinha conseguido invadir o sul do Iraque, então sob controle otomano. Um dos piores massacres, ainda maior do que o de Taif, foi cometido em Karbala, em abril de 1802. Pouco antes do início do mês sagrado de Muharram, durante a peregrinação ao santuário do Imam Hussein, o neto do profeta Muhammad.

Uma testemunha ocular, J. B. Rousseau, descreveu os eventos que ocorreram da seguinte forma:

Temos visto recentemente um terrível exemplo do fanatismo cruel dos wahabitas, no terrível destino da mesquita do Imam Hussein. Uma incrível riqueza era conhecida por ter sido acumulada naquela cidade. Os xás persas, talvez, nunca tiveram algo parecido em seus tesouros.

Durante séculos, a mesquita do Imam Hussein era conhecida por ter recebido doações de prata, ouro, pedras preciosas; uma grande quantidade de raridades […] até mesmo Tamerlão poupou aquele lugar. Todo mundo sabia que a maior parte dos despojos ricos que Nadir Shah tinha trazido de volta de sua campanha indiana tinham sido transferidos para as mesquitas dos imames Hussein e Ali, juntamente com sua própria riqueza.

Agora, a enorme riqueza acumulada anteriormente, excitou a avidez dos wahabitas por algum tempo. Eles têm sonhado continuamente com saques àquela cidade (Karbala) e tinham tanta certeza do sucesso que seus credores fixaram o pagamento da dívida para o feliz dia quando suas esperanças se tornariam realidade.

Esse dia chegou finalmente … 12.000 wahhabis repentinamente atacaram a mesquita do Imam Hussein; depois de tomar mais despojos do que eles nunca haviam tomado depois de suas maiores vitórias, eles colocaram tudo a ferro e fogo […] Os idosos, mulheres e crianças, todos morreram pela espada dos bárbaros.

Além disso, diz-se que sempre que eles viam uma mulher grávida, eles a estripavam e deixavam o feto sobre o sangrento cadáver da mãe. Sua crueldade não podia ser satisfeita, não cessavam de seus assassinatos e sangue fluía como água. Como resultado da catástrofe sangrenta, mais de 4000 pessoas morreram.

Os wahabitas levaram seus saques nas costas de 4000 camelos. Após o saque e assassinatos que destruíram o santuário do Imam Hussein, ele se converteu em uma trincheira de abominação e sangue. Eles infligiram o maior dano nos minaretes e cúpulas, acreditando que essas estruturas eram feitas de tijolos de ouro.

[Rosseau, Description, pp. 74–75]

Os soldados de Ibn Saud também atacavam caravanas comerciais otomanas. O emir saudita denunciava o sultão otomano, e punha em questão a validade e legitimidade de seu califado.

O fim do reinado dos Wahhabi

Em dezembro de 1807, Muhammad Ali, o paxá do Egito, foi ordenado a esmagar o Emirado Diryah pelo sultão Mustafa IV, porém conflitos internos dentro do Egito o impediram de dar a atenção devida ao movimento wahhabi. Os homens do paxá não conseguiram recuperar as cidades sagradas até 1811, durante o reinado do sultão Mahmud II.

No entanto, levaria até setembro de 1818 para que o estado wahhabi acabasse com seu reinado de terror. Ibrahim Pasha, filho de Muhammad Ali, assumiu a campanha em 1817. Obtendo o apoio das tribos árabes voláteis pela habilidade diplomática e presentes generosos, avançou pela Arábia central para ocupar as cidades de Unaizah e Buraidah.

Ele uniu-se com a maioria das principais tribos e marchou para a capital wahhabi, Diriyah. Sua marcha para Diriyah foi atormentada por diversas emboscadas armadas por membros do movimento. Eles chegaram em Diriyah em abril de 1818. Levou até setembro para que os wahhabis se rendessemm, em parte devido ao exército mal treinado de Ibrahim.

Diriyah foi destruída em junho de 1819, e guarnições egípcias foram postadas nas principais cidades próximas. O chefe do emirado na época, Abdullah Ibn Saud, foi enviado a Istambul para ser executado. Diz-se que pouco antes de sua decapitação, o líder de um movimento puritano que considerava música um pecado, foi forçado a ouvir o som do alaúde.

A maioria dos líderes políticos derrotados foram bem tratados, mas os otomanos foram muito mais duros com os líderes religiosos que inspiraram o movimento wahhabi, executando Sulayman ibn Abd Allah e outros notáveis religiosos, visto que suas visões extremistas representavam uma ameaça muito maior do que líderes políticos ao mundo islâmico da época.