Diferente do que conta o estereótipo dos filmes e séries, os andalusos foram o povo muçulmano que mais se adaptou militarmente aos seus oponentes cristãos, mais até que os otomanos ou que os muçulmanos da Sicília. O que faz sentido quando pensamos que, por boa parte da sua história, a Espanha Muçulmana agiu de forma autônoma nas suas guerras contra os reinos cristãos peninsulares.

Um fator decisivo para esse arranjo vinha do próprio intercâmbio militar ibérico, que acontecia de pelo menos duas formas: uso de equipamento estrangeiro e uso de mercenários estrangeiros. Essa tendência, pelo menos em termos de equipamento, existe desde o Império Franco Carolíngio, senão até mesmo antes:

“A distribuição de lâminas Ulfberth, da Islândia à Rússia, revela a importância do comércio armamentista franco. [...] Um escritor árabe do início do século X, Ibn Fadlan, chegou a ressaltar que os vikings na Rússia carregavam espadas do tipo franco.

Ao sul do Império, os sarracenos também reconheciam a qualidade das espadas carolíngias, conforme é indicado pela sua demanda de 150 destas armas como parte do resgaste do arcebispo Rotland de Arles, 869. No entanto, os francos parecem ter estimado as espadas sarracenas de forma igualmente elevada, com um dos vassalos de Carlos Magno sendo conhecido por capturar dos mouros ‘spata india cum techa de argento parata’. ‘Spata India’ significa literalmente uma espada indiana [...] O Conde Eccard de Macon também deixou uma ‘spata indica’ no seu testamento [...] uma spata índia era uma espada sarracena”. (COUPLAND, 1990)

Exemplos de “espadas Vikings”, que encontraram uso na península ibérica, ainda que de forma limitada, tanto por muçulmanos quanto por cristãos nativos. Os exemplares data de 800 a 1050 d.C.

 

Quanto aos mercenários, é interessante notar que ambos os lados fizeram uso das tropas do outro até o fim da Reconquista. Caso célebre entre cristãos é a Guarda Moura dos Reis de Castela, suprimida no reinado de Isabela, a católica. Já do outro lado, mercenários cristãos estavam presente não só na Espanha Muçulmana, mas até mesmo na África:

“[Ibn al-Khatib, escrevendo no século XIV, afirma que o exército granadino era dividido em dois corpos distintos: os andalusos, comandados pelo Amir ou por alto dignatário de Estado, e os regimentos mercenários africanos, divididos em unidades tribais com seus próprios oficiais e comandados por um príncipe marinida ou outro nobre de alto grau [...] Adicionalmente, manteve-se a prática tradicional de se empregar mercenários cristãos. Quando Ibn Hud marchou libertar Córdoba, em 1236, ele foi acompanhado por 200 cavaleiros espanhóis num exército de 4 ou 5 mil combatentes montados e 30 mil apeados.” (HEATH, 1989, p. 26)

“Outra fonte inesperada de tropas eram mercenários cristãos, embora estes fossem mais um fenômeno dos exércitos muçulmanos do Norte da África que o granadino. Estes soldados, predominantemente catalães, castelhanos e portugueses, foram empregados em Tunis e em Tlemcen, em particular, de meados do século XIII até pelo menos meados do século XV. Aqueles de Tlemcem forneciam os próprios guarda-costas do sultão marinida. No século XIV, Ibn Khaldun nos diz que eles eram favorecidos por causa da sua firmeza e habilidades de combate cerrado. Havia renegados espanhóis cristãos na guarnição de Malaga na sua queda, em 1487”. (HEATH, 1982, p. 33)

A condição fronteiriça, situando Al-Andaluz como um limiar entre dois mundos bem distintos, assim como os intercâmbios militares e o próprio interesse andaluso em equipamento ocidental abriu progressivamente esse setor do Mundo Islâmico para maiores grandes influências ocidentais. Por volta do século XIII, o uso de armamento cristão tinha se desenvolvido a tal ponto que passou a ser quase impossível distinguir ambos os exércitos simplesmente pelo equipamento.

Os muçulmanos haviam aculturado ao ponto das espadas, lanças, bestas, escudos, elmos e armaduras terem se tornado idênticos aos dos cristãos. É claro que equipamento norte-africano nunca foi definitivamente abandonado, mas definitivamente não se tratava mais do estilo predominante.

Mesmo os chamados grandes elmos, popularmente associados com os cavaleiros das Cruzadas, viraram elmos andalusos; conhecidos localmente como “Elmos de Saragoça”, fazendo referência ao local (uma cidade portuária) onde eles provavelmente começaram a ser produzidos.

“A adoção de armas segundo o modelo cristão se vê documentada nas Cantigas, onde parte da cavalaria muçulmana têm um caráter marcadamente pesado, com elmos fechadas, capacetes, almógares, lorigas (hauberks), manoplas, bafoneiras e escudos” (PASTOR, 2013, p. 9)

“Cavalaria deste tipo, equipada com armaduras inconfundíveis no estilo europeu e usando a sela mais alta, preferida entre seus inimigos cristãos, foram introduzidos em grande número por Maomé I de Granada (1235-73). Eles adotaram as mesmas táticas de choque empregadas pelos cavaleiros espanhóis cristãos, mas na batalha ainda eram apoiados pela tradicional cavalaria leve armada com dardos. Essa cavalaria pesada aparece com frequência em fontes espanholas do século XIII, notadamente os mss. 'Cántigas', de onde esta figura foi tirada. Nem sempre o surcote era utilizado, nem o capuz de tecido (que esconde a coifa de malha). Alguns substituíam o turbante por uma coifa e elmo, enquanto outros se assemelhavam ainda mais aos cavaleiros cristãos (embora pelo menos alguns destes sejam provavelmente mercenários cristãos). O Kitab al-Mugrib de Ibn Sa’id descreve o equipamento da cavalaria pesada granadina no século XIII como armadura de malha completa, escudo pesado suspenso nas costas (presumivelmente de formato europeu ocidental como mostrado aqui, embora adargas também sejam representadas em uso por tais cavaleiros no mss das 'Cántigas'), um 'capacete sólido' e uma lança longa e pesada com um pennon,

 Ibn Sa'id acrescenta que cada soldado 'tinha seu símbolo pelo qual ele sempre seria reconhecidos [ie. heráldice andaluza]. [...] Ibn al-Khatib acrescenta que, embora a armadura do tipo descrito acima tenha sido usada "anteriormente", a cavalaria pesada de sua época (início do século 14) era equipada com corseletes de malha menores ("curtos e leves"), capacetes leves, longos e delgadas lanças, escudos de couro e selas berberes; mudança que ele considerava uma melhoria. 83a mostra um tipo de elmo de barril usado por alguns cavaleiros pesados, a coroa alta presumivelmente projetada para acomodar um turbante. Outros usam heaumes normais da Europa Ocidental. Parece provável que ambas sejam formas dos ‘elmos de Saragoça' mencionadas em muitas fontes. (HEATH, 1989)

Manuscrito cristão de 1220, representando uma cena bíblia do antigo reino de israel. A exoticidade do equipamento confundiu muitos historiadores sobre se os guerreiros retratados eram cristãos ou muçulmanos, embora provavelmente tenham sido, de fato, muçulmanos andalusos.

A Reforma Militar trazida no início do século XIV reverteu o movimento progressivo de séculos até então, alinhando o estilo de armamento de Granada àquele utilizado no Norte da África, embora peças mais leves de armadura, como cotas de malha ou conjuntos de cotas de malha e brigandinas, tenham persistido entre um grupo mais seleto de combatentes.

Apesar dessa Reforma Militar, a besta nunca deixou de ser uma arma de excelência entre os granadinos, algo que os destacava de outros muçulmanos e, de certa forma, dos próprios cristãos, que com exceção de Portugal, não faziam uso de besteiros de cavalaria:

“Autores do século XIV como Ibn al-Labbana e Ibn Hudayl (que escreveu para Maomé IV em 1390s) registram a existência de cavalaria granadina armada com bestas. No início desse período, Ibn al-Khatib alega que o ‘arco franco’, como era chamado, era de uso mais mais popular entre os granadinos que o arco árabe.  Por volta do século XV, os granadinos eram reconhecidos como atiradores afiados com a besta; Pulgar, que escrevey no final do século, é uma de várias fontes cristãs a exaltar a precisão dos seus besteiros, comentando que eles treinavam desde o início da infância.”  (HEATH, 1982, p. 135)

Besteiro andaluso com pavês ocidental e a besta, ou “arco-franco”.

Bibliografia:

COUPLAND, Simon. Carolingian Arms and Armor in the Ninth Century. Viator: Medieval and Renaissance Studies, vol. 21, 1990. Disponível em: <https://deremilitari.org/2014/02/carolingian-arms-and-armor-in-the-ninth-century/>. Acesso em 3 de maio de 2021.

HEATH, Ian. Armies of Feudal Europe 1066 – 1300. Wargames Research Group, 1989.

HEATH, Ian. Armies of Middle Ages vol. 1. Wargames Research Group, 1982.

REVISTA DE HISTORIA. Enrique IV de Castilla el Impotente. 2016. Disponível em: https://revistadehistoria.es/enrique-iv-de-castilla-el-impotente/. Acesso em 1 de maio de 2021