Na história, inclusive a islâmica, podemos encontrar diversos governantes que além de tudo foram grandes intelectuais: pessoas versadas em uma determinada área do saber, ou que simplesmente as admiravam e decidiram investir pesadamente seus recursos na incansável busca pelo conhecimento.

Dentre esses amantes do conhecimento e da intelectualidade, podemos citar al-Mutamid Muhammad ibn Abbad Ibn Ismail al-Lakhmi. Chamado também somente de al-Mutamid, foi o terceiro e último governante árabe da taifa1 de Sevilha em al-Andalus, a Península Ibérica islâmica.

Conforme Cantinho (2020), foi justamente nessa época do surgimento das taifas em que nasceu uma “cultura hispano-árabe” na poesia medieval. De fato, muitos dos grandes poetas da Espanha muçulmana surgiram nessa época ou pouco tempo depois, como é o caso de al-Mutamid. Durante esse período de grande ascensão da poesia, expressar-se em versos era a “regra”, valendo-se de uma linguagem poética para tratar sobre os mais variados temas, como romance, diplomacia e sátira (ESBER, 1993).

Nascido em 1040 d.C. e filho do governante da taifa de Sevilha, Abbad II al-Mutadid, que por sua vez realizou diversas conquistas nos territórios vizinhos e contribuiu para a criação do reino da Dinastia Abádida, a mais poderosa de al-Andalus na época. Quando al-Mutamid tinha por volta de 11 ou 13 anos de idade, seu pai o chama para perto de si e o nomeia emir de Silves2, sendo essa época quando se aproxima do poeta andaluz Ibn Ammar, seu vizir.

Novamente segundo Cantinho (2020), al-Mutamid era em sua adolescência um “amante do luxo”, pois ao estabelecer sua primeira corte, fez questão de rodear-se tanto de poetas e sábios, quanto de amantes, belas mulheres e hábeis artistas. Entregando-se a uma vida de excessos, Murray e Roscoe (1997), afirmam que seu grande amigo e vizir, Ibn Ammar, eram um destes amantes, cujo relacionamento foi amplamente reprovado pelo pai de al-Mutamid.

”Bayad toca o alaude para a senhora”, Qissat Bayad wa Riyad, miniatura islâmica ibérica do século XIII, Biblioteca do Vaticano, Roma.

Grande poeta de seu tempo, Ibn Ammar manda um poema para Abbad II, dizendo:

Durante a noite da união

Em suas carícias, flutuou até mim o perfume de suas alvoradas

Minhas lágrimas correram pelos belos jardins

De suas bochechas para umedecer suas murtas e lírios (Ibn Hazm, 1931, apud MURRAY; ROSCOE, 1997, p. 151).

Furioso com o comportamento luxurioso de al-Mutamid em Silves, principalmente com a relação dele com seu vizir, Abbad II manda o filho retornar para Sevilha, enquanto ibn Ammar é desterrado para Saragoça.

Em 1069 o pai de al-Mutamid viria a falecer, e o até então príncipe se tornaria o rei de Sevilha. Em um de seus primeiros atos de governo, chamaria ibn Ammar para perto de si novamente, vindo a receber grande poder político e militar como primeiro ministro do mais novo rei. Entretanto, algum tempo depois, os dois teriam grandes desavenças, principalmente pelo fato de que ibn Ammar havia deixado o filho de al-Mutamid, o príncipe al-Rasid, ser capturado e mantido em cativeiro por forças inimigas durante uma campanha militar. Não somente, mas o primeiro ministro autodeclarou-se como emir de Murcia. Por conta disso, ambos trocaram versos contendo grande inimizade, mas em um deles, ibn Ammar relembrou seu antigo amigo de seus tempos íntimos:

Você se lembra dos dias de nossa juventude

Quando você se parecia com o crescente no céu?

Eu abraçaria seu corpo novo,

E de seus lábios eu escorregaria em água pura também,

Me contentando em amar você, o que era ilícito,

Quando você jurou que o que eu fazia era lícito (Ibd, p. 152).

Posteriormente, Murcia seria tomada, e dessa vez ibn Ammar seria capturado e mantido em cativeiro. Outra vez ibn Ammar trairia a confiança de al-Mutamid, que o matou com suas próprias mãos em um acesso de raiva. Porém:

Depois ele chorou, como há muito tempo Alexandre chorou por Heféstio, e deu a ele um funeral suntuoso (MARC, 1997, apud CROMPTON, 2004, p. 167).

É interessante observar que dentre os diversos poemas escritos por al-Mutamid no decorrer de sua vida, um deles é sobre a morte. Entretanto, algo chama atenção: não é sobre a morte de seu amigo e amante, nem mesmo a de seu pai, mas a morte em geral o objeto do poema, juntamente com a sua própria. Em uma tradução para o inglês de Dulcie L. Smith:

Meu tempo em vida chegou ao fim; Eu estou deitado

No meu leito de morte.

Ele por acaso não morreu, nosso pai Adão, também,

E Muhammad?

Mortos estão os príncipes e os potentados

E ninguém deve acordá-los.

Diga-lhes que triunfo na minha morte, que a Morte

Deve ultrapassá-los.

Quando se tornou o rei de Sevilha, grandes porções de terra estavam sob o seu comando. Assim, para o lado ocidental de seus domínios, englobava as terras entre a parte inferior do grande rio Guadalquivir e do rio Guadiana, juntamente com as áreas nos arredores das localidades de Niebla, Huelva e a ilha de Saltes. Já no que diz respeito à região sul de seu território, seu poderio compreendia as localidades de Morón, Arcos, Ronda e também Algeciras e Tarifa. Córdoba, por sua vez a antiga capital do Califado de Córdoba que viu sua queda em 1031, fez parte dos domínios de al-Mutamid em 1070, até mais uma vez escorregasse de suas mãos e fosse posteriormente reconquistada em 1075, para ser mais uma vez perdida, até que finalmente o rei de Sevilha a assegurasse mais uma vez em 1078.

Apesar de uma ampla porção de terras estar sob domínio do Rei-Poeta, assim como a lendária cidade de Córdoba ter em diversos momentos passado por suas mãos, al-Mutamid e seus antecessores eram ainda vassalos do rei de Castela. Devido às dificuldades em pagar as taxas para o governo castelhano, al-Mutamid decidiu não mais contribuir com seus impostos de vassalagem, o que ocasionou a indignação do rei Afonso VI de Castela, que impôs um cerco contra Sevilha.

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Apesar de ter causado a ira de um oponente poderoso, al-Mutamid não deixaria Sevilha escapar de suas mãos tão facilmente: para isso, pediu ajuda dos berberes Almorávidas, oriundos do Marrocos. Assim, o rei de Sevilha apoiou o governante Almorávida, Yusuf ibn Tashfin, na batalha de Sagrajas em 1086.

Em Sagrajas, mais especificamente em 23 de outubro de 1086, as tropas cristãs de Afonso VI enfrentariam as tropas de Yusuf, onde o rei cristão sairia derrotado. A batalha começou com Afonso atacando primeiro, porém Yusuf dividiu seu exército em três, sendo a primeira e mais numerosa delas comandadas por al-Mutamid. A segunda, por sua vez, era comandada pelo próprio Yusuf, enquanto que a terceira era composta de soldados negros-africanos portando cimitarras e jabalinas (um tipo de lança).

As forças de al-Mutamid lutaram sozinhas contra Afonso VI, até que as duas outras divisões se juntaram a eles, ocasionando na derrocada do exército castelhano e sua consequente perda territorial, assegurando a vitória islâmica com um golpe final da terceira divisão. Nesse dia, Afonso VI sofreu uma derrota significativa, uma vez que certa da metade de seu exército foi dizimada em campo de batalha. Muito embora o rei tenha conseguido fugir e sobreviver, foi ferido em sua perna.

Apesar da vitória de al-Mutamid com seus aliados almorávidas sobre os exércitos cristãos, seus ajudantes marroquinos se estabeleceram na Espanha islâmica, vindo a dominar todas as taifas muçulmanas, não poupando nem mesmo Sevilha, que caiu para o poderio almorávida em 1091.

Por ironia do destino, o filho de al-Mutamid havia avisado ao pai para não pedir o apoio de Yusuf, recebendo a seguinte resposta:

Não desejo ser rotulado por meus descendentes como o homem que entregou al-Andaluz como presa dos infiéis. Detesto que meu nome seja amaldiçoado em todos os púlpitos muçulmanos. E, de minha parte, preferia ser um condutor de camelos na África do que um pastor de porcos em Castela (SMITH, 2018, ver também aqui)

Posteriormente, entretanto, al-Mutamid ordenou que seus filhos rendessem a fortaleza real de Sevilha para os invasores almorávidas, pois seria esse o único meio de salvarem suas vidas. Al-Mutamid seria colocado em cativeiro pelos almorávidas em 1091 e exilado para Aghmat, no Marrocos, onde morreria em 1095. Sua nora ou filha, de nome Zaida, viria a tornar-se amante de Afonso VI após se refugiar em Castela com a queda do reino taifa, dando ao monarca cristão seu único filho que morreria lutando contra os almorávidas e algumas filhas herdeiras.

Em seu legado, vemos um poeta de alto calibre, alguém que foi educado em uma corte de outros grandes literatos e demais poetas e intelectuais, porém que assumiu um estilo próprio, pois suas obras “constituem um espelho de sua própria vida”, como bem diz Cantinho (2020). Seu legado poético corre até os dias de hoje, sendo uma influência para nomes conhecidos do leitor lusófono, como o próprio Fernando Pessoa.

Para finalizar, transcreveremos um dos poemas de sua juventude, época onde se preocupava mais em escrever sobre temas como amizade, prazer, amor, natureza e etc (ESBER, 1993):

Ela permaneceu em toda sua graça esbelta

Velando a orbe do sol de meu rosto:

Ó, que a beleza dela sempre seja

Tão velada pela inconstância dos tempos!

Era como se ela soubesse, eu acho,

Que ela era uma lua de encanto;

E que outra coisa o sol brilhante pode velar

Exceto o pálido brilho da própria lua?

Túmulo de al-Mutamid em Aghmat, Marrocos.

NOTAS

[1] Taifas, do árabe Muluk At-Tawaif, foram reinos independentes de al-Andaluz após a queda do Califado de Córdoba em 1031.

[2] Essa nomeação ocorre após a árdua conquista da cidade por Abbad II al-Mutadid, que levou ao menos 10 anos de muitas batalhas.

BIBLIOGRAFIA

CANTINHO, Maria João. Al-Mu ‘Tamid: o rei-poeta de Sevilha. Revista Caliban, 2020.

SMITH, Dulcie Lawrende. The poems of Mu’tamid, king of Seville. 1915 e 2018.

ESBER, Rose M. The Poet-King of Seville. AramCo, 1993.

CROMPTON, Louis. Homosexuality and Civilization. Harvard University Press, 2004.

ROSCOE, Will; MURRAY, Stephen O. Islamic Homosexualities: Culture, History, and Literature. NYU Press, 1997.