A ascensão de Henrique VIII coincide com uma reforma ampla da Inglaterra como se conhecia: um país tardo-medieval, militarmente atrasado e decadente da antiga guerra civil que colocou a Dinastia Tudor no poder. Ao contrário do que se pode imaginar, a Inglaterra ainda era um país medíocre em termos de guerra naval, nunca tendo nos séculos anteriores uma marinha realmente permanente – à parte de um pequeno grupo de meia dúzia de navios particulares que juridicamente era mais considerado como propriedade privada de um monarca específico, sujeita à compras e vendas, do que uma marinha estatal.

Os primeiros esforços para construir uma marinha nacional tiveram alguns impulsos iniciais com seu pai, mas só seriam levados mais seriamente por Henrique VIII, desejoso de fazer valer a praticamente desacreditada pretensão da Coroa Inglesa sobre a Coroa da França – ou pelo menos de algum punhado de terras que pudesse ser capitalizado nos subsequentes conflitos.

Uma das medidas na direção dessa marinha nacional foi a construção de algumas gigantescas carracas de guerra, um empreendimento complexo e custoso que, no caso do Mary Rose, o navio de guerra mais conhecido de Henrique VIII, exigiu o corte de cerca de 600 carvalhos de grandes dimensões (o equivalente à 16 acres de floresta ou 22,4 campos de futebol). Um investimento tão complexo, naturalmente, não poderia ser arruinado por uma gestão naval ruim, sendo de extrema importância que a Coroa contratasse os melhores para trabalhar nessas obras-primas da guerra naval da época; mão-de-obra que, naquela época, encontrar-se-ia além das ilhas britânicas.

Representação do Mary Rose no Anthony Roll, o registro oficial da Marinha de Henrique VII escrito por Anthony Anthony (m. 1564).

Desde que o Mary Rose foi lançado no mar, em 1511, o grande navio permaneceu em uso durante as guerras de Henrique VIII até finalmente afundar em 1545, durante uma batalha naval contra a marinha francesa. Em 1982, os restos do naufrago seiscentista foram resgatados, tendo sido razoavelmente preservado graças à composição salina do fundo mar. O resgate também trouxe à superfície uma série de canhões, armas e, mais especialmente, os esqueletos da tripulação que pereceu – numa época em que a maior parte da tripulação dos navios europeus não sabia nadar.

Testes mais complexos à respeito das ossadas só foram iniciados recentemente, e suas conclusões só vieram à público nestes últimos dois anos: dos 8 indivíduos estudados extensivamente nesse período, descobriu-se que pelo menos 3 deles vieram da bacia do mar Mediterrâneo, advindos ou da península ibérica ou do Norte da África; destes, contudo, pelo menos um dos indivíduos estudados foi consistentemente e especificamente associado ao Norte da África, mais especificamente à etnia amazigh, popularmente conhecidos como berberes.

Este tripulante africano, batizado “Henry” pelos pesquisadores, foi sujeito à uma análise que incluiu informações que poderiam ser extraídas de seu crânio, ossos, dentes e dos restos de alimentos presentes nestes. As informações colhidas revelam que, mesmo nascido no Norte da África, provavelmente no território que corresponde hoje à atual Tunísia ou Marrocos (mais provavelmente nas Cordilheiras de Atlas), sua alimentação não era baseada nos frutos do mar do Mediterrâneo, sendo mais tipicamente associada à dieta berbere mais interiorana.

Visão panorâmica da Cordilheira, no Marrocos, em sua parte mais arborizada e fértil.

 

A partir das evidências, é bem preciso afirmar que Henry, de fato, nasceu muçulmano – e se não abdicou desta religiosidade durante sua vivência na Europa Cristã, então foi um dos casos não-documentados de muçulmanos vivendo em solo britânico antes da protestantização concreta da Inglaterra Tudor – quando o calvinismo e o luteranismo transformaram a Igreja Anglicana nos reinados de Edward e Elizabeth Tudor, esta que estabeleceu laços importantes com potentados muçulmanos berberes, turcos e persas.

Mas, apesar de nascido em uma cultura muito diferente daquela onde finalmente morreria, os exames em seus ossos mostram que Henry se aclimatizou bem à vida na Inglaterra, o que pode indicar que o tripulante teria se deslocado para o norte europeu ainda jovem ou que teria passado muitos anos no seu novo lar.

Mas qual seria o tipo de função desempenhada por Henry? Curiosamente, arqueiro! Embora seja natural pensar que os estrangeiros teriam operado em funções mais técnicas dentro de um navio, seja como tradutores, navegantes ou operadores das partes mais funcionais do navio, tudo indica que Henry era um soldado – e dos bem pagos. Seus ossos foram encontrados junto com uma espada, um pente e uma braçadeira de arqueiro adornada com as armas de Catarina de Aragão – esposa espanhola de Henrique VIII cujo divórcio estabeleceu a Igreja Anglicana – e as armas régias da Inglaterra. Isto, ainda, pode sugerir que de alguma forma o nosso soldado tenha sido levado à Grã-Bretanha devido à abertura do reino inglês à vida e dinâmica do Reino Espanhol da época. E se Henry foi arqueiro, então muito certamente era um arqueiro à moda inglesa, já que o armamento do Mary Rose e do resto da Armada de Henrique VIII (conforme registrado no Anthony’s Roll) era padronizado com arcos longos de teixo – madeira geralmente importada da Península Ibérica – e flechas de arco longo, estocadas em quantidade; além de bills e “piques mouros”, que seriam usados por outros soldados em ocasião de abordagem.

Mary Rose (centro) na Batalha de Solent (1545), onde haveria de naufragar.

 

A teoria levantada pelos pesquisadores para a chegada de Henry e de todos os outros norte-africanos que podem ter pertencido à tripulação do Mary Rose é de que eles, ou por contra própria ou com suas famílias, teriam primeiramente saído da África para países ibéricos, como Portugal e Espanha, e de lá para serviço náutico no reino inglês; algo que seria mais razoável considerando a valorização de conhecimento técnico naval no projeto ambicioso de Henrique VIII, que procuraria os melhores homens, fora de seu próprio país. Que a tripulação do Mary Rose permaneceu multiétnica até sua última batalha é testemunhado por um dos sobreviventes do naufrago: um flamengo que sabia nadar, e que providenciou um relato de primeira-mão dos momentos em que a nave sucumbiu. Além do neerlandês, historiadores ainda acreditam que o piloto do Mary Rose seria francês. Entre os três esqueletos associados às regiões quentes da bacia mediterrânea, um outro, associado ao serviço de carpintaria, teria vindo do sudeste da Espanha. Muitos outros esqueletos ainda estão para ser estudados, mas os resultados iniciais obtidos com estes 8 primeiros revelam um lado até então desconhecido da Inglaterra ante-Elizabetana: a interação multi-étnica era maior do que previamente pensado.

“Ao combinar os métodos científicos mais recentes com informações sobre os artefatos recuperados da nave, nós fomos capazes de reconstruir as biografias de oito pessoas do período Tudor com um detalhamento muito maior do que é geralmente possível. Isto mostrou suas origens diversas e providenciou a primeira evidência direta de marinheiros de ancestralidade africana em um navio de Henrique VIII”. (MADGWICK, Richard. Diversity aboard a Tudor warship: investigating the origins of the Mary Rose crew using multi-isotope analysis, 2021)

REFERÊNCIAS:

MORRIS, Steven. Mary Rose ship had multi-ethnic crew, study shows. The Guardian, 5 de maio de 2021. Disponível em: < https://www.theguardian.com/science/2021/may/05/mary-rose-ship-multi-ethnic-crew-tudor-england>. Acesso em 10 de novembro de 2021.

DAVIS, Nicola. Mary Rose crew might have included sailors of African heritage. The Guardian, 14 de março de 2019. Disponível em: <

https://www.theguardian.com/science/2019/mar/14/mary-rose-crew-might-have-included-sailors-african-heritage>. Acesso em 10 de novembro de 2021.

SCORRER, Jessica et al. Diversity aboard a Tudor warship: investigating the origins of the Mary Rose crew using multi-isotope analysis. The Royal Society Publishing, 5 de maio de 2021. Disponível em: < https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rsos.202106>. Acesso em 10 de novembro de 2021.

THE MARY ROSE. King Henry’s favourite ship, the Mary Rose, was made up of a multinational crew. Disponível em: < https://maryrose.org/news/multicultural/ >. Acesso em 10 de novembro de 2021.

YIRKA, Bob. Human remains from Mary Rose show diversity of Tudor crew. The Phys.org, 5 de maio de 2021. Disponível em: <https://phys.org/news/2021-05-human-mary-rose-diversity-tudor.html>. Acesso em 10 de novembro de 2021.