Introdução

Nasci na Espanha, mais precisamente em Barcelona, capital das terras catalãs. Tenho, no entanto, percorrido o território peninsular o bastante para saber que de mil maneiras é possível sentir em solo ibérico o que foi a cultura dos árabes – beduínos orientais ou berberes norte-africanos – que a impregnou por quase um milênio.

Sabemos, é claro, que o principal feudo muçulmano radicou na Andaluzia e no Algarve português, na parte oposta da Península em relação à Catalunha. Todavia, duas regiões vizinhas à catalā são também especialmente ricas em heranças árabes: Valência e as ilhas Baleares.

Valência, cenário da última das gestas do fabuloso El Cid. Cidade reconquistada finalmente para os cristãos pelo rei catalão, Jaime I. Valência, em cuja população prepondera o sangue mouro, os tipos raciais árabes visivelmente abundando en toda a região valenciana, incluídas as províncias de Alicante e Castellón. Terras onde os hábitos, as toponímias, as técnicas agrícolas, os trajes tradicionais, a culinária – com seus aromáticos temperos – os cantos, danças e folguedos típicos; tudo, enfim, ressuma arabidade pelos quatro cantos.

As Baleares, ilhas onde a maioria dos sítios e casas solarengas levam ainda o prefixo Beni-lbn, na grafia árabe; significando linhagem, ascendência familiar, em língua arábica.

Menorca onde eu, soldado, assisti ao término da tremenda guerra civil espanhola. Menorca, com suas pequenas cidades de casas acaçapadas, caiadas anualmente, branquíssimas sob o azul espesso do céu mediterrâneo; suas verdejantes hortas beiradas de muros de pedras empilhadas, caiados também, e de figueiras-da-índia; suas colcades (cavalgadas à moda mourisca, algumas noturnas e à luz de archotes) atrativo maior dos seus festejos populares anuais. Menorca, de tantas lembranças e saudades minhas!

Ibiza, em muitos aspectos talvez a mais norte-africana das ilhas do arquipélago, conservando até hoje em seus cantares tradicionais as vocalizações arrastadas e nasais das melodias mouriscas.

Maiorca, enfim, na qual as abundantes lembranças ismaelitas só perdem para os judeus espanhóis: as dos cristãos-novos chamados lá de chuetas que constituíam (e ainda constituem) uma avultada parcela da população. Maiorca, que já medi com meus passos em tantas ocasiões, ponto preferido de muitas férias da minha mocidade.

....

 Quando rumei para a América do sul, em 1952, fixei-me em Montevidéu, por cinco anos. Conheci o Uruguai, Argentina e o Chile e tive oportunidade, naquela época, de conhecer a tradição poético-musical dos "payadores" do Rio de la Plata e de comparar sua semelhança com outra tradição por mim bem conhecida: a dos glossadors das ilhas Baleares. Já morando no Brasil – meus três primeiros anos centrados em Porto Alegre – continuei a assistir, ao espetáculo rueiro das rodas de ouvintes atentos à cantilena de poetas repentistas e de desafiadores, batendo em seus violões e seus pandeiros.

No Recife, finalmente, onde passei a residir deste 1960, acabei por me conscientizar a respeito dessa qualidade de arte popular e passei a sentir sua penetração e significado junto ao povo, a me informar sobre o seu marcante cultivo no sertão nordestino, a saber da notável e vasta produção poética que tem produzido, assim como dos seus lendários e cultuados rapsodos ...

Ouvi rabequeiros, nas ruas do Recife. Também nas de Caruaru. Manejando rabecas semelhantes às que ainda hoje, no período natalino, pode-se ouvir em Madrid, tocadas por pastores da meseta castelhana, anualmente convidados pelas autoridades da capital espanhola para colorir os monumentais Presépios da Municipalidade.

