Hoje em dia, no Brasil, há uma grande quantidade de imigrantes africanos de vários países como Gana, Cabo Verde, Moçambique, dentre outros que vêm para a nação tupiniquim procurando conseguir melhores empregos e fazer dinheiro para ajudarem suas famílias, que geralmente ficam nos seus países de origem. Um desses grupos de imigrantes são oriundos do Senegal, um país islâmico quase que em sua absoluta totalidade, cuja islamização remonta à Idade Média dos grandes impérios malineses e nigerianos, como Mansa Musa. Esses senegaleses muitas vezes carregam consigo um amuleto com uma foto de um dos Sheykhs da tariqa Tijaniyya, responsável por empreender uma luta anticolonial, uma jihad, contra as forças do neocolonialismo francês que assediavam a costa Ocidental da África à época, junto de seus correligionários sufis que pegaram em armas para lutar contra as forças francófonas. Isso se dá pois uma enorme parte da população senegalesa é sufi (seja por aderência pessoal ou família, tradicional, uma vez que é comum no mundo islâmico o pertencimento a tariqas serem passados de geração em geração, com muitas ordens tornando-se essencialmente familiares), sendo a maior tariqa a Tijaniyya, que também desempenhou um importante papel na formação política e religiosa tardia do país no final do século XVIII e meados do XIX (quando ocorreu a dominação francesa).

Dado esse quadro, falaremos aqui não da Tijaniyya e seus sheykhs, também muitíssimo dignos de nota (teremos oportunidades futuras para deles tratar), mas de um místico e teólogo muçulmano wolof  (língua majoritária no que hoje é o Senegal e parte dos países vizinhos): Sheykh Ahmadou Bamba Mbakkè que, assim como os Tijanis, também enfrentou com determinação e coragem o colonialismo francês; não apenas isso, mas este grande santo (wali) sufi também foi o fundador de sua própria tariqa, que, assim como a Tijaniyya e a Qadiriyya (esta última sendo a tariqa à qual pertencia o pai de Ahmadou), foram vitais na resistência ao neocolonialismo da metade do século XIX. Seu enfrentamento, porém, foi diferente dos demais sufis e ordens: ao invés de pegar em armas, Ahmadou e seus mourides fizeram uma campanha de resistência pacífica, empenhada na desobediência civil, assim como Mahatma Gandhi e seus seguidores fariam na Índia colonial britânica, mais tarde.

Ahmadou Bamba nasceu na vila de Mbakkè, perto de Baoul, no que hoje é o Senegal, numa tribo falante do idioma wolof, pertencente a uma família de muçulmanos devotos e intelectuais. Como a grande maioria dos muçulmanos wolof – e oeste-africanos num geral – o pai de Ahmadou pertencia à ordem sufi Qadiriyya, a primeira a pisar na África Ocidental e fazer atividade missionária entre os africanos subsaarianos da região. Seu pai, que se chamava Habibullah, era um marabuto, isto é, uma espécie de capelão, professor e imã dos exércitos tribais da região, um legítimo e verdadeiro guerreiro sufi, versado nos caminhos racionais e místicos da Religião Islâmica.

Ahmadou Bamba, muito influenciado pelas práticas dos qadiris e nutrindo suas próprias ideias sociais e religiosas, foi o responsável pela fundação de uma distinta ordem sufi, a irmandade Mouridiyya, em 1883, com sua sede localizada na sua primeira dergah, na localidade um pequeno vilarejo que ele e seus habitantes estavam construíndo, que em 1887 viria a tornar-se a cidade de Touba. Hoje, Touba, no Senegal, serve como local da maior mesquita da África subsaariana, que foi construída pelos mourides. Em um de seus numerosos escritos, Matlabul Fawzeyni (“A busca pela felicidade nos dois mundos”), Bamba descreve o propósito da cidade, que pretendia conciliar o espiritual e o temporal, no melhor estilo da criação de uma comunidade religiosa rural, baseada na devoção mística e física sufi.

A palavra mouride vem do árabe murid, que significa “seguidor”, “adepto” ou “discípulo”, e é a denominação comum para aqueles neófitos que prestam bayah (fidelidade) a um murshid, que se torna seu mestre e pai espiritual numa tariqa. Os mourides de Bamba, em virtude de o terem por fundador de sua ordem e pai espiritual, não apenas o consideravam como tal, mas o chamavam de mujaddid (palavra e título de alta importância na religião islâmica que significa "renovador do Islã"), citando um hadith que diz que Deus enviaria renovadores da fé a cada 100 anos (os membros de todas as irmandades senegalesas afirmam que seus fundadores foram tais renovadores).

Os ensinamentos de Ahmadou Bamba para seus mourides, diferentemente das outras ordens da região que, por motivos históricos, sociológicos e até políticos eram beligerantes, ligadas ao ofício da guerra, enfatizavam as virtudes do pacifismo, trabalho e cooperação social, além de boas maneiras através do que é comumente conhecido como jihadu nafs, que enfatiza uma luta pessoal sobre "instintos negativos". Além do estudo do Alcorão e do misticismo, ele também é bem conhecido por sua ênfase no trabalho e na diligência. Sheykh Ahmadou Bamba ensinou os “Três Pilares” dos Mouridiyya:

  • Islã (submissão) por Fiqh (jurisprudência);
  • Iman (fé espiritual) pelas ‘Seis Regras de Fé’;
  • Ihsan (transformação interior e santidade) por Tasawwuf (sufismo).

Além disso, também ensinou o “Triângulo mouride”:

  • Amor: por Allah e seus sheikhs;
  • Serviço: Trabalho para Allâh e serviço para a humanidade;
  • Conhecimento: Com Amor e Trabalho ao longo do tempo segue a luz divina de Allah e o conhecimento diretamente ao coração.

