O estudo da anatomia é um ponto essencial para a medicina moderna, sendo algo básico que os futuros profissionais da saúde devem dominar. Contudo, para que o nosso moderno conhecimento anatômico chegasse ao nível que chegou, foram necessários milênios de história da medicina, história essa que passou pelas mais diversas civilizações: grega, cristã europeia, islâmica, hindu, chinesa e assim por diante até alcançar o século XXI.

O corpo é algo de grande importância para as religiões abraâmicas no geral. Cada uma delas vai tratar o corpo de acordo com suas peculiaridades, as vezes possuindo divergências até dentro do próprio sistema religioso. Não somente isso, mas o corpo sem vida também possui um elevado caráter dentro dessas religiões, devendo ser respeitado e preservado, assim como concedido um funeral justo e digno.

No Islã, o respeito e cuidado pelo corpo é algo básico, tanto por questões de melhor qualidade de vida quanto pela ritualística da própria religião. Por se tratar de uma religião completa e que abrange todas as esferas da vida humana, não é raro encontrar tratativas a respeito do corpo dentro das fontes islâmicas, que vão desde a maneira correta de se higienizar até verdadeiros manuais de saúde com base na Sunnah do Profeta Muhammad, por vezes diretamente conectados aos preceitos da religiosos.

O respeito pelo corpo transcendia o fato de ele estar vivo ou não, sendo esse cuidado transferido também para os corpos já sem vida. Assim, podemos encontrar rituais fúnebres específicos e característicos de cada uma das religiões abraâmicas e o grande zelo pelos mortos, tanto pelo cuidado prestado aos seus túmulos, como até mesmo em orações pedindo sua intercessão ou rezando pela sua memória.

Os muçulmanos seguem várias tradições após a morte. Os olhos e a boca devem estar fechados e os membros devem estar esticados. O corpo é lavado e coberto de uma maneira específica e fica voltado para Meca. Os muçulmanos são sempre enterrados sem embalsamamento e nunca são cremados. O falecido deve ser enterrado o mais rápido possível, geralmente dentro de 24 horas, e o sepultamento deve ser o mais próximo possível do local da morte, de preferência. Vários familiares e membros da comunidade viajam até o local e participam do processo. Os membros da família não comem até que o falecido seja enterrado. A Shariah afirma que a importância do sepultamento é trazer os mortos para mais perto do que Deus preparou para eles e trazer o servo de Deus para mais perto Dele. O exame pós-morte inevitavelmente atrasaria isso e, potencialmente, deixaria o corpo em um estado de decomposição (WEAVER, 2020).

Esse grande zelo ao corpo humano dado pelo Islã, por exemplo, possibilitou que seus fiéis estivessem dentre os maiores médicos da história, com contribuições desde a oftalmologia até à organização dos próprios hospitais e na criação de medicamentos. Contudo, o mesmo cuidado acabou transformando a dissecação de cadáveres humanos como um certo tabu em algumas regiões e épocas do mundo islâmico.

Até o século X, a dissecação em cadáveres humanos não era praticada nas terras do Islã. O Islã, contudo, não possui uma proibição clara em suas fontes da prática que conhecemos como dissecação, mas sim algumas “pistas” que sugeriram aos estudiosos muçulmanos ao longo dos anos de que práticas como essa não deveriam ser realizadas. Dentre essas passagens que podem levar a um entendimento proibitivo, pode ser encontrado um hadith do profeta Muhammad afirmando que quebrar o osso de uma pessoa morta é equivalente a quebrar o osso de um vivo. Muito embora esse dito profético não esteja se referindo diretamente à dissecação de corpos, o mesmo foi por vezes interpretado dessa maneira em uma espécie de interpretação literal mais extensiva.

O termo em árabe utilizado para dissecação é intercambiável com anatomia: tashrih. Essa palavra é encontrada no Cânone de Medicina de Ibn Sina, sendo usada para referenciar a anatomia de várias partes do corpo, e não a dissecação.

Muito embora Avicena não tenha se referido ao termo tashrih com a finalidade de dissecação, mas sim de anatomia, é acreditado que alguns outros médicos muçulmanos famosos tenham a praticado. Dentre esses grandes nomes da medicina islâmica, podemos citar Ibn Zuhr da Al-Andaluz do século XII; Ibn Jumay, médico de Saladino no século XII; Ibn al-Nafis na Síria do século XIII e assim por diante.

Como dito anteriormente, as fontes islâmicas não proíbem explicitamente a dissecação, seja no Alcorão ou nos ahadith. A literatura, contudo, indica que a dissecação era proibida pela lei islâmica, o que também não impede de que a mesma tenha sido praticada por alguns médicos muçulmanos ao longo da história, seja ela a dissecação animal ou não. Indo mais além, a maioria dos estudiosos muçulmanos considerava o estudo da anatomia como uma forma de elevar sua fé em Deus e também de admirar Sua sabedoria (ALGHAMDI; ZIERMANN; DIOGO, 2017).

Como os médicos muçulmanos medievais obtiveram grandes progressos na medicina se comparados aos seus predecessores gregos, tal evolução das ciências médicas sugere uma observação direta do funcionamento anatômico interno do corpo humano, porém é difícil afirmar se essas observações foram feitas em cadáveres ou em pessoas enfermas. É especulado, por exemplo, que as descrições extremamente detalhadas da anatomia humana nas obras do médico muçulmano al-Razi tenham sido frutos de dissecações, inclusive quando se é levado em conta que ele havia sido um ávido defensor público da dissecação para fins de estudos medicinais. Ibn Sina também se encontra em uma situação semelhante devido aos inúmeros detalhes nas suas obras, levando alguns autores a crer que ele também havia praticado a dissecação.

Outro médico muçulmano que também defenderia a dissecação além de al-Razi seria Ibn Rushd, ou Averróis. Em suas obras, Averrós afirmaria que a prática da disseacão fortalece a fé. Todavia, Averróis ainda se valia de algumas observações anatômicas feitas por Galeno, que já haviam sido refutadas e provadas estarem erradas por outros médicos muçulmanos. Grande parte dos erros de Galeno em anatomia se devia ao fato de que o mesmo não havia praticado dissecação em humanos, mas sim em macacos.

Apesar da prática da dissecação não ser referenciada nas fontes islâmicas e mesmo assim ter sofrido proibições legais, a amplitude de referências e defesas à prática que alguns autores muçulmanos fizeram, juntamente com o grande avanço trazido pelos mesmos e a miríade de detalhes intrincados a respeito da anatomia humana, nos levam a crer que alguns deles podem ter, de fato, praticado a dissecação em cadáveres humanos, e não somente em animais como seus predecessores greco-romanos. Porém, muitas questões ainda devem ser respondidas, como por exemplo o grande avanço na anatomia, cirurgia e demais campos médicos, enquanto o conhecimento de certas áreas do corpo (como os músculos) permaneceram praticamente estagnados, isso em um cenário onde a dissecação possivelmente tenha ocorrido:

As descrições de autores muçulmanos proeminentes - pelo menos os primeiros, como ibn Abbas e ibn Sina - basicamente repetiam descrições errôneas da anatomia humana com base nas dissecações de macacos por Galeno. Como é possível que por mais de 1000 anos ninguém realmente dissecasse, ou apenas observasse - durante cirurgias ou em cadáveres - a estrutura / forma dos músculos humanos? Esta é talvez uma das questões mais intrigantes não só para a história da anatomia, mas para a história da biologia e mesmo das ciências em geral (ALGHAMDI; ZIERMANN; DIOGO, 2017, p. 20).

Como resposta para essa indagação, alguns autores afirmam que essa lacuna nos estudos anatômicos foi motivada por questões sociais, ou seja, de que o trabalho manual era estigmatizado nos círculos mais elevados, motivo pelo qual a anatomia dos músculos deixou de ser estudada na mesma proporção que outras partes do corpo humano.

O termo utilizado hoje nos estudos de jurisprudência islâmica para que as autópsias sejam permitidas é maslaha, um princípio que diz respeito ao “benefício público”. Em resumo, tal princípio advoga que se os benefícios superam os malefícios, então essa atitude mais benéfica deve ser tomada. Denota proibição ou permissão de algo, de acordo com a necessidade e circunstâncias particulares, com base no fato de servir ao interesse público da comunidade muçulmana. Geralmente o princípio maslaha é invocado para resolver algumas questões de usul al-fiqh que não são cobertas pelo Alcorão, a sunnah do Profeta Muhammad ou ainda pela analogia dos sábios (qiyas). A aplicação desse conceito tornou-se mais importante na modernidade devido à sua crescente relevância para as questões jurídicas contemporâneas conforme o mundo muçulmano é cada vez mais exposto a novas tendências, tecnologias, ideologias, práticas etc., dentre elas a autópsia e dissecação de cadáveres.

Nesse sentido, H.M. Makhluf emitiu uma fatwa em 1952 permitindo a autópsia com base no princípio da maslaha. O Comitê de Fatwa da Universidade e Mesquita de al-Azhar em 1982 também baseou sua permissão na maslaha: as autópsias deveriam ser permitidas se os estudantes de medicina aprendessem com elas, se a justiça prevalecesse e se as doenças contagiosas fossem controladas. Ainda assim, o exame só deve ocorrer quando necessário e incluir apenas cavidades corporais relevantes. Por exemplo, no caso de uma avaliação forense para um possível caso de assassinato, se o assassino confessar e estiver disposto a receber a punição adequada, a autópsia não será necessária (WEAVER, 2020).

Hoje em dia os países de tradição islâmica possuem interpretações distintas em suas legislações locais a respeito da possibilidade de autópsia e dissecação de cadáveres. Alguns possuem legislações mais conservadoras, enquanto outros são mais permissivos. De qualquer forma, a dissecação na história islâmica ainda permanece sendo algo obscuro: fato é que ela foi proibida pelos especialistas, mas ainda persiste o mistério se os grandes nomes da medicina islâmica medieval se valeram ou não desse recurso que hoje é indispensável para a medicina moderna.

REFERÊNCIAS

ALGHAMDI, Malak A.; ZIERMANN, Janine M.; DIOGO, Rui. An Untold Story: The Important Contributions of Muslim Scholars for the Understanding of Human Anatomy. Howard University College of Medicine. 2017.

ARAMESH, Kiarash. The Ownership of Human Body: An Islamic Perspective. NCBI. 2009.

GHOSH, Sanjib Kumar. Human cadaveric dissection: a historical account from ancient Greece to the modern era. NCBI. 2015.

Tashrīḥ. Encylopaedia Islamica. Brill. [n.d.].

WEAVER, Kaitlin D. Religions and Autopsy: Islam. Medscape. 2020.