E, sobretudo, testemunhei a arrancada do movimento Armorial: a personalidade, a inteligência e a sensibilidade de Ariano Suassuna postas ao serviço de sua efusiva paixão pelas essências brasileiras, um movimento, que de entrada, tomou de surpresa a muitos e até ficou difícil de entender para alguns – eu fui um dos tais.

Mas o movimento "se demuestra andando" se diz na Espanha. E nos rápidos, destemidos e frutíferos avanços dos estandartes armoriais, todos passamos a ver o quanto havia de certo e genial na intuição de Ariano, Em poucos anos, as conquistas da campanha armorial sobrepujaram às melhores expectativas nos mais variados aspectos da arte popular: poesia, música, gravura e pintura, escultura, baixo-relevo, etc. Não no sentido de inovar – de não ser naquele último sentido a que se referia Verdi quando dizia: "torniano all'antico, sara un progresso" – mas sim com o intuito de valorizar, de incentivar, de agrupar esforços e, acima de tudo, de infundir uma fé comum a tantos artistas e artesãos que trabalhavam e criavam a marginalidade, quase esquecidos e como que envergonhados de sua defasagem em relação aos da predominante cultura europeia e norte-americana.

Devido a minha profissão de violinista fui, durante alguns anos, integrante da Orquestra Armorial, idealizada por Ariano e realizada por Cussy de Almeida. Com ela viajei pelo Brasil todo, colaborando na difusão de um repertório de compositores – Guerra Peixe, Capiba, Madureira, Jarbas Maciel e outros – escritos ao calor do entusiasmo e da filosofia armorial.

Por outro lado, na qualidade de professor de Violino, Música de Câmara e Estética Musical, na UFPE, entre meus alunos contei com alguns dos integrantes do Quinteto Armorial que foi criado por iniciativa de Ariano Suassuna e confiado à direção de Antônio José Madureira, quinteto cujas andanças pelo Brasil e até pelo exterior empenhou-se em mostrar pesquisas sobre os aspectos mais sóbrios da música sertaneja.

E foi com estes contatos, mergulhando na execução da música nordestina, conversando com conhecedores e amantes do sertão e ouvindo seus conceituados comentários, bem como convivendo com famosos violeiros que em muitas ocasiões acompanhavam as viagens da Orquestra Armorial, incentivado a ler textos referentes aos poetas etc., que comecei a notar que, apesar de bem brasileiras, aquelas vivências artísticas e culturais, como um todo, não eram estranhas a minha hispanidade de origem. Um pouco aos tatos primeiro, conscientemente por fim, fui atando cabos. E comecei a reparar que na hora de serem evocadas genealogias e ascendências, dentro de um painel onde não faltavam jesuítas, trovadores, lendas cristãs medievais e tudo o mais, ficava quase invisível uma figura que eu achava que deveria dominar todas as restantes, o árabe. O árabe, com sua inseparável cantilena poética, espécie de necessidade visceral, perenemente sentida; supremo meio de comunicação social e de integração racial, para ele. Com sua borbulhante lírica nascendo, mais que do intelecto, do telurismo que envolve a vida humana, dos excessos do coração e da fantasia. A velha e inconfundível tradição poética do beduíno do deserto, em suma, transmitida aos povos com os quais os serracenos conviveram, e só a eles. Tradição da qual eu conhecia remanescentes espanhóis, irmãos dos aqui atuantes.

