Uma de suas características mais marcantes, e tida como verdade indubitável pela maioria de seus adeptos e denominações, a trindade do Cristianismo, que não é compartilhada pelas outras religiões abraâmicas, é hoje além de um dogma, uma posição teológica esmagadoramente dominante, com poucas e reclusas denominações ou indivíduos cristãos a ela se opondo. Dizendo que existe um deus que se divide em três pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo, muitos e diferentes são os argumentos cristãos para justificar essa aparente contradição (teo)lógica, que coloca os cristãos à parte de seus irmãos em Abraão, que creem em apenas um Deus indivisível.

Apesar de hoje muitos historiadores sérios concordarem que a doutrina da trindade seja um desenvolvimento tardio ao próprio cristianismo, ou no mínimo que o antitrinitarismo seja tão antigo quanto o trinitarismo, essa “heresia” ameaçadora era forte o suficiente nos séculos II até o V para causar pânico na ala trinitarista da Igreja Cristã, especialmente sob as formas do Adocionismo e do Arianismo.

Essas ditas heresias, todavia, acabaram sumindo dos anais da história como fruto da vitória política (e, consequentemente, teológica) do trinitarismo, mas suas ideias não. Com o advento da Reforma Protestante no século XVI, criou-se um ambiente onde o livre-pensamento e o livre-exame das Escrituras cristãs podia ser exercidos, o que levou muitos a questionaram não apenas a autoridade papal e os rituais do catolicismo romano, mas as assim-chamadas verdades de fé, como a própria Trindade.

Nesse contexto, surgiram alguns teólogos - geralmente vindos do movimento protestante reformado (geralmente associado ao calvinismo de João Calvino) – que passaram a duvidar e a falar contra a doutrina da trindade. Alguns deles, como o espanhol Michel Serveto (1511 – 1553), chegaram mesmo a basear parte de seu discurso antitrinitário no Islã, aludindo ao Alcorão e seu discurso de unicidade divina estrita, chegando a ser indagado em seu interrogatório pelas autoridades reformadas de Genebra (para onde havia fugido)“se ele não sabia que sua doutrina era perniciosa, considerando que ele favorece judeus e turcos, sendo com elas condescendente, e se ele não estudou o Alcorão para refutar e contestar a doutrina e a religião que as igrejas cristãs defendem [...]”. Essa interrogação pela inquisição protestante de Genebra (à época governada pelo próprio reformador Calvino) levaria Serveto à prisão e à morte na fogueira.

Outros teólogos fizeram o mesmo, como o italiano Fausto Sozzini, que na Comunidade da Polônia-Lituânia fundou sua própria igreja a partir de fiéis reformados; devido à liberdade de religião incomum que vigorava na Comunidade, a “Irmandade Polonesa” de Sozzini, ou Socínio, pôde existir sem muitos problemas. Na Transilvânia, os húngaros Mátthias Vehe e Férenc Dávid criaram a Igreja Unitária da Transilvânia, que existe até hoje na região dentre a minoria húngara da Romênia.

Um desses teólogos antitrinitários mais curiosos – e desconhecidos – todavia, é o reverendo alemão Adam Neuser, que, escapando da morte por sua crença num Deus único, viria a fugir para o Império Otomano e se converter ao Islã.

Nascido por volta de 1530 na vila alemã de Gunzehausen, então parte do Sacro Império Romano-Germânico. Na década de 1560, ele já atuava como pastor em igrejas da cidade da cidade de Heidelberg. Ele se formou em uma época na qual o Protestantismo já estava se estabelecendo, mas o fervor da Reforma e seus debates ainda era latente, e disputas teológicas, comuns. Diante disso, no final dos anos 1560, já como reverendo reformado, Neuser acabou se envolvendo numa disputa dentro do movimento a respeito da disciplina eclesiástica (a prática de os membros da igreja convidarem um indivíduo dentro da Igreja a se arrepender de seus pecados, ou mesmo de um comportamento considerado nocivo), e tornou-se um dos principais membros da facção antidisciplinista e, portanto, anticalvinista, liderada por Thomas Erasto. Essa, no entanto, não seria a última polêmica a ser integrada por Neuser.

Sua insatisfação com o regime eclesiástico talvez tenha desempenhado algum papel em suas dúvidas sobre o dogma cristão “ortodoxo”, e ele começou a escrever extensivamente atacando a ideia cristã da trindade, juntamente de um colega e associado seu do movimento antidisciplinarista, Johann Sylvan. Junto de Sylvan, Neuser escreveu tratados que criticavam o “ídolo de três pessoas”, parafraseando um dos tratados de Sylvan. Neuser escreveu cartas atacando severamente a doutrina da trindade para outros colegas, além de outras endereçadas àquele que à época era considerado o maior inimigo da Cristandade: ao Sultão otomano. Nelas, ele elogiava o Islã e garantia ao sultão que receberia apoio na Alemanha se suas conquistas o levassem tão longe. Sua tentativa de diálogo com os turcos, “inimigos da cristandade”, foi apoiada por Sylvan, talvez ecoando uma forma mais radical do ditado protestante holandês “antes o turco do que o papa”.

