Texto de: Pedro Gaião

A Europa é Cristã? Essa simples pergunta continua sendo a gênese de conturbadas, polêmicas e acaloradas discussões sobre a real identidade do continente europeu e do papel que o Cristianismo desenvolve nele. E esta não é apenas uma discussão que diz respeito a debates religiosos, ao conservadorismo ou sobre identitarismo em si: mesmo a União Europeia nos últimos anos ainda tem dificuldades em estabelecer até onde países como a Turquia (que ainda possui uma modesta faixa de território europeu) compartilha dos chamados valores europeus; afinal de contas, para muitos o Islamismo é uma religião invasora, forasteira e irreconciliável com aquilo que a Europa representa no seu espectro mais conservador (representado pelo Cristianismo) ou no seu aspecto mais liberal (Iluminismo, liberdades modernas, democracia etc).

Neste cenário, países como a Bósnia representam o arquétipo de uma existência indesejada. De maioria muçulmana e com uma forte identidade islâmica consolidada em meio milênio de história, a adoção e persistência na “religião maometana” foi um pecado demasiadamente mortal para muitos grupos cristãos nos Bálcãs nos últimos séculos. O tipo de incômodo que levaria países como a Sérvia Ortodoxa e a Croácia Católica, ambos com histórico de praticar genocídio um contra o outro, a praticar campanhas de extermínio contra a comunidade de bósnios muçulmanos.

Mas afinal, quando e como a Bósnia se tornou islâmica? Numa resposta curta: a partir do século XIV, em consequência da Conquista Islâmica. A resposta longa, contudo, nos obriga a retornar aos séculos anteriores da Idade Média, descrevendo como uma antiga heresia cristã desenvolveu a forma como conhecemos a Bósnia de hoje.

As Origens e o Desenvolvimento do Bogomilismo

Antes de se estabelecer nos Bálcãs, a heresia que passou a ser conhecida como “Bogomilismo” têm suas origens na pregação do armênio Constantino (ou Silvanus) de Mananalis, em meados do século sétimo. Espalhando suas doutrinas pelo Império Bizantino e pela Armênia, o movimento de Constantino buscava retornar à pureza da Igreja nos tempos do Apóstolo Paulo, gerando a primeira alcunha com a qual o grupo foi identificado: Paulicianismo.

Além da iconoclastia e da condenação do culto às imagens, um outro aspecto relevante desta nova doutrina, bastante similar àquilo defendido por Marcionistas e Gnósticos, era a rejeição do Antigo Testamento e a crença em dois Deuses: um deus bom, criador da alma e daquilo que dizia respeito ao mundo imaterial, e um deus mal, criador do mundo físico e do corpo humano. Por conta deste dualismo, seus fiéis procuravam seguir uma rígida conduta moral, destacando-os dos demais cristãos de sua época. Contraditoriamente à sua rejeição do mundo material, os Paulicianos eram conhecidos como excelentes guerreiros, uma qualidade que lhes será decisiva nas reações institucionais ao seu respeito, considerando que pelo século VII a adesão à esta heresia era punida com morte na fogueira.

A utilidade dos Paulicianos como soldados explica o porquê, diferente de outras heresias na história cristã, eles não foram tão sumariamente exterminados como muitos outros grupos alienados de poder político.

Uma das políticas mais típicas adotadas por imperadores bizantinos era outorgar migrações em massa de paulicianos nos locais onde eles eram numerosos e poderosos, como a Armênia e a Anatólia Oriental, e remanejá-los para a fronteira com o Império Búlgaro, onde poderiam protegê-la. A partir daí, na Armênia e na Anatólia Bizantina, os paulicianos foram progressivamente convertidos ou executados até cessarem de ter uma existência significativa, no século XIII. Ainda assim, Geoffrey de Villehardouin, um cavaleiro cronista da Quarta Cruzada, menciona a presença persistente de paulicianos na capital bizantina de Constantinopla (1202-1204).

O principal problema desta política migratória foi o estabelecimento da heresia pauliciana para o coração dos Bálcãs, onde desfrutou de relativa popularidade entre os pobres e os camponeses recém-convertidos ao cristianismo ortodoxo, que já demonstravam grande insatisfação com a corrupção da Igreja Ortodoxa. Existia também outro motivo para os ensinos paulicianos serem populares entre pobres: sua teologia social, que mais parecia um verdadeiro proto-marxismo.

