Aisha bint Abu Bakr foi a terceira esposa do Profeta Muhammad, chamada pelas fontes islâmicas de “Umm al-muminin”, isto é, “Mãe dos Crentes”, e a primeira grande erudita da história islâmica. Aisha, filha de Abu Bakr1, não só seria uma grande esposa para Muhammad, mas também teria um papel fundamental para a comunidade muçulmana após a morte do Profeta, isso por cerca de 44 anos no periodo formativo do Islã.

O ano 619 é conhecido na tradição islâmica como “O Ano da Tristeza”, pois o Profeta perderia sua primeira esposa, Khadijah bint Khuwaylid2 e também seu tio que foi um grande protetor, Abu Talib.

Filha de Umm Ruman e Abu Bakr, dois companheiros (sahaba) de extrema importância e confiança para Muhammad, a data de nascimento de Aisha é incerta, uma vez que os árabes antigos não possuíam um sistema de calendário organizado, atribuindo as datas a eventos de importância (dignos de nota) para a comunidade3. Apesar disso, existem estimativas de quando ela nasceu e de sua idade à época de seu casamento com o Profeta, variando desde seus 9 anos até o final de sua adolescência e início da idade adulta (17 ou 18 anos, por exemplo)4.

Quando o Profeta perdeu sua esposa Khadijah, decidiu posteriormente em se casar outra vez. Dessa maneira, escolheu uma viúva muçulmana da tribo coraixita chamada Sawda bint Zama, uma mulher pobre financeiramente e já de idade avançada.

Conforme Jonathan Brown (2011), logo após o casamento, Abu Bakr ofereceu a mão de sua filha ao Profeta, que havia sonhado com Aisha em vestes de seda, recebendo também a revelação de um anjo de que ela seria sua esposa tanto nessa vida quanto na outra. Um tempo mais tarde o casamento seria consumado, e Aisha exerceria um papel importante na vida de Muhammad daquele momento em diante.

Após a morte de Khadijah, muitos dos casamentos de Muhammad foram por questões políticas ou humanitárias. Nesse sentido, devido ao contexto da época, mulheres viúvas que perdiam seus companheiros em batalhas ficavam sem um protetor, alheias de seu clã e família, assim como foi necessário criar ou fortalecer alianças com clãs importantes e poderosos para preservar a existência da ummah (comunidade islâmica).

Nesse sentido, Montgomery Watt (1960) levanta a afirmação de que o casamento de Muhammad com Aisha serviu para fortalecer sua relação com Abu Bakr. Porém, o Profeta certamente amou muito Aisha, sendo sua esposa predileta depois da finada Khadijah5.

Existem diversos hadiths que contam um pouco da relação de Muhammad com Aisha, demonstrando a grande afinidade entre os dois e a admiração mútua que sentiam um pelo outro. Em um deles, quando perguntaram ao Profeta qual era a pessoa que mais amava no mundo, respondeu sem hesitar o nome de Aisha. Em outros hadiths, vemos a afinidade dos dois quando narram a capacidade que tinham de discernir o humor um do outro, assim como a ampla liberdade que o Profeta dava para Aisha se expressar livremente em suas opiniões.

Não somente, mas consta nos hadiths que Muhammad ajudava nos afazeres domésticos preparando a comida, costurando as roupas, consertando sapatos e levando sempre uma vida muito humilde, chegando em alguns momentos a passar fome, apesar de ter se tornado um líder poderoso nos últimos anos de sua vida.

Após a morte do Profeta em 632 AD, Aisha teria um papel fundamental na ummah, assumindo por vezes um papel de liderança, assim como ensinando o Islã para os fiéis muçulmanos. Assim sendo, Aisha é uma das pessoas que mais narrou hadiths na história islâmica, sendo atribuído a ela cerca de 2.300 narrações nos livros de hadith (BROWN, 2017).

Dessa maneira, por ter sido esposa do Profeta Muhammad e convivido diariamente com ele, muitas das narrações sobre a vida pessoal do Profeta e questões religiosas feito a ablução, higiene pessoal, hábitos domésticos etc., foram narrados por ela. Indo além da narração de hadiths e da instrução dos fiéis na religião, Aisha também desempenhou um importante papel político após a morte de Muhammad.

O primeiro sucessor do Profeta foi Abu Bakr6, que por sua vez possuía uma grande amizade com Muhammad e também sendo seu sogro. Portanto, como o primeiro sucessor, Abu Bakr foi o primeiro a alçar as diretrizes para essa nova posição de autoridade: o califado.

Aisha, por ser tanto a esposa do Profeta como a filha do primeiro califa nutria uma certa posição de prestígio na comunidade islâmica, recebendo por vezes títulos honoríficos associados ao seu pai, como por exemplo ser chamada de “al-siddiqa bint al-Siddiq” (Verdadeira, filha do Verdadeiro), uma referência ao título de Abu Bakr (Al-Siddiq / O Verdadeiro), que era oriundo do apoio dado pelo primeiro califa à história de Isra e Miraj, duas partes da famosa Viagem Noturna do Profeta.

Abu Bakr, pai de Aisha, ficaria somente dois anos no califado, sendo sucedido por Omar, que seria sucedido por Osman quando também veio a falecer. No princípio, Aisha não tinha muito envolvimento com Osman e seu governo, até que eventualmente começou a fazer oposição contra o terceiro califa do Islã.

Os motivos para tal oposição não são certos, mas normalmente é citado que essa rejeição do califa por parte de Aisha nasceu após a maneira de Osman tratar Ammar ibn Yasir, um dos sahaba (companheiros) do Profeta batendo nele. Indignada, Aisha teria exclamado:

Quão cedo, de fato, você se esqueceu da prática (sunnah) de seu profeta e estes, seus cabelos, uma camisa e sandálias ainda não morreram!

Conforme o tempo passava e a antipatia de Aisha por Osman se mantinha, certo dia alguns fiéis chegaram até Aisha após o califa ter se negado a punir Walid ibn Uqbah (irmão de Osman)7. Diante disso, uma discussão entre os dois ocorreu, e o califa indagaria o porquê da presença de Aisha, sendo que ela havia sido ordenada a “ficar em casa”, gerando assim uma divisão na comunidade islâmica onde alguns ficariam ao lado de Osman e outros ao lado de Aisha.

As coisas dariam uma guinada para pior quando o Egito era governado por Abdullah ibn Saad, irmão de leite do califa Osman. Durante essa época, Muhammad ibn Abi Hudhayfa do Egito forjaria cartas em nome de Aisha para conspiradores contra o califa.

Por conta dessas falsificações, a população indignada (e crente na veracidade das cartas) decidiu cortar o suprimento de água e comida de Osman. Quando Aisha soube do que se passava, ficou perplexa com as atitudes daqueles que protestavam contra o califa, que por sua vez arrastaram uma das viúvas de Muhammad (Safiyya bint Huyayy) em meio à multidão.

Após ser indagada por Malik al-Ashtar8 se ela mataria Osman ou não, assim como sobre as cartas conspiratórias, Aisha respondeu que jamais “ordenaria o derramamento de sangue de Muçulmanos e de seu Imam”, afirmando não ser de sua autoria as cartas.

Em 655, pouco mais de 30 anos depois da morte do Profeta, Osman seria assassinado após um cerco com cerca de 1000 pessoas ao redor de sua casa. Após a sua morte ocorreria um episódio marcante nos primeiros anos do Islã conhecido como “A Primeira Grande Fitna” (al-fitnah al-kubrah)9.

Assim como ocorreu com a ascensão de Osman ao trono de califa, seria necessário que o mesmo fosse sucedido por alguém, e Ali, sobrinho do Profeta, foi escolhido para sucedê-lo na liderança do Califado Rashidun.

Muitos se preocupavam se Ali ibn Abu Talib (r. 656-61) deveria ser eleito como sucessor de Osman. Até então, Ali não havia sido apontado como sucessor de Muhammad para primeiro ou segundo califa devido a sua idade, afinal era ainda muito jovem (KUNG, 2007). Entretanto, agora, um dos primeiros convertidos ainda em Meca se tornaria o novo califa.

Ali foi um homem enérgico e provou ser muito capaz, chegando inclusive a depor alguns governantes que haviam sido agraciados por Osman. Porém, havia um problema de extrema importância em seu califado: o mesmo foi eleito recebendo suporte dos assassinos de Osman, e Ali nada fez para puni-los, o que gerou o conflito com Aisha, que exigia que Ali punisse os assassinos do terceiro califa do Islã.

A primeira resposta contra Aisha veio de Abdullah ibn Aamar al-Hahdrami, governante de Meca no período de Osman, proeminente membro da tribo dos Banu Umayya.

Apesar disso, Aisha embarcaria em uma incursão contra o califado de Ali. Juntamente com Zubayr ibn al-Awam e Talha ibn Ubayd-Allah, Aisha enfrentaria o exército de Ali sob a bandeira de que os assassinos de Osman deveriam ser punidos, adentrando na cidade de Basra.

Quando Aisha e seus exércitos capturaram Basra, foi ordenada a execução de 600 muçulmanos e outros 40. Há ainda a menção de que o governante de Basra, Uthman ibn Hunaif, foi preso.

Em 656 Ali batalharia contra as forças de Aisha próximo de Basra numa batalha que recebeu o icônico nome de “Batalha do Camelo”, pois Aisha teria liderado seu exército sobre um howdah nas costas de um camelo. Tendo como desfecho a derrota de Aisha na batalha e a perda de cerca de 10 mil vidas muçulmanas, esse foi o primeiro conflito em que muçulmanos tiveram como rivais outros muçulmanos.

Meses mais tarde, Ali e Aisha se encontrariam novamente, dessa vez para realizar um acordo de reconciliação. Assim, o quarto califa Rashidun enviaria Aisha de volta para Medina sob escolta militar liderada pelo irmão da viúva do Profeta, Muhammad ibn Abu Bakr, que por sinal também era um dos comandantes das tropas de Ali.

Aisha receberia inclusive uma pensão de Ali, mas apesar da reconciliação entre os dois, a Primeira Fitna não veria seu fim com o retorno de Aisha para Medina e o acordo entre o califa e a viúva do Profeta Muhammad. Entretanto, após esse incidente, Aisha não mais se envolveria em questões de estado, se reservando até o fim de sua vida em 678 quando tinha por volta de 64 anos10, sendo lembrada como uma mulher enérgica e extremamente inteligente, alguém que ensinou muitos muçulmanos sobre a religião e narrou milhares de hadiths sobre o Profeta.

Aisha não só esteve sempre ao lado de Muhammad, mas posteriormente contribuiu intelectualmente para o desenvolvimento do Islã, conhecida também pelo seu domínio nos assuntos referentes ao Alcorão e seu conhecimento em questões legais do Islã, assim como poesia, literatura árabe, história e até mesmo medicina.

Após retornar para Medina, Aisha ensinaria as mulheres muçulmanas em sua própria casa, ensinando também os homens (separados das mulheres, naturalmente) e também muitas crianças órfãs. Além disso, seria a mais confiável fonte de hadiths, cujo impacto está vivo até hoje no cotidiano dos quase 2 bilhões de muçulmanos ao redor do mundo.

NOTAS

[1] Abu Bakr seria o primeiro califa do Islã, sucedendo o Profeta após sua morte.

[2] Também chamada de Mãe dos Crentes, uma vez que foi a primeira pessoa a se converter ao Islã após a Primeira Revelação recebida.

[3] Para exemplificar: uma data importante para os árabes coraixitas da época foi o Ano do Elefante, portanto, muitos diriam que tal coisa ocorreu em um período próximo ou distante ao ocorrido.

[4] O tema da idade de Aisha é um debate complexo que envolve o estudo dos hadiths (ilm al-hadith) e demais estudos especializados das fontes islâmicas. Para ter uma breve noção do debate, ver dois artigos do Iqara Islam: Maomé era pedófilo? e Muhammad e Aisha.

[5] Interessante observar que Aisha sentia ciúmes de Khadijah, mesmo sem terem se conhecido, devido às várias menções que o Profeta fazia sobre ela.

[6] Sucessão essa controversa para os muçulmanos xiitas, que acreditam que Muhammad havia nomeado Ali, seu sobrinho, para ser seu sucessor.

[7] A punição de Uqba provavelmente seria por conta de seu comportamento imoral, pois era conhecido por ser um grande beberrão de vinho, algo considerado ilícito na religião islâmica.

[8] Um dos principais aliados de Ali.

[9] Fitna é uma palavra em árabe usada para designar “divisão”, “conflito” e sinônimos. Assim, “Primeira Fitna” pode ser lida também como “Primeira Divisão” ou “Primeiro Conflito”.

[10] Remetemos à nota 4, ou seja, tal data dependerá da tradição e a idade atribuída à Aisha.

BIBLIOGRAFIA

ARMSTRONG, Karen. Muhammad. HarperOne. 2007.

BROWN, Jonathan. Hadith: Muhammad’s Legacy in the Medieval and Modern World. Oneworld Publications. 2017.

BROWN, Jonathan. Muhammad: A very short introduction. Oxford. 2011.

KUNG, Hans. Islam: Past, Present and Future. Oneworld Publications. 2007.

WAGNER, Cayla. Aisha: A Life and Legacy. Eiu. [n.d].

ABBOT, Nabia. Aishah The Beloved of Muhammad. University of Chicago Press. 1942.

WATT, William Montgomery. ʿĀʾis̲h̲a Bint Abī Bakr (2nd ed.). Encyclopaedia of Islam Online.  1960.