Uma dessas cartas, onde ele não apenas explica suas motivações, como também expressa seus elogios e desejo de conversão ao Islã, diz:

"Eu, Adam Neuser, um cristão nascido na Alemanha e promovido à dignidade de Pregador do povo em Heidelberg, cidade onde se encontram os homens mais eruditos atualmente na Alemanha, voo para refúgio em Vossa Majestade com uma profunda submissão conjuro-vos pelo amor de Deus e do vosso Profeta, a quem a paz esteja com Deus, para me receber no número de seus súditos e aqueles de seu povo que crê em Deus. Pois pela graça do Deus Onipotente, eu vejo, eu sei, e acredito que sua Doutrina e sua Religião [islâmicas] são puras, claras e aceitáveis a Deus. Estou firmemente convencido de que minha retirada dentre os cristãos idólatras envolverá muitas pessoas de consideração para abraçar sua crença e sua religião, especialmente porque muitos dos mais eruditos e consideráveis entre eles estão aqui com os mesmos sentimentos que eu, como devo informar a Vossa Majestade de boca em boca .... Sendo promovido à dignidade de Pregador na famosa Universidade de Heidelberg pelo Eleitor-Palatino, que ao lado do imperador é o príncipe mais poderoso da Alemanha, comecei a pesar com maturidade dentro de mim as diversas dissensões e divisões de nossa religião cristã: para tantas pessoas quanto há entre nós, há tantas opiniões e sentimentos. Comecei abstraindo de todos os Doutores e intérpretes das Escrituras que escreveram e ensinaram desde os dias do Profeta Jesus Cristo. Amarrei-me apenas aos mandamentos de Moisés e ao Evangelho. Então invoquei a Deus interiormente com a aplicação mais religiosa e orei para que ele me mostrasse o caminho certo para que eu não corresse o perigo de enganar a mim mesmo e aos meus ouvintes. Então aprouve a Deus revelar-me os "Artigos de Invocação do Único Deus verdadeiro", sobre os quais o Artigo I compôs um livro no qual provo que a Doutrina de Jesus Cristo não consistia em afirmar que ele próprio era um Deus como os cristãos alegam falsamente: mas que há apenas um Deus que não tem filho consubstancial a Ele...” [Treatises Concerning the Mohametons, A. Reland, pp. 215-223]

Nesta reveladora correspondência endereçada ao inimigo número um dos cristãos (talvez, entre os protestantes, fosse o número dois, perdendo apenas para o Papa de Roma), Neuser não só declara sua intenção (e a de seus associados, aqui com certeza referindo-se, dentre eles, a Sylvan) de se converter ao Islã, tendo em vista a corrupção do Cristianismo e suas nações..., mas também imigrar para terras otomanas e a eles ajuntar-se. Isto é o que, no século XVI, os governos e governantes chamariam de “traição” e “secessão”, crimes passíveis de morte.

É claro que numa sociedade trinitário-normativa, convulsionada pelo zelo e choque religioso, começando a apresentar os sintomas das guerras religiosas que assolariam o continente em breve, essas ideias não seriam toleradas. Ainda mais pelo fato do Estado e a religião serem quase um só: cuius régios, eius religio; "de quem [é] a região, dele [se siga] a religião", ou seja, os súditos seguem a religião do governante. Neuser e seus associados agora corriam para sair da Alemanha antes que as autoridades os colocassem na mira.

Sylvan e Neuser tentaram migrar para a Transilvânia, onde já havia uma comunidade “unitária” (antitrinitária) crescente e liberdade de expressão para todos, além de ser às bordas do Império Otomano. A carta deles ao príncipe da Transilvânia foi descoberta e Sylvan - que, ao contrário de Adam Neuser, não conseguiu fugir - foi preso. Embora Johann Sylvan mais tarde tenha retratado sua fé unitária sob tortura, ele foi condenado à morte como uma espécie de “exemplo” de ortodoxia pelo Palatinado e decapitado no mercado de Heidelberg.

Execução de Johan Sylvan, um antitrinitário associado de Adam Neuser.

Neuser, que também fora preso, confessou sua “heresia”, mas conseguiu de algum modo escapar da prisão. Conseguindo fugir da Alemanha, fazendo seu caminho até as terras dos turcos, lá chegou. Ele então finalmente se converteu ao Islã, e então viajou para Istambul, onde é dito que serviu ao Sultão otomano, como havia expressado antes seu desejo de fazer. Após sua fuga e conversão, nada se sabe sobre ele, nem sobre sua nova vida, nem sobre sua morte, e é assim que se finda a curiosa e cinematográfica história do nosso pastor do Islã.

Bibliografia

  • BURCHILL, Christopher J. (1989) The Heidelberg Antitrinitarians. Bibliotheca Dissidentium 11, ed. André Séguenny. Baden-Baden: Editions Valentin Koerner.
  • WILBUR, Earl Morse (1947) A history of Unitarianism, Volume 1.
  • NIGG, Walter (1962) The Heretics: Heresy Through the Ages. Alfred A. Knopf, Inc.
  • GUNNOE, Charles D. (2011) Thomas Erastus and the Palatinate: A Renaissance Physician in the Second Reformation.