Abdoul Ahad Mbacke, o terceiro “Califa” (como os mourides chamam seus líderes) e filho de Ahmadou Bamba, declarou que Ahmadou havia encontrado o profeta Muhammad (sas) em seus sonhos, um conto que se tornou uma espécie de artigo de fé param mouridiyya. Durante o mês do Ramadã de 1895, o Profeta Muhammad (sas) e seus companheiros (r.a) apareceram a ele em um sonho em Touba para conferir-lhe o posto de mujaddid de sua era e para testar sua fé. A partir disso, diz-se que Bamba também recebeu o posto de "Servo do Profeta" (khādimu 'al-Rasūl).

À medida que a fama e a influência de Bamba se espalhavam, o governo colonial francês, já estabelecido e implementando uma agressiva campanha de cristianização e proselitismo na população nativa muçulmana (sem sucesso), se preocupava com seu crescente poder e potencial para travar uma guerra contra eles. Ele estava incitando a "desobediência" à metrópole e até converteu vários reis tradicionais e seus seguidores e, sem dúvida, poderia estar preparando uma enorme força militar, como líderes muçulmanos como ‘Umar Tall (líder militar tijani) e Samory Touré fizeram antes dele. Durante este tempo, o exército francês e o governo colonial  estavam cansados de líderes muçulmanos incitando revoltas enquanto tentavam terminavam de tomar o Senegal, o que levou-os a adotarem uma política inflexível e draconiana contra qualquer tipo de movimento minimamente relevante dentre os muçulmanos senegaleses.

Chamado para depor ante o Governador da colônia no escritório deste em Sant-Louis, em Setembro de 1895, é dito entre os mourides que ele teria rezado dois rakats (sequência de oração) antes de ter com o excelentíssimo Governador francês e com o Conselho Privado da colônia. Ao ter com eles, disse que sua submissão era “Para Deus, apenas.”, irritando os presentes. Com esta oração simbólica e postura na sede dos infiéis forasteiros, Bamba passou a incorporar uma nova forma de resistência não-violenta contra os objetivos dos evangelistas coloniais. Como resultado das orações de Bamba, o Conselho Privado decidiu deportá-lo para "um lugar onde suas pregações fanáticas não teriam nenhum efeito”, e o exilou na floresta equatorial do Gabão, onde permaneceu por sete anos e nove meses. No Gabão, ele compôs orações e poemas celebrando Allah e, enquanto isso acontecia, paralelamente no Senegal o moderno e bem-equipado exército colonial francês dava fim aos movimentos armados muçulmanos opostos ao seu domínio, conseguindo, através da hegemonia militar, começar a estabelecer, também, a hegemonia cultural no Senegal (bem como em outras colônias próximas).

Ahmadou Bamba, cujo único crime alegado foi persistir em pregar sua religião islâmica, foi submetido a todo tipo de privação e julgamentos por 32 anos. Exilado por sete anos para o Gabão e cinco anos para a Mauritânia e colocado em prisão domiciliar em Diourbel, no Senegal, por quinze anos. No entanto, quanto mais os franceses o ‘apertavam’, mais discípulos, vendo o fracasso da rebelião armada, juntavam-se à sua irmandade mouride para tomar parte na rebelião espiritual e de consciência que caracterizava a luta pacífica da Bamba.

Bamba, a despeito de todas as dificuldades, não deixou de defender a mensagem do Islã até sua morte em 1927, sendo enterrado no local onde hoje se encontra a Grande Mesquita de Touba e sendo sucedido pelos seus descedentes, num esquema hereditário de transmissão do posto de líder máximo da tariqa.

Sua influência e legado, como era de se esperar, transcendem sua vida e sua morte: mesmo antes da independência, os administradores coloniais franceses reconheceram que seu jeito draconiano de lidar com as coisas era pouco efetivo e, a despeito das dificuldades de lidar com os problemáticos aristocratas wolof (geralmente ligados aos qadiris e tijanis), viram que a irmandade mouride era muito respeitada entre os senegaleses e fizeram uma aproximação e parceria com eles para promover a ordem política e social em benefício de todos.

Após a independência da França, muitos políticos até hoje no Senegal são afiliados à Mouridiyya ou têm ligações com ela. Hoje, a Mouridiyya tem cerca de 3 milhões de pessoas afiliadas ou ligadas à ela de algum modo no Senegal e pelo Mundo, e desfiles ocorrem nos lugares de substancial comunidade mouride em homenagem a Sheikh Ahmadou, inclusive em várias cidades dos EUA. Uma dessas cidades é Nova York, onde os muçulmanos de descendência da África Ocidental organizaram um "desfile anual do Dia do Cheikh Ahmadou Bamba" por mais de vinte anos. Sua tradição de comunidades agrículas também se mantêm viva e produtiva, sendo extremamente benéfica para a economia senegalesa, com inúmeras reportagens de jornais ocidentais sendo atraídos pela produtividade esboçada pelas trabalhadoras comunidades mourides. Podemos, em suma, dizer, que o Senegal não seria o mesmo que é hoje – no bom sentido -  se não fosse o carisma, determinação e gentiliza eminentemente islâmicas do Sheikh Ahmadou Bamba.

Bibliografia

  • MBACKE, Saliou (2016). The Mouride Order. World Faiths Development Dialogue. Georgetown University: Berkley Center for Religion, Peace, and World Affairs.
  • BLUNT, Elizabeth (2005). Senegal's powerful brotherhoods. BBC News, Senegal.
  • N’DIAYE, Pape. Le Mouridisme. Dossiers: Société. afrology.com
  • TIM, Judah (4 August 2011). "Senegal's Mourides: Islam's mystical entrepreneurs". BBC News.