Sei que não descobriria a pólvora com meu trabalho, se me referisse apenas às influências exercidas pelos árabes sobre as culturas aborígines da Península Ibérica. Apesar de subestimadas e retalhadas, estas influências não constituem segredo. Todavia, no presente ensaio creio ter levantado duas perspectivas bem interessantes e pouco exploradas até agora, ou sejam:

  1. Destacar que as influências árabes não se diluíram nas terras ibéricas a ponto de estarem já deglutidas e descaracterizadas entre os portugueses que colonizaram o Brasil. Ao contrário, elas predominavam, com nítidos perfis, nos modos e conceito de vida dos lusos-colonizadores, sendo precisamente no sertão brasileiro que vieram a ser preservadas vivas e inteiras, incontaminadas pelos modismos evolutivos que, no Reino, foram-nas encostando em planos cada vez mais recuados
  2. Estudar essas influências concretamente em relação às atividades poético-musicais do sertão nordestino, focalização objetiva que, ao contexto do que foi a cultura e a espiritualidade dos árabes medievais, proporcionou-me o ensejo de poder oferecer uma panorâmica - bem que modesta - sobre um as- pecto literário pouco conhecido no Brasil: o fabuloso mundo da poesia árabe, impar em comparação com a de qualquer outra raça humana

Florianópolis, 2 de outubro de 1990.

"il y a entre les peuples les mêmes liens nécessaires qu'entres les individus d'un même pays: chacun d'eux reçoit, modifie, transmet une civilization en marche qu'il n'a pas crée et qu'il se borne à marquer, au passage, d'une empreinte nouvele".

Jules Combarieu

1 OS NOSSOS VIOLEIROS E OS DE ALHURES

Percebe-se, nos meios culturais brasileiros da atualidade, uma crescente vontade de destacar as manifestações possuidoras de autêntica brasilidade. Neste rumo, as mais expressivas personalidades literário-musicais nordestinas vêm estudando, divulgando e prestigiando a literatura e a música polarizadas ao redor das tradicionais figuras dos cantadores sertanejos, violeiros ou tocadores de rabeca.

Escreve-se muito, sobre um muito que já foi escrito, a respeito destas fascinantes personagens e sua arte. Evita-se porém, de um modo geral, mexer num ponto bem interessante, que seria o de enquadrar o fenômeno dos nossos repentistas sertanejos no vasto panorama de países – diversos mas determinados – em que este fenômeno, idêntico em suas características essenciais, produz-se; panorama que, estendendo-se por nações e séculos permitir-nos-ia enxergar, no horizonte, uma fronteira comum: a dos árabes, no Ocidente europeu-medieval, com a maravilhosa floração da sabedoria e da arte que eles implantaram e desenvolveram durante 800 anos na Península Ibérica e na Sicília e que as primeiras levas de colonizadores espanhóis e portugueses, impregnados ainda da rica cultura dos povos recém-banidos da Península, foram expandir pela América do Sul, dando lugar, por certo, a um contra-senso que ainda hoje confunde muitos estudiosos: o de que relevantes vivências de cultura árabe possam ser encontradas numa terra onde os árabes não constam entre os imigrantes que a povoaram.

Para dar início ao nosso trabalho e visando criar um clima ponderado para o posterior tratamento do tema, consideramos oportuno apresentar um texto resumido do livro "Cançoner popular de Mallorca" (em idioma catalão, no original) do escritor maiorquino Rafael Ginard. A ilha de Maiorca, como o resto das Baleares (e precisamente pela sua condição insular) foi um dos redutos que permitiram um cultivo mais incontaminado e durável das sementes sarracenas e judaicas plantadas na Espanha no que diz respeito à cultura e aos meios de expressão.

O referido texto trata dos "glosadors", termo que nas Baleares designa um equivalente dos nossos "violeiros" – aliás, no sertão nordestino este termo existe também, quase que com a mesma acepção. Texto, por outra parte, que sem precisar ser alterado substancialmente, poderia também referir-se a artistas congêneres da própria Península ainda hoje existentes em determinadas regiões espanholas, incluindo as de línguas diferentes da castelhana: Catalunha, País Vasco e Galícia. Poderia igualmente referir-se a artistas folclóricos semelhantes, acháveis em diversas províncias portuguesas e de determinadas regiões do sul da península italiana e da Sicília. E neste lado da Atlântico, dentro do marco da colonização ibérica bilíngue, poderíamos ainda atribuir o texto que iremos transcrever aos cantadores repentistas de quase todas as nações sul e centro- americanas: Chile, Colômbia, Venezuela e, com destaque, os payadores – outro sinônimo de violeiro – das nações do Rio de la Plata. Pelo contrário – interessante prova dos nove – não nos seria possível achar em nenhum outro país do mundo um tipo semelhante de artista popular... a não ser nos próprios países árabes atuais: a TV de Bagdad, por exemplo – sabemos por pessoas vindas de lá – mantém o ano inteiro uma programação, aos domingos pela manhã, que transmite exclusivamente desafios de repentistas, munidos de seus instrumentos de cordas pulsadas, improvisando suas cantorias.

Tradição arábica, ao que tudo indica, a dos nossos violeiros e rabequeiros – afirmativa que deveremos justificar no decorrer do nosso trabalho. Tradição importada para cá precisamente na hora em que os últimos resplendores do ocaso muçulmano apagavam-se nos céus europeus, mas ficavam definitivamente diluídos no sangue dos povos cujos destinos tinham norteado por longos séculos. Povos ocidentais que, por conjunturais intolerâncias de credo e de raça, almejavam naquela hora, como adolescentes arrogantes, virar as costas ao velho mestre para, centúrias adiante, ir cultuando um hipócrita "faz de conta que tudo começou na Europa". Efetivamente, nem o pesquisador nem o simples leitor diletante carecem, hoje, de montes de textos que, desde todos os ângulos de focalização possíveis, apresentam e explicam a cultura greco-romana. Todavia, da cultura arábico-hispana é difícil ter a oportunidade de saber-se algo. Só se for através de uma pesquisa muito esforçada, E, mesmo assim, o que se pode encontrar é relativamente muito pouco, isto porque também é muito pouco o que se tem traduzido até hoje da ingente produção literária da Ibéria Islamizada.

Em decorrência, não é de estranhar-se que aqueles que pesquisam as origens culturais do sertão façam sempre referência aos latinos (aos gregos, inclusive) aos germânicos, aos provençais, etc., e muito de relance aos árabes, quando por Justiça deveria ser tudo ao contrário, o que explicaria a tradição nordestina.

Os extratos do livro de Ginard antes mencionado, correspondem ao capilulo "Os rapsodos populares. Considerações sobre estes poetas naturais" e seguintes.

A tradução e coordenação do texto resumido é nossa. Evitando comentários, pois como o leitor comprovará, qualquer acréscimo que pretendesse destacar semelhanças seria redundante. De fato, bastaria substituir no texto a denominação glosador pela de violeiro para ter-se a impressão de estar lendo um estudo crítico sobre repentistas do sertão nordestino. Diz o texto:

As populações procuram diversões. Desde tempos antigos e até há pouco menos de um século, nas pequenas cidades e aldeias não existiam teatros nem salões sociais nem, muitas vezes, botecos. Os feriados eram poucos. Não se viajava. E os glosadores supriam, em grande parte, esta falta de diversões.

Eles eram mesteirais, camponeses ou pedreiros. Homens iletrados, mas ricos em potencial humano, observadores dos fenômenos naturais, conhecedores da vida e do linguajar, capazes de respostas prontas e maliciosas, de gracejos imprevisíveis. Com uma memória prodigiosa, desenvolvida pelo exercício continuado, eles possuíam uma importante bagagem de conhecimentos religiosos e históricos, adquiridos principalmente através dos sermões eclesiásticos avidamente ouvidos e fielmente lembrados.

Não tinham contato com literatos, detalhe que, de fato uma vantagem: o sertão estiado, pedregoso, produz legumes e frutos mais deliciosos que as gordurosas e bem banhadas terras de regadio. O povo não usa erudição nem requintes. Mas suas canções fluem como sangue vivo, cheias do tumulto de suas paixões e sentimentos, do ímpeto selvagem de seus instintos. E talvez, no que a criar beleza se refere, isto seja mais essencial do que a própria cultura.

Na poesia popular não há preocupações de inovação. Ela trota de coisas que, mesmo reiteradas, nunca ficam velhas. As árvores enfolham-se, florescem e frutificam sempre da mesma maneira, o mar não muda sua inesgotável identidade. Os olhos amantes são sempre os mesmos e sempre fascinantes. E essas coisas elementares e eternas – o homem e suas circunstâncias – é que constituem a escola e o manancial do Cancio- neiro.

Ninguém nega que a cultura livresca leve os povos a sua maioridade cultural. Com ela, a poesia refina-se e torna-se mais artística, mais importante e solene. Porém, quem sabe, diminui em graça e espontaneidade, como o menino que cresce e vai perdendo aquele encanto que acompanhava até seus gestos mais desajeitados.

...

Os glosadores de hoje, como os de antigamente, são particularmente admirados porque podem, de repente e sem nenhum esforço aparente, "tirar canções de suas cabeças". Aliás, o que maior prestígio lhes dá é a faculdade que eles têm de rimar e quadrar os versos na hora. Pois no juízo do povo, uma cantoria é sobretudo uma coisa que soa. Mais do que o conceito, é a rotundidade sonora o que importa. Por isso os glosadores preocupam-se mormente com a consonância e o metro, e a esses fatores sacrificam, se convier, até exigências de coerência discursiva.

Por outro lado, eles não deveriam ser considerados, a rigor, uns puros improvisadores. Há muito de preparação, nas chamadas habilidades inatas. Mais do que inatas, essas habilidades são germes potenciais, desenvolvidos com muito esforço e trabalho. Os glosadores, ninguém se iluda, preparam-se para suas apresentações. Lubrificam previamente seus mecanismos internos de glosar para, em chegando a hora, com o motor quente, tirar o máximo rendimento de suas potencialidades intelectuais.

Os temas tratados, aliás, têm também muito de repetido ou semelhante. Os improvisadores dispõem de moldes feitos; de chavões, fórmulas e tópicos. E de acordo com as circunstâncias, utilizam-se dos mesmos.

No que tange à consonância, então, chegam a incrustar em sua memória um verdadeiro dicionário da rima, especialmente famílias de palavras cujas possíveis rimas sejam poucas.

As suas canções nascem cantando. Todavia, a música que as acompanha vem em segundo plano e não tem muita importância, no próprio conceito dos glosadores. Ela oferece muito de recurso para ganhar tempo e permitir pensar, para avivar ideias e proporcionar um arcabouço métrico genérico que se constitua em regueiro pelo qual as palavras possam fluir com mais facilidade.

Os glosadores de raça são ágeis de pensamento; homens certamente bem dotados para sua função. Mas, também pacientemente exercitados na ginástica da cantoria. Se diante do público dão a impressão de improvisar – de fato, improvisam em muitas ocasiões – isto acontece por causa de seu talento estar lavrando em materiais acumulados e elaborados mediante longas práticas e muita experiência.

Nos desafios, então, os glosadores parecem galos de briga. Dir-se-ia que, rivais irreconciliáveis, irão digladiar-se. Nada dista. Eles conhecem a psicologia das multidões. Sabem do visceral fascínio que o homem sente diante dos combates; fascínio que aumenta na proporção que a luta arrisca ir até a morte. Dai as espalhafatosas tempestades que eles armam com seus desafios. Não há insulto ou agravo que não possam, como um ramo de urtigas, esfregar um no rosto do outro. Chicoteiam-se, achincalham-se, desmoralizam-se. Mas tudo não passa de tempestade em copo d'água. Recursos para conquistar um auditório que vibra e esquenta e, por sua vez, os atiça e esporeia.

 Uma boa demonstração de que tudo não passa de balas de festim, é que os glosadores, durante a briga, nunca perdem o raciocínio que lhes permite versificar, isto é, não perdem a calma. Tudo estava previsto. Enquadra-se tudo nas "regras do jogo”.

Aliás, freqüentemente os desafiadores são bons amigos e antes do espetáculo já acertaram em linhas gerais o roteiro e os pontos culminantes da peleja. Se surgirem imprevistos, sua tarimba lhes permite atravessar os escolhos na hora, sem se arranharem. Porque, certamente, repentizar exige, além de talento, audácia, decisão e aquela inefável ignorância que, desconhecendo dificuldades, facilmente as supera.

...

Um aspecto peculiar que pode adotar o desafio é o das perguntas que propõem adivinhações. Aliás, esta prática folclórica tem raízes que se perdem na noite dos tempos. Poderíamos citar, entre outros, os ilustres exemplos da Bíblia, nas bodas de Sansão (Judic. 14,12-18) e Virgílio, no desafio verbal dos dois pastores (Egloga terceira).

Vejamos aqui uma amostra tirada de glosadores atuais:

Tu, qui fas de primaler

I ets homo de fantasies

ara, no m'explicaries

un ase, quants ossos té?

 

(Tu, que bancas o primeiro

e és homem de fantasias,

ora, não me explicarias

o asno, quantos ossos tem?)

 Responde o outro:

Cristo va morir a la creu

 I jo sé l'hora i es dia.

Pero, poc me costaria

escorxar-te i sebre-hu.

(Cristo morreu numa cruz

e eu sei da hora e do dia.

 Mas pouco custar-me-ia

te esfolar, para saber)

Podemos observar, nesta réplica, representando uma característica da prática de repentizar, a pouca importância dada ao discurso lógico sempre e quando fiquem a salvo a ideia substancial, o metro e a rima da estrofe. A resposta do segundo é bem engenhosa, nos últimos dois versos. No entanto, os dois primeiros não passam de um rípio, um recheado "pro forma", fato do qual o povo nem toma conhecimento, concordando com a resposta toda.

2 A POESIA DOS ÁRABES, DO ORIENTE PARA O OCIDENTE

 Afirmar que a tradição poético-musical do sertão nordestino é herança proveniente da cultura árabe implantada e desenvolvida pelo Islão na Península Ibérica obriga em urgente primeiro lugar, demonstrar que a civilização arábico-ibérica possuia de fato aquilo que viria doar, demonstração na procura da qual esbarra-se já de entrada com um obstáculo: o preconceito que, desde a expulsão dos árabes da península ibérica, levanta um muro de esquecimento, por parte dos historiadores, sobre a fartíssima documentação demonstrativa que poderia ser consultada.

Ortega y Gasset [1], a este respeito, opina que uma das grandes vergonhas que deslustram os estudos históricos é que, na altura em que estamos, nem de longe se tem procurado esclarecer ainda os justos termos em que se relacionaram árabes e europeus, durante o longo período medieval. E, na opinião deste escritor, a causa principal das dificuldades encontradas para compreender e explicar nossa Idade Média ocidental, estaria precisamente em não se querer levar em suficiente consideração o papel histórico dos árabes nas comunidades cristãs que aconteceram na Europa entre o desabar do Império romano e o Renascimento.

Por outro lado, Menéndes Pidal [2], um dos grandes e escassos eruditos especialmente empenhado na reivindicação dos valores árabes atuantes na civilização ocidental, sustenta que o não-reconhecimento das enormes influências que a cultura árabe – a dos árabes ibéricos, de um modo especial – projetou sobre o Renascimento europeu, deve-se a um preconceito anti-árabe, por parte da Europa. Preconceito racial que toma como escusa o fato de o povo árabe, após sua expulsão do continente, ter entrado em decadência e não mais acompanhar o desenvolvimento da cultura que ele próprio tinha semeado, tanto no tocante às artes quanto às ciências.

Inclusive no campo da pesquisa especializada "a poesia árabe é a Cinderela dos estudos orientais", comenta o grande arabista Garcia Gomez, acrescentando: "A lírica arábico- -andaluza tem sido, em particular, a pior estudada" [3]

[1] Prólogo a “El Colar de la Palorma" de Ibn Hazm de Córdoba. Alianza Editorial.

[2] “Poesía árabe y poesia europea” – Col. Austral – España – Calpe

[3] Poemas arábigo-andaluzes, Col. Austral – España – Calpe

Uma das referências inevitáveis para quem pretende informação de primeira mão no terreno que pretendemos invadir é a obra do alemão Adolfo Federico de Schack (1815-94). No livro "Poesia e arte dos árabes" ele estuda o veio poético daquela raça remontando-se até suas fontes de origem: os nômades beduínos da península arábica. Entre os quais, no conceito de Schack, a poesia alcançou uma perfeição que não foi depois superada por esta raça, nem na elegância nem no metro; com a particularidade, já desde os seus primórdios, de se destacar, na poesia, um dom consubstancial ao talento poético dos beduínos: a faculdade e o gosto de improvisar. Nas palavras de Schack: "As primeiras expansões poéticas dos árabes foram versos avulsos que improvisavam sob o efeito de uma impressão momentânea. Todas as tradições e coleções de poesias dos tempos pré-islâmicos abundam em exemplos neste sentido". Insistindo mais adiante: "É preciso destacar esta peculiaridade (a improvisação), não só porque ela serve de alicerce a todas as formas posteriores mais sofisticadas senão porque ela mesma permanece inalterada ao lado das demais maneiras de poetizar” (o grifo é nosso).

Esta característica é espontânea e autóctone, aliás, não proveniente de qualquer influência literária forasteria, pois, como o mesmo Schack esclarece, os árabes pré-islâmicos "em todas as épocas e em qualquer parte, desconhecem completamente a literatura de outros povos. O famigerado cultivo da literatura grega por parte dos árabes, limitou-se a obras de filosofia e de ciências exatas, que traduziram e comentaram".

Improvisavam-se versos em todas as ocasiões possíveis. Os versos brotavam daquilo que de particular e substantivo pudesse ter um momento determinado. O poeta conhecia o sol e o deserto, descrevia as vértebras do camelo, os arbustos das dunas, as rixas sangrentas, os bárbaros festins, a liberdade infinita da miséria e a fome. Oráculo da tribo, canta as vitórias guerreiras, insulta o inimigo, incita à vingança. Sua amada é a beduína livre e esplêndida em sua beleza, apesar de sua sujeira e seus farrapos. Em poesia eram cantadas genealogias, era descrita a botânica e a geografia das rotas da areia.

As poesias estavam tão ligadas à vida de cada poeta que as concebera, que muitas vezes só conhecendo esta última tornava-se possível explicar as primeiras, perspectiva indispensável para valorizar, por exemplo, os versos do velho Amr, improvisados na própria hora de sua morte. Ou o episódio guerreiro narrado pelo velho historiador Abufelda, em sua "Vida de Mahomed", no qual fica patenteado que até um duelo à morte podia ser ocasião de um desafio poético. Apreciem-se, nas próprias palavras de Abufelda:

Ali, adornado com vestimentas vermelhas, precipitou-se ao combate, Marhab, comandante do forte, saiu ao seu encontro, a cabeça coberta com um elmo. Falou Marhab:

Eu sou heról Marhab

De quem Chaibar canta a fama,

armado de fortes armas

e valente até a ossada.

Ali respondeu:

Leão me chamou meu pai

e de leão vou dar provas;

minha espada vai medir

a coragem que apregoas,

Acometeram-se, então, e a espada de Ali quebrou o elmo e decepou a cabeça de Marhab, que rolou pelo chão.

O hábito da improvisação poética, de funda vivência nas tribos árabes nômades, quando entra o Séc. VI e faz sua aparição à escrita árabe, facultando grafar a tradição, estoura na portentosa floração da poesia pré-islâmica, que nos tem dei- Xado os modelos máximos da raça" [4].

Era naquele tempo que Ocaz, pequena cidade a três jornadas da Meca, realizava uma feira anual que juntava as mais diversas tribos de todos os territórios. Aproveitando aquele contato, celebravam-se certames poéticos nos quais cada tribo, pela voz de seu poeta, competia com as outras, cantando as façanhas e virtudes dos seus.

O poeta, aliás, era considerado uma das figuras proeminentes em cada comunidade beduina, altamente admirado e respeitado por todos. Num mundo, grandioso sem dúvida, mas no qual os objetos a perceber são em número limitado, o poeta do deserto aguça sua capacidade de observação para captar a expressão de um olhar, identificar um rasto na areia ou um grito na noite. E nestas tribos errantes espalhadas pelo deserto imenso, num meio árido e difícil, debaixo de um sol escaldante, de dia, e no frio penetrante das noites carregadas de estrelas, a eloquência e a arte de cantar versificando representava um carisma aureolado com qualquer coisa de sagrado. Um poder de perpetuar e transcendentalizar as ações e paixões do indivíduo e da coletividade, num meio denso de forças telúricas. Representava também uma prova de alçada espiritual: somente pode ter a capacidade de bem dizer quem é capaz de bem pensar.

O seguinte relato histórico nos ajudará a compreender o que a poesia e o poeta significavam para os beduínos.

No início do Séc. XII, um sevilhano que cruzava o deserto da Arábia ganhou hospitalidade num acampamento de beduínos da tribo dos Lakhmitas. Uma noite, insone, o estrangeiro saiu de sua tenda e a visão do céu cravejado d'estrelas em cima do deserto infinito lembrou-lhe de repente um poema de Al-Mutamid, o velho rei andaluz. E ele começou a recitar em voz alta os primeiros versos.

[4] Os poetas pré-islâmicos, na opinião dos próprios árabes, tiveram seu mais destacado comentarista na pessoa de Yúsuf al-Alam de Santa Marla de Algarve, sul de Portugal, região que tinha fama, durante a Idade Média, pela pureza com que era falada a língua árabe.

Da tenda junto da qual encontrava-se o estrangeiro saiu o chefe da tribo que perguntou: "Diz-me por favor de quem são estes versos claros como água de Toca, frescos como relva regada pela chuva, tão delicados e graciosos como a voz de uma menina, tão vigorosos e sonoros como o grito de um cameleiro?" O homem de Sevilha respondeu: "São d'um Rei que governou minha pátria. Um Rei descendente de Abbat, da tribo dos Lakhmitas".

Transbordante de orgulho por ter descoberto mais um título de glória para a sua tribo, o chefe reuniu todos os seus beduínos. "Ouçam-me e lembrem bem o que eu mesmo já gravei profundamente na minha memória, pois nossa tribo gerou um grande poeta e isto é um título de glória que recai sobre nós todos".

O servilhano então voltou a explicar aos membros da tribo tudo que sabia do seu Rei, daquele poeta delicado e sublime ao mesmo tempo, daquele cavaleiro destemido e príncipe liberal. Acabado o relatório, os beduínos ébrios de júbilo e de orgulho pularam em suas cavalgaduras para, num espetáculo que fez tremer a terra, honrar o valente príncipe-poeta, membro da sua tribo.

Os grandes poetas árabes clássicos, cuja produção originalíssima atingiu um ponto de suprema qualidade, foram todos oriundos do deserto e da tribo, ambientes de cujo fascínio dá um eloquente testemunho o antes citado historiador Abufelda, relatando o seguinte fato histórico:

O Califa Moawi, de Damasco, tinha tomado por esposa a Meisuna, proveniente de uma tribo de beduínos e dