A terça neutra é um intervalo musical milenar usado na música Árabe, trata-se de um intervalo de 355 cents em média na escala EDO 53, muito perceptível no música Nordestina, principalmente na bandas de pífano.
 
A discussão conceitual da questão da terça neutra no Brasil parece surgir apenas no final dos anos 1980. Os primeiros autores a mencioná-la, mesmo que em uma publicação em alemão, são Rocha e Pinto:
 
" Wie sehr man im Gegenteil auf die neutralen Zusammenklänge Wert legt, wird bei länger aushaltenden Schlussterzen deutlich. [...] Vom musikologischen Standpunkt aus betrachtet heisst dies auch, dass es falsch wäre, in den Stimmungen der pífanos eine Abweichung von der sogenannten ‘temperierten Norm’ zu sehen – eine Abweichung noch dazu, die man mit der mangelnden Spielfertigkeit der Musiker zu erklären gewillt sein könnte. Vielmehr existiert hier. eine eigene ‘Norm’, die nicht zuletzt die Besonderheit dieser Musik ausmacht”
 
O quanto se aprecia as combinações de intervalos neutros, fica perceptível nas terças [neutras] sustentadas por mais tempo no final de frases musicais. [...] A partir de um ponto de vista musicológico, significa que seria equivocado querer enxergar nas afinações dos pífanos um desvio da assim chamada afinação temperada. Ainda mais, um desvio que alguns gostariam de entender como expressão de uma habilidade técnica reduzida! Ao contrário, aqui existe uma “norma” própria, que expressa a característica dessa música (ROCHA; PINTO, 1986: 105, )
 
Porém, Rocha e Pinto analisam o fenômeno mais voltado para as estruturas de escalas e da afinação de instrumentos, como os pífanos, o que também foi feito em pesquisas realizadas no mesmo período por Kaufmann (1996)2 e Crook (2005). Pinto complementa em uma publicação posterior em português que “as bandas de pífanos do nordeste, os aboios, as trovas dos repentistas, as toadas de caboclinhos, os forrós pé de serra, todo este vasto repertório é caracterizado pela terça neutra” (PINTO, 2001: 242), embora não aprofunde a questão.
 
Os já referidos autores, de certa forma, retomam uma discussão sobre as especificidades da música nordestina, iniciada pelo violinista catalão Luis Soler, radicado no Brasil no final dos anos 1950. A partir de sua vivência em Recife, Soler fez uma associação da música nordestina com possíveis influências árabes, mesmo que mais pautada nas estruturas poéticas, discutidas por ele (1978, 1995). Porém, todas as pesquisas mencionadas até agora tiveram um precursor, Mário de Andrade, que já em 1928 publicou as seguintes afirmações:
 
" No canto nordestino tem um despropósito de elementos, de maneiras de entoar e de articular, susceptíveis de desenvolvimento artístico. Sobretudo o ligado peculiar (também aparecendo na voz dos violeiros do centro) dum glissando tão preguiça que cheguei um tempo a imaginar que os nordestinos empregavam um quarto-de-tom. Pode-se dizer que empregam sim. Evidentemente não se trata dum quarto-de-tom com valor de som isolado e teórico, baseado na divisão do semitom [...]. Mas o nordestino possui maneiras expressivas de entoar que não só graduam seccionadamente o semi-tom por meio do portamento arrastado da voz, como esta às vezes se apoia positivamente em emissões cujas vibrações não atingem os graus da escala. São maneiras expressivas de entoar, originais, características e dum encanto extraordinário (ANDRADE, 1972: 57, grifos nossos). "
 
A terça neutra é apenas uma das influências musicais que a cultura popular nordestina pode ter herdado dos árabes. Soler (1995: 101) cita remotamente algumas outras características, raras ou inexistentes na tradição ocidental, que corroboram essa ideia, como o gosto pelo canto recitado, em que indivíduos solistas alternam-se com o coro, e a preferência pelos intervalos musicais pequenos, menores que o semitom, como as cantilenas dos beduínos, que dividiam a terça menor em seis partes iguais, o que corresponderia a quartos de tom. Aos itens acima, adiciona-se a habilidade extraordinária para a mais específica em relação à possibilidade da existência da terça neutra no Nordeste.
 
Breve Histórico da Terça Neutra
 
Entre os séculos VIII e X, diversos sistemas acústicos musicais coexistiam na cultura árabe, alguns deles resultantes de intercâmbios culturais com persas e gregos (RASHID, 1996: 599). No final do séc. VIII, um alaudista de Bagdá chamado Mansur Zalzal alterou a técnica do instrumento com o intuito de permitir uma melhor aplicação do dedo médio no dedilhado, possibilitando a execução de certas relações intervalares até então não documentadas na técnica do alaúde, uma das quais passou a ser conhecida como “terça neutra de Zalzal”.
 
Em sua época, era comum entre os alaudistas o uso de um intervalo chamado terça menor persa, que correspondia a 303 cents. Zalzal introduziu (RASHID, 1996: 599) um intervalo equidistante entre a terça menor persa (303 cents) e a terça maior pitagórica (407 cents, ou 81/64), resultando em 355 cents, intervalo que passou a identificar a terça neutra que leva seu nome. O registro histórico da terça neutra de Zalzal já aparece na conhecida obra Kitab al-musiqi al-kabir (“O grande livro da música”), de autoria do musicólogo, filósofo e cientista Al-Farabi (séc. X).
 
Fonte:
- Terça neutra: um intervalo musical de possível origem árabe na música tradicional do nordeste brasileiro
- A nota pouco conhecida no Ocidente que pode ser encontrada na música Nordestina: https://youtu.be/7Mwm_gTVEVY
A Briga do cachorro com a onça, música da tradicional bandinha de pífanos de Caruaru, onde as terças neutras são perceptíveis: https://youtu.be/KBogfzbsU2I