Ecumênico, dissimulado, persistente, brilhante, carismático e malandro, o muçulmano Bem Marvão mais parece um brasileiro de pedigree do que a versão estereotipada de um conquistador islâmico; sinal, quem sabe, de que as raízes comportamentais do nosso povo sejam mais antigas do que supomos.

Abd al-Rahman ibn Muhammad ibn Marwan ibn Yunus al-Jil'liqui, melhor conhecido como ibn Marwan ou Marvão, foi um caudilho muçulmano, sufista, cortesão e guerreador da região de al-Andalus que compõe o atual Norte de Portugal. Embora seja pouco mencionado na historiografia internacional sobre a Ibéria Islâmica, sendo mais conhecido regionalmente em partes específicas de Portugal, Marvão é digno de um mérito de respeito: por pura conveniência e ambição, o caudilho galaico-português (al-Jil'liqui significando literalmente “galego”) ajudou a esfarelar o temível e imponente Emirado de Córdoba, o Estado mais rico, culto e poderoso da península ibérica e de toda a Europa Ocidental de seu tempo; e o pior: tudo isso sem os recursos abundantes que rebeldes como Musa ibn Musa tiveram, sendo tudo atribuído a Marvão por mérito próprio.

Assim como seus parentes brasileiros separados pelo tempo e pelo mar, Ibn Marwan era um “mulato”; ou melhor dizendo, um muwallad, termo árabe que significa “mestiço” e era utilizado entre muçulmanos locais para se referir a indivíduos de ascendência mista de árabe ou berbere com alguma das etnias ibéricas locais ou dos conquistadores germânicos e/ou romanos, assim como também para indivíduos convertidos ou filhos de país convertidos ao Islã. A mistura em si é difícil de se definir, como também seria para muitos brasileiros.

Não se sabe muito sobre os primeiros anos de Marvão, exceto pelo fato de ter sido filho do governador (wali) da Mérida Andalusa e por já ser conhecido ainda jovem como inteligente, astuto, político e carismático, apesar de “inconstante”, algo que talvez possa refletir a insatisfação dos cronistas muçulmanos com o caráter pouco ortoprático de Ibn Marwan, que era conhecido por se alinhar com cristãos e muçulmanos, conforme a conveniência, e por amigo de renegados e muçulmanos residentes em potentados cristãos do Norte. Os cronistas árabe não poupam críticas quanto ao seu comportamento errático e oportunista, ibn Hayan disserta:

“afastou-se das fileiras muçulmanas para entrar nas dos cristãos, cuja amizade preferiu à dos que dirigem a sua oração em direção à Caaba [..] tinha fama de caudilho temível. As suas vitorias eram muito celebradas; os seus atos cruéis valeram-lhe grande reputação e respeito entre os emires rivais, que acabaram por colocá-lo acima deles”.

Ibn Adari assinala:

“se separou da comunidade dos crentes e protegeu e frequentou a dos cristãos com preferência aos muçulmanos”.

Ibn Qutiya:

“... chegou a ser chefe dos renegados no ocidente ... agudo, manhoso e astuto na guerra a ponto de não haver quem o superasse”.

Estátua de ibn Maruane em Badajoz

O episódio mais antigo registrado da vida de Ibn Marwan, curiosamente, vêm do ano de 852 d.C., quando ele se encontrava preso, na capital de Córdova; embora a causa do cárcere não nos seja contada, não parece infundado supor que desde tal época Marvão ou seu pai estavam envolvidos em atividades de rebelião contra o Emirado.

Mesmo no cárcere, Marvão utilizou sua lábia e seu poder de manipulação, persuadindo o emir Muhammad I e ganhando sua confiança. Em pouco tempo, Marvão tinha abandonado o cárcere e se tornado o capitão da própria guarda real, comandando os guerreiros mais habilidosos e mais leais, selecionados a dedo para a proteção de Muhammad I.

Essa ascensão, porém, desagradava o hájib – uma espécie de vizir ou primeiro-ministro – de Muhammad, Hacim, que via por trás de Marvão uma índole manipuladora e oportunista, não sem razão. O episódio que marcará o estopim das tensões em guerra factual dar-se-á durante uma reunião de vizires onde Hacim injuriou Marvão na frente de todos, dizendo: “vales menos que um cão” e esbofeteando-lhe o rosto. Incapaz de responder a afronta, graças à autoridade superior de Hacim, Marvão decidiu fugir de Córdoba com um grupo de seguidores até Mérida, cidade onde sua família governava e onde ele incitaria uma revolta de muçulmanos hispânicos contra os dominadores árabes do Emirado de Córdoba. A revolta teria um fim prematuro, com o emir enviando um exército à Mérida, eventualmente forçando a cidade a se render e Marvão à retornar à Córdoba.

Castelo de Alange, onde Marvão se refugiaria na sua segunda revolta contra o Emirado.

Demoraria até 875 d.C. para Marvão repetir o mesmo processo, fugindo de Córdoba para Mérida e estabelecendo outra rebelião. Após três meses de cerco e rebelião, Marvão novamente se rendeu às tropas de Muhammad, prometendo nunca mais se revoltar contra o emir, seu amigo, e pedindo para se fixar no antigo assentamento romano-visigótico de Bataliaus (atual Badajoz).

Ibn Idari descreve a conclusão das negociações: “e o emir permitiu-lhe que fosse para Bataliaus, que então era uma aldeia, e ali se estabelecesse”. Ibne Haiane escreve «que baixasse a Bataliaus que então estava desabitada e a construísse para ele e para a sua gente». Rasis narra “que saia de Alange com a sua gente e vá para o castelo de Bataliaus que nesses dias estava abandonado”.

Apesar de aparentemente incompreensível, a escolha de Marvão por Badajoz era, na verdade, muito estratégica: a região possuía boas condições defensivas e possui um gigantesco potencial financeiro: as terras aráveis eram abundantes e férteis, as melhores de al-Andalus, na época, além de possuírem muito gado, peixes, animais para se caçar e vinhedos. 

O Rio Guadiana, o maior da península ibérica, na sua altura portuguesa.

Após estabelecido em Batalius, Marvão se revoltou de novo, mas desta vez ganhando a guerra: após vencer o exército do Emirado na Batalha da Serra de Monçalude (875), o Emir propôs um fim definitivo às revoltas, sabendo que seria impossível controlar o comportamento de Marvão e ao mesmo tempo sendo fraco demais para punir um velho amigo.

No fim, Marvão exigiu um pedido que, em outros tempos e contexto, soaria absurdo: “o meu desejo é que me seja concedido Baxarnal para ali construir, fundar uma cidade e povoá-la e estabelecer nela o culto, sem que me imponham tributos, nem ordens, nem limitações, ficando o rio entre ambos”.

A ideia de fundar o que basicamente seria um Estado dentro de um Estado foi aceita, tendo o próprio emir providenciado construtores e dinheiro para que Marvão ampliasse a nova cidade de Badajoz e as fortificações locais. Os cronista muçulmanos se referem pejorativamente ao projeto de Marvão: “Ibn Marwan tinha edificado uma fortaleza em Bataliaus, onde tinha fixado residência, atraindo gentes de Mérida e outras metediças de mau viver [repugnantes]”, descreve ibn Adari.

Alcaçova de Badajoz, construída por Ibn Maruane em 875.

Conforme o projeto de Marvão se consolidava, o Emirado como um todo se tornava mais debilitado. No mesmo ano em que havia firmado o acordo, Marvão se aproveitou da situação e reuniu hostes para atacar territórios do próprio Emirado, saqueando e se expandindo de forma impune pela Lusitânia e Algarve, algo muito facilitado pelo aparelhamento de poder que a sua família tinha sobre Mérida e sua guarnição militar.

Diante das provocações, o emir enviou Hacim, o antigo inimigo de Marvão, à frente de um poderoso exército para detê-lo. Ciente da situação, Marvão apelou ao rei Afonso III de Astúrias, Leão e Galiza e se posicionou novamente na Serra de Monçalude, destroçando o exército do emirado e capturando Hacim.

Se o vizir, derrotado e coberto de feridas, esperava receber retaliação ou a morte pelas suas ofensas passadas, Marvão decidiu mostrar que era “o homem melhor”, tratando-o de forma generosa, mas presenteando o prisioneiro ao rei cristão, que viria a extrair somas exorbitantes com o resgate do vizir do Emir de Córdoba.

Castelo de Marvão, construído por ibn Maruane entre 876 e 877. Por conta de seu posicionamento estratégico, a fortaleza era considerada virtualmente inexpugnável.

Após construir o imponente castelo de Marvão e a vila de Marvão, o galego novamente revoltar-se-ia, unido com o governador de Burtucal (a atual cidade do Porto) e o rei Afonso III. Após o Emirado reunir um exército para sufocar a rebelião, Marvão organizou uma outra emboscada, dessa vez na Serra da Estrela, onde destroçou outro exército do emir, cujo comandante foi presenteado ao rei Afonso, que novamente viria a extorquir o Emir com resgates altíssimos. Por alguma razão, Marvão temeu uma retaliação total do emir, decidindo se refugiar no reino de Afonso e lá vivendo pelos próximos oito anos.

Trecho da Serra da Estrela, onde Marvão emboscaria Hacim.

Atual vila de Marvão. Acredita-se que ibn Maruane tenha residido no assentamento antes de concluir a construção do Castelo de Marvão.

Após retornar, em 884, Marvão estabeleceu um acordo que confirmou para si um extenso principado que ia do atual Sul de Portugal até o vale do Guadiana. Nesta mesma época, Mérida foi conquistada por um general árabe de nome ibn Tariq, responsável por uma grande chacina em Mérida e nos territórios adjacentes. Desta vez, Marvão unir-se-ia ao Emir contra o general árabe, sufocando a rebelião. Por esta atitude, o galego seria admirado e apoiado agora pelos sobreviventes dos massacres em Mérida e nos territórios adjacentes, os quais se incluíam muçulmanos aborígenes, muladis, cristãos e próprio clero do bispado de Mérida.

Isto parecia ser o fim dos conflitos entre Marvão e o Emirado, se Hacim não tivesse retornado do cativeiro e incitado ao Emir à quebrar o tratado feito com Marvão, argumentando que o próprio galego não respeitara tratados anteriores e que acumulara muitas afrontas para ser deixado impune. O vizir argumentava que, seria fácil derrotar Marvão na fortaleza de Batalius, evitando conflito nas serras, onde o galego sempre os emboscava.

Persuadido por Hacim, o emir deu um exército ao vizir para que ele marchasse e destruísse para sempre o principado de Marvão; o que nenhum deles contava, porém, é que Marvão possuía informantes dentro da corte de Córdoba que logo o informaram sobre o ataque surpresa, e que naquelas condições tinha plena capacidade de destruir os projetos de poder de Marvão. Este, apelando para uma tática suicida, enviou uma carta ao Emir, afirmando que destruiria o próprio castelo e lançaria ataques nas serras e nos campos abertos, levando caos como resposta ao exército que se movia até ele. A ameaça convenceu o Emir e logo o ataque foi suspenso.

Não se sabe ao certo quando Marvão morreu, tendo sobrevivido aos governos de diversos emires. As especulações mais seguras, porém, determinam que ele morreu entre 890 e 912 d.C., sendo então sucedido pelo seu filho ibn Zaide Maruane como príncipe de Badajoz. O Estado de Marvão sobreviveria até o surgimento do Califado de Córdoba, quando rebeldes e governadores autônomos da Espanha Islâmica foram subjugados pelo governo revigorado dos novos Califas.

REFERÊNCIAS: