Muitos muçulmanos acreditam hoje que os mongóis do século XIII reservavam um ódio especial ao Islã e seus adeptos. Essa postura intelectual tem agora quase 800 anos de idade – “O Islã e os muçulmanos foram afligidos durante este período com calamidades com as quais nenhum outro povo o foi”, escreveu Ibn Athir em 1220 [1] – as consequências das conquistas mongóis continuaram a se desdobrar no mundo muçulmano até os dias de hoje.

Contudo, seria isto verdade?

Os mongóis foram expostos ao islamismo muito antes de pensarem em conquistar o mundo muçulmano. Quando Temujin – o menino que um dia se tornaria Genghis Khan – nasceu na década de 1160, os mongóis e seus parentes de outras tribos já vinham servindo há séculos como guardas das caravanas comerciais de mercadores muçulmanos que viajavam pela Rota da Seda. Mesmo entre os povos das estepes (incluindo os mongóis e outras tribos) que viviam uma vida mais tradicional, muitos abraçaram o Islã. Muitos deles se tornaram alguns dos mais fortes apoiadores de Genghis Khan, e três deles até participaram da famosa Aliança de Baljuna, um juramento solene de lealdade prestado nas margens do Lago Baljuna em 1203 durante o teste mais difícil da vida de Gêngis Khan. [2]

Genghis Khan poderia procurar apoio muçulmano ainda mais forte entre o povo uigur, que vivia no atual Quirguistão, no Cazaquistão e no noroeste da China. No início do século XIII, eles eram governados por um subgrupo budista da tribo khitan, conhecido pelos mongóis como o Kara Khitan (“Khitans Negros”). Os khitan eram primos distantes dos mongóis. Eles eram originalmente da Manchúria (norte da China), mas foram expulsos da região pela tribo Jurchen. Guchlug, um notável cristão da tribo Naiman, havia recentemente fugido de sua terra natal depois que sua tribo foi derrotada pelos mongóis. Ele foi para o território uigur, onde logo se casou com a filha do chefe dos Khitans Negros e, em seguida, derrubou seu sogro, assumindo o controle. Para manter a atenção longe de sua própria ascensão indecente ao poder, Guchlug voltou a atenção do público para um inimigo comum de cristãos e budistas – os muçulmanos uigures.

Guchlug imediatamente começou a perseguir seus súditos muçulmanos, proibindo o azan (chamado à oração), o salah (a oração em si) e a educação religiosa. Quando ele deixou a capital do seu império, Balasagun, em uma campanha militar, os muçulmanos fecharam os portões da cidade e impediram que ele voltasse a entrar. Furioso, Guchlug retornou e sitiou sua própria capital, conquistou-a e depois destruiu grande parte dela. Desesperadamente, os uigures foram agora ao único governante local poderoso o suficiente para ajudá-los: Gêngis Khan. Gêngis Khan imediatamente enviou um exército de 20.000 soldados mongóis junto a um dos seus generais mais competentes, Jebe, marchando 2.500 milhas pela Ásia para apoiar os muçulmanos perseguidos. Os mongóis rapidamente esmagaram as forças de Guchlug e o próprio Guchlug foi executado em algum lugar no Himalaia, na Caxemira.

Como os mongóis vieram em apoio a um grupo religioso perseguido, eles não saquearam, destruíram propriedades nem agrediram civis como de costume. Após a vitória, os mongóis enviaram um mensageiro a Kashgar, a capital cultural dos uigures, para declarar completa liberdade religiosa. A população muçulmana de Kashgar comemorou e declarou que os mongóis eram “uma das misericórdias do Senhor”. [3]

Claramente, então, os mongóis não eram veementemente anti-islâmicos, como muitos na comunidade muçulmana continuam a acreditar. Mas isso deixa uma questão muito importante sem resposta: por que os mongóis destruíram grande parte da civilização muçulmana clássica?

Gêngis Khan ofereceu sua própria explicação um dia em março de 1220. Ele acabara de conquistar Bukhara, uma cidade que era simbolicamente importante como um famoso centro de aprendizado e cultura islâmica e estrategicamente como um importante centro de comércio localizado na Rota da Seda. Foi a primeira cidade muçulmana que ele conquistou e ele tentou aproveitar a oportunidade para impressionar os muçulmanos em todos os lugares. Geralmente, era sua prática nunca entrar pessoalmente em uma cidade que ele havia conquistado. No entanto, em Bukhara ele entrou na cidade, levando sua cavalaria até seu centro.

Os mongóis estavam em Bukhara por um motivo: vingança. Bukhara foi uma das principais cidades do Império Corásmio, um dos muitos reinos muçulmanos da época. Como os corásmios controlavam grande parte da Rota da Seda entre a China e o Oriente Médio, eram excepcionalmente poderosos – e excepcionalmente arrogantes. O sultão corásmio Ala ad-Din Muhammad II (r. 1200-1220), depois de expandir tanto o poder de seu império durante seu reinado, no final selou seu destino ao saquear uma caravana comercial mongol e desfigurar os rostos dos embaixadores enviado por Gêngis Khan para negociar relações comerciais pacíficas. Era a arrogância do sultão – não sua religião – que os mongóis logo iriam destruir. [4]

”O rei corásmio, Alaudin Mohammed, considerava-se um gênio militar e, em sua arrogância, decidiu ensinar aos mongóis uma lição. Ele começou interceptando 450 comerciantes que viajavam por seu reino sob proteção mongol. Acusando esses pobres comerciantes de espionagem, ele os matou e tomou seus bens, mas deliberadamente deixou um homem escapar para que voltasse e desse notícias do massacre a Gengis Khan. Ele estava procurando problemas.

O senhor mongol enviou três emissários a oeste para exigir reparações. Provavelmente foi a última vez que Gengis se mostrou tão tolerante. E agora, Alaudin Mohammed cometeria o maior de seus erros. Ele executou um dos emissários e enviou os outros dois para casa com suas barbas arrancadas. Nesta região, ninguém poderia oferecer a um homem insulto mais doloroso do que arrancar sua barba. Alaudin sabia disso muito bem, mas queria ofender, pois estava arruinando-se por uma briga … e ele conseguiu uma. Em 1219 começou a grande catástrofe

Os mongóis na verdade não dominavam exércitos incomparavelmente grandes. Eles ganhavam batalhas com estratégia, ferocidade e sim, tecnologia. Por exemplo, quando atacavam cidades fortificadas, eles empregavam máquinas de cerco sofisticadas adquiridas a partir dos chineses. Eles tinham arcos compostos feitos de várias camadas de madeira coladas, que poderiam disparar mais do que os arcos usados no mundo “civilizado”. Eles lutavam a cavalo, e suas habilidades de equitação eram tais que algumas de suas vítimas pensavam que os mongóis eram alguma nova espécies de criaturas semi-humanas metade cavalo, anteriormente desconhecidas pela civilização. Seus cavalos eram resistentes e rápidos, mas eram pequenos, então um guerreiro mongol podia agarrar seu cavalo com as pernas, pendurar-se de um lado e disparar flechas de debaixo da barriga do animal, usando o corpo da besta como escudo. Os mongóis podiam andar a cavalo por dias e noites e no final, dormindo na sela e se alimentando das veias que abriram no pescoço dos cavalos, de modo que depois de saquear uma cidade, de repente poderiam aparecer em uma cidade mais distante tão rápido que quase pareciam possuir poderes sobrenaturais. Às vezes, os mongóis traziam cavalos extras com manequins montados sobre eles para transmitir uma impressão de números esmagadores: era apenas mais um dos seus muitos truques militares.

Gengis esmagou o exército de Alaudin, deixando-o escapar fugindo pela sua vida. O Khan queimou a Transoxiana, as terras de cada lado do rio Oxus e destruíu cidades famosas como Bukhara, onde o renascimento da literatura persa tinha começado dois séculos antes. Ele arrasou a lendária cidade velha de Balkh, despejando sua biblioteca no rio Oxus, centenas de milhares de volumes manuscritos varridos. Então ele marchou em Khorasan e na Pérsia; o historiador muçulmano Sayfi Heravi disse que os mongóis mataram 1.747.000 quando saquearam Naishapur,dizimando tudo, inclusive cães e gatos.

Tamim Ansary -Destiny Disrupted: A History of the World Through Islamic Eyes

Apenas alguns meses depois, Genghis Khan estava sentado triunfalmente em cima de seu cavalo no meio de Bukhara. Reunidos em torno dele estavam os civis de Bukhara, que entregaram sua cidade a ele depois que o exército turco de 20 mil homens de seu sultão fugiu da cidade, aterrorizado demais para defendê-la do exército mongol que se aproximava. Gêngis Khan perguntou se o prédio grande e bonito que ele viu em frente a ele era a casa do sultão. Foi-lhe dito que era uma mesquita – a Grande Mesquita de Bukhara. Ele desmontou de seu cavalo e entrou na mesquita, a primeira e única vez que ele entrou em um prédio religioso em sua vida (até onde sabemos). Gêngis Khan ordenou aos estudiosos e estudantes islâmicos de “ulūm ad-dīn” (ciências religiosas) que estavam reunidos na mesquita para alimentar seus cavalos, e em troca ele pessoalmente garantiu que eles estariam a salvo da perseguição.

O imponente líder mongol pediu então que as 280 pessoas mais ricas da cidade fossem trazidas para ele. Uma vez que eles e outros se reuniram na mesquita, Genghis Khan subiu no mimbar (púlpito) e se dirigiu a eles através de seus intérpretes. Ele falou sobre os pecados do sultão Ala ad-Din Muhammad II e os pecados de seus novos súditos em Bukhara. “São os notáveis dentre vocês que cometeram esses pecados”, disse ele, e as pessoas comuns não são culpadas pelo destino da cidade. “Se vocês não tivessem cometido grandes pecados, Deus não teria enviado uma punição como eu sobre vocês.” Ele então designou um de seus guerreiros para cada um dos 280 homens ricos para acompanhá-los onde quer que estivessem escondendo sua riqueza acumulada e traze-la para ele. [5]

Miniatura persa medieval do século XIV retratando Gengis se dirigindo aos dignatários de Bukhara.

Gengis Khan então levou seus soldados e seguiu para a cidadela da cidade, onde cerca de 500 soldados ainda leais aos corásmios haviam se trancado. É aqui que os mongóis realmente demonstrariam sua raiva pela arrogância do sultão. Eles usaram o equipamento de cerco que haviam dominado durante suas campanhas anteriores na China, armas que esses soldados muçulmanos nunca tinham visto e que foram projetadas para não apenas destruir, mas para aterrorizar. Ata-Malik Juvaini, uma testemunha ocular persa que registrou esses eventos, resumiu o destino dos soldados na cidadela: ”eles afogaram-se no mar da aniquilação”. [6]

O exército de Gêngis Khan se moveu rapidamente, mas sua reputação se moveu mais rápido. Samarqanda, a capital vizinha do Império Corásmio, rendeu-se em termos pacíficos antes da chegada dos mongóis. Ala ad-Din Muhammad II abandonou seu trono e fugiu por sua vida para uma pequena ilha no Mar Cáspio, onde morreu. Em apenas um ano, os mongóis eliminaram completamente o poderoso Império Corásmio do mapa. Nos quatro anos seguintes, eles continuaram sua conquista da civilização muçulmana no leste, tomando uma cidade muçulmana atrás da outra. Urgench, Balkh, Merv, Nishapur, Herat, Bamiyan, Ghazni, Peshawar, Tabriz, Derbent e muitas outras se renderam ou foram tomadas à força. Genghis Khan só parou em Multan (no atual Paquistão), de onde planejara invadir o território do sultanato de Delhi, primeira dinastia muçulmana a governar o norte da Índia. No entanto, os mongóis acharam o calor do Punjab insuportável, então abandonaram a campanha e se dirigiram para o norte. [7]

Gêngis Khan nunca retornou à Ásia Central ou prosseguiu ao Oriente Médio, mas seus netos continuaram de onde ele havia parado. Em 1253, exatamente trinta anos depois do retorno de Genghis Khan de Multan, seu neto Mongke Khan convocou um khurultai, um conselho tradicional de líderes mongóis, em Karakorum, a capital de seu imenso império. Após a morte de Gêngis, seus filhos se envolveram em uma luta pelo poder que fez as conquistas mongóis cessarem. Mongke Khan foi o primeiro líder em muitos anos a ser reconhecido por praticamente todos os mongóis, e agora estava pronto para continuar as conquistas. No khurultai, ele ordenou a seu irmão Kublai que iniciasse a invasão do território da dinastia Sung na China. Ele ordenou a Hulagu, um irmão mais novo, que retomasse a campanha contra a civilização muçulmana. No entanto, desta vez, Mongke não precisava apenas do território marginal muçulmano na Ásia Central. Desta vez ele queria as jóias da civilização muçulmana clássica: Bagdá, Damasco e o Cairo. [8]

Hulagu pode, de fato, ter tido alguns preconceitos anti-islâmicos, considerando a influência de sua mãe e esposa cristãs e, mais importante, considerando a devastação que causou ao conquistar o Oriente Médio. Depois de devastar grande parte do Irã – incluindo a eliminação completa da lendária rede de terroristas xiitas ismaelitas nizaris conhecidos como Hashīshiyūn (Assassinos) – ele chegou a Bagdá em janeiro de 1258. Ele já havia enviado mensageiros para o califa abássida em Bagdá, al-Mustasim (r. 1242-1258), exigindo sua rendição. Mas al-Mustasim recusou a rendição, rindo das ameaças de Hulagu e respondendo a ele que os muçulmanos de todo o mundo viriam em defesa de Bagdá se fosse necessário. Hulagu fez uso de cristãos – soldados da Armênia e da Geórgia, bem como informantes de dentro de Bagdá – em sua conquista da capital abássida. A cidade foi tomada em 10 de fevereiro de 1258 e saqueada por 17 dias antes de ser incendiada. Al-Mustasim foi pisoteado até a morte por cavalos mongóis em 20 de fevereiro.

Mas antes de matá-lo, Hulagu explicou a al-Mustasim – à sua própria maneira – por que ele acreditava que os muçulmanos haviam perdido Bagdá. Hulagu mandou que o califa fosse aprisionado e deixado passar fome até que ele começasse a implorar por comida. Então, Hulagu pegou um pouco do tesouro do inimigo derrotado, e ofereceu-lhe uma pepita de ouro para comer. Quando al-Mustasim não pôde comê-lo (por razões óbvias), Hulagu repreendeu o ex-califa por acumular sua riqueza em vez de usá-la para defender a si mesmo e seu povo contra os mongóis. Então, al-Mustasim conheceu seu destino. [9] O exército de Hulagu então tomou Damasco (através de uma rendição pacífica) e grande parte da Síria, antes de serem finalmente derrotados por um exército mameluco do Egito na batalha de Ayn Jalut em 3 de setembro de 1260. Mongke Khan havia falecido exatamente um ano mais cedo, e Hulagu ainda não havia retornado do khurultai realizado na Mongólia para selecionar um novo líder mongol. [10]

Imagem relacionada
Hulagu e seus homens em cerco à Bagdá, 1258.

Fazia quatro décadas desde a conquista de Bukhara por Gengis Khan, e nessa época os mongóis haviam levado a civilização muçulmana ao ponto mais baixo de sua história. Nem na Europa nem no Extremo Oriente – as outras duas regiões importantes que os mongóis haviam penetrado – foi a conquista tão destrutiva. Isso pode (e provavelmente fez) levar muitos muçulmanos a acreditar que os mongóis devem ter odiado exclusivamente o Islã e reservado sua fúria para seus adeptos. Mas isso não se opõe à evidência histórica apresentada aqui: não é o islamismo que os mongóis não suportavam, mas a arrogância da elite muçulmana.

Ilustração do século XIV representando as armas de cerco utilizadas por Hulago.

Uma prova final que sustenta isso é o fato de que algumas das mais fortes oposições à devastação de Hulagu no Iraque e na Síria vieram de seu próprio primo, Berke Khan, o governante da Horda Dourada (a parte noroeste do Império Mongol). Alguns anos antes, Berke, em uma viagem de volta da Europa para a Mongólia para participar de um khurultai, parou em Bukhara e conheceu alguns estudiosos islâmicos. Ele então abraçou o Islã e, após ouvir sobre a destruição de Bagdá por seu primo alguns anos antes, prometeu se vingar em nome dos muçulmanos. Mas mesmo os próprios descendentes de Hulagu, em poucas gerações, haviam abraçado o Islã, e também muitos plebeus mongóis.

A lição disso para a comunidade muçulmana hoje é permanecer consciente de suas próprias falhas, falhas que são frequentemente discutidas no Alcorão e na Sunnah do Profeta Muhammad (que a paz e as bençãos de Allah estejam sobre ele), falhas que podem ser exploradas por forças hostis.  E a primeira coisa que precisa ser abordada quando as falhas são exploradas não é a natureza “mal” ou “islamofóbica” das pessoas que as exploram, mas a razão pela qual essas falhas existem em primeiro lugar. Muitos muçulmanos achavam que a vinda dos mongóis era um castigo de Deus por seus pecados, e ainda assim parece que poucos pensaram nos pecados pelos quais estavam sendo punidos. A falha dos muçulmanos (ou pecado, se você quiser) neste caso era claramente sua arrogância – e Gengis Khan literalmente entregou essa mensagem para eles em Bukhara. Mas era uma verdade inconveniente, e foi sepultada em uma cidade muçulmana após a outra até que fosse tarde demais para todos eles.

Essa atitude é o que os mongóis vieram a destruir, não o islamismo.

Biblioagrafias:

[1] Edward G. Browne, A Literary History of Persia, (Cambridge: Cambridge University Press, 1902), Vol. II, pp. 427-431.

[2] Jack Weatherford, Genghis Khan and the Making of the Modern World, (New York: Crown Publishers, 2004), p. 105.

[3] Ibid, pp. 159-161.

[4] Ibid, p. 37.

[5] Ibid, pp. 39-40.

[6] Ibid, p. 42.

[7] Ibid, p. 186.

[8] Ibid, p. 249.

[9] Ibid, pp. 254-58.

[10] Ibid, p. 260.

Fonte: http://www.ihistory.co/did-the-mongols-really-hate-islam-or-just-the-muslims-arrogance/