“Eles ensinam aos seus seguidores a desobediência aos seus mestres; eles desprezam os ricos, odeiam os tsares, ridicularizam seu superiores, reprovam os nobres e acreditam que Deus olha com horror para aquele que labutam para o Tsar, advertindo todos os servos à não trabalharem para seus mestres” (Tratado contra os Bogomilitas, do padre Cosme).

A partir da Bulgária, os paulicianos se estenderam para a Rússia, Dalmácia, Bósnia, Sérvia, Itália, Países Baixos e para a própria França, onde passaram a ser conhecidos como Cátaros. Em todos esses lugares, mais cedo ou mais tarde, os paulicianos foram alvo de perseguição pelos cristãos ortodoxos. Por razão disto, milhares de paulicianos optaram por se refugiar na Bósnia e na Dalmácia, onde puderam se estabelecer em paz.

Mas evidentemente isto atraia descontentamentos de uma outra instituição religiosa: a Igreja Católica Romana. Naquela época, toda a região da Bósnia e adjacências estava sobre a autoridade teórica da União de Coroas do Reino da Hungria, cujos monarcas levavam a sério seu compromisso em submeter os cismáticos ortodoxos à religião papal.

Em 1203, por esforço conjunto do clero católico e das autoridades húngaras, o Banato da Bósnia apostatou legalmente da sua religião ortodoxa e aderiu ao Catolicismo Romano, seguindo o Rito Latino e reconhecendo a Supremacia Espiritual do Papa. Mas esta transição não tornou a Igreja Estatal Bósnia em uma seguidora rígida da agenda papal.

A leniência da igreja bósnia com um grupo visto como altamente subversivo como os paulicianos (ou bogomilitas, como também eram conhecidos na época) induziram diversas acusações de que a mesma era simpática com a mesma heresia que a Igreja combatia à ferro e fogo no Sul da França, através das Cruzadas Albigenses (1209-1229). Demandas papais por uma cruzada contra a Bósnia por meramente tolerar a heresia bogomilita já haviam sido emitidas pelo Papa Honório III em 1221, sendo repetidas novamente em 1225 devido à falha dos soberanos católicos oferecer alguma resposta.

A pregação papal de 1225, apesar de respondida pela Húngria, também falhou em organizar qualquer coisa, sendo somente no reinado de Gregório IX que mudanças começaram a ser vistas. Ao que tudo parece indicar, nesta época o bispo da Bósnia parece ter sido ele mesmo um bogomilita; além disso, Matej Ninoslav, o próprio governante (ban) do país, vinha de uma família de aristocratas fiel à heresia bogomilita, levantando grande insatisfação e desconfiança em Roma.

Gregório IX preparou terreno para a cruzada em duas etapas. A primeira foi destituir o antigo bispo da Bósnia e substituí-lo com um zelote alemão, um prelado dominicano extremamente leal à agenda romana e o primeiro bispo do país que não era ele mesmo bósnio. A segunda medida foi assegurar o catolicismo de Matej Ninoslav através de um exame de fé e da exigência de que o mesmo deveria ceder o próprio filho como prisioneiro papal, garantindo que a não-intervenção do Estado Bósnio na campanha de extermínio que seria levada à cabo pelo exército cruzado, composto primariamente de militares húngaros.

Não surpreendentemente, o novo bispo foi hostilizado pela população recém-católica da Bósnia, que também não queria hospedar uma campanha destrutiva pelo extermínio da heresia. De fato, o apoio dado pela Igreja da Bósnia à comunidade bogomilita levou toda uma imensa ala de historiadores a crerem que a própria Igreja Estatal Bósnia era, ela mesma, bogomilita. Todavia, devido ao fato de termos pouquíssimas fontes a respeito da organização e detalhes da mesma – graças à destruição documental generalizada promovida pela cruzada e pelo clero católico leal a Roma, não existe qualquer referência que indique que a Igreja do Banato Bósnio era ela mesma bogomilita. Tomando em consideração o arranjo proposto por outra ala de historiadores, a Igreja Bósnia seria basicamente um catolicismo romano que se diferenciava, principalmente, pela não-perseguição de grupos heréticos e cismáticos. Nos tempos dos Autos-de-Fé da Ordem Dominicana e da sua futura Inquisição, tal tolerância religiosa constituía uma clara evidência de conduta apóstata e repreensível, senão ela mesma herética.

A Cruzada na Bósnia, como se poderia esperar, foi responsável por uma imensa devastação no país, tanto em recursos naturais e em estruturas quanto nas perdas humanas ceifadas pela expedição. Em abril de 1238, após 5 anos de campanha, um dos líderes da cruzada havia informado o Papa de que a Bósnia havia sido “limpa” da heresia. Apesar disso, campanhas contra comunidades heréticas continuaram sendo realizadas até o fim do ano. À esta altura, o próprio dominicano alemão havia sido deposto por “incapacidade” de executar sua função episcopal, sendo substituído por Ponsa, um dominicano húngaro responsável por um período de terror religioso na Bósnia, com inúmeros bogomilitas sendo queimados na fogueira.

Todavia, a Cruzada na Bósnia acabou tendo um fim diferente da sua equivalente no Sul da França, que obteve êxito definitivo em sua campanha de extermínio contra os hereges e devastando a região à um estado oblívio. Embora os cruzados tenham de fato devastado a Bósnia, a resistência do país foi capaz de sobreviver escondendo-se nas suas florestas nativas. Incapazes de se estabelecer no país, graças à sua própria devastação, somados aos riscos causados pelas escaramuças da resistência bósnia e a eventual invasão mongóis na Hungria, o exército cruzado não teve escolha senão retirar-se do país, deixando trás apenas algumas tropas. Assim, Matej Ninoslav reorganizou seu povo e conseguiu recuperar a maior parte do Banato das mãos dos seus invasores. Ponsa, o bispo húngaro conhecido pelas execuções na fogueira, teve que fugir do país por medo de represálias, exercendo o título de bispo da Bósnia sem sequer morar no próprio país.

A heresia bogomilita permaneceu forte, o que não parece ter de todo abalado o plano papal para seu extermínio. O pontífice romano demandou novas cruzadas na Bósnia em 1246-7, em 1337-8 e em 1367; contudo, devido à arranjos diplomáticos extremamente eficientes, o Estado Bósnio foi capaz de suspender e frustrar organizações de novas cruzadas: especialmente porque, em todas estas ocasiões, os governantes da Bósnia também eram todos católicos romanos.

Um legado da Cruzada, porém, foi definitivo: a consolidação de um sentimento anti-húngaro entre o povo bósnio, o que não só seria decisivo no cisma da própria igreja estatal bósnia – até então nominalmente católica romana e submissa ao Papa – após uma intervenção papal em 1252 que a colocou no julgo da jurisdição do clero húngaro, como nos próprios fatores políticos que contribuíram para a conquista definitiva da Bósnia pelos otomanos, em 1463.

Em 1291, a bula papal Prae Cunctis instituiu a inquisição franciscana na Bósnia, o único lugar onde a heresia dualista ainda sobrevivia. O golpe mortal foi dado em 1459, nas últimas décadas do Estado Bósnio, quando a Hungria acusava a Bósnia de trair a cristandade e a única esperança de receber auxílio contra os otomanos vinha de coalizações formadas pelo Papado. A mensagem do Papa Pio II foi bem clara: a Bósnia não receberia auxílio da Igreja e nem dos católicos enquanto a Igreja Bósnia fosse tolerada em seus domínios; e aqui, considerando que a crença estrangeira era de que a própria Igreja Bósnia era bogomilita, podemos facilmente inferir que a demanda papal era contra toda a sorte de religião não-católica em solo bósnio.

Pela primeira vez desde a sua formação enquanto país, a Bósnia perseguiu indivíduos por conta de suas convicções religiosas. O clero da igreja bósnia recebeu a opção de se converter ou deixar o país; cerca de 12 mil pessoas foram convertidas à força e pelo menos 40 clérigos fugiram do país. Em 1461, três homens acusados de heresia foram enviados para a Inquisição em Roma, para serem “examinados” por ninguém menos que o cardeal Juan de Torquemada, o tio do infame regente da Inquisição Espanhola, Tomás de Torquemada. Em compensação pela sua lealdade com Roma, a monarquia bósnia reteve todas as terras expropriadas das igrejas dissidentes.

No fim das contas, a perseguição em prol do conformismo católico fez pouquíssimo em prol do destino iminente da conquista otomana. E apesar das perseguições e do proselitismo predatório de missionários franciscanos e de monges ortodoxos, os próprios registros da Inquisição confirmam a existência dos bogomilitas ainda em finais do século XV, quando os otomanos já governavam o país. Curiosas, porém, são as informações contidas na própria troca de correspondências do Papa Pio II e de Estevão Tomasevic, o último rei bósnio: de acordo com este, não havia qualquer desejo por parte da população em resistir uma invasão otomana. A instabilidade política, os impostos abusivos e o legado das perseguições religiosas contra o povo e o clero alienaram consideravelmente a capacidade do próprio Estado Bósnio de erguer um exército motivado e em bons números. Iludido por uma ajuda católica que nunca viria e após diversos erros políticos, o Reino Bósnio de Tomasevic caiu em questão de semanas, com o próprio rei sendo decapitado na presença do sultão Mehmed II.

Mesmo que a Bósnia tivesse repelido efetivamente os otomanos, seriam neste arranjo os húngaros a tomarem controle do país: neste caso, a perseguição religiosa e os impostos elevados seriam ainda mais violentos do que já eram sob governo autônomo. Em nenhum dos possível resultados daquela guerra a Bósnia permaneceria como uma nação soberana.

Para coroar o dedo podre da política religiosa, o próprio Papa Pio II, talvez para se justificar da sua falha em auxiliar o reino bósnio, chegou até mesmo a acusar a falecida igreja bósnia – provavelmente sobrevivente em reuniões secretas – de ter traído o país; uma acusação que não passa de pura difamação sem-bases, conforme confirmado por historiadores (FINE, 2007, p. 339.).

Assim, a pressão externa pelo extermínio dos bogomilitas – e posteriormente da igreja cismática da Bósnia – e todas as suas consequências de curto, médio e longo prazo favoreceram uma alta receptividade da população bósnia aos conquistadores muçulmanos.

Apesar da liberdade religiosa tão desesperadamente buscada pelo povo bósnio, o Islã obteve, assim como na Albânia, uma imensa popularidade. Assim como a Albânia, fatores que explicam as conversões em grandes números seriam a pobreza destes respectivos países, a belicosidade do seu povo (muito importante nas tribos albanesas) e as perspectivas de promoção dentro de estruturas otomanas; há quem diga, ainda, que na Bósnia o próprio cristianismo nunca foi uma religião de raízes exatamente firmes na vida do povo, o que certamente foi piorado pelas constantes intervenções externas pela conversão forçada do povo para uma religião estrangeira, pela tinta ou pelo sangue.

Um século após a conquista otomana, a Bósnia tinha se tornado um país de maioria muçulmana, consagrando-se como uma evidência indesejada para aqueles que tanto militam pela propaganda de uma Europa Cristã e para cristãos, onde o Islamismo não é visto como nada mais que uma religião forasteira.

Bibliografia:

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FINE, John van Antwerp Jr. The Bosnian Church: Its place in State and Society from the thirteenth to the fifteenth century. 2007.

FINE, John van Antwerp Jr. The Late Medieval Balkans: A Critical Survey from the Late Twelfh to the Ottoman Conquest. University of Michigan Press, 1994.

BABINGER, Franz. Mehmed the Conqueror and his Time. Princeton University Press, p. 220-222.

VELIKONJA, MITJA. Religious Separation and Political Intolerance in Bosnia-Herzegovina. Texas A&M University Press, 2003.

KAYAHAN, Ayse Betül. The bogomils of Bosnia: Forgotten gnostics. Daily Sabah, Agosto de 2016. Disponível em: <https://www.dailysabah.com/feature/2016/08/24/the-bogomils-of-bosnia-forgotten-gnostics?fbclid=IwAR2XEMfc7yCG_3Cri7-XYwUNr3loP-QucfX0NJPgnpkutGVacM0vcKKMYLk>. Acesso em 6 de janeiro de 2021.

MUHARREM, Qafleshi. Journey of Goranis’ from Bogomils’ to Islam. Pristina University, Department of History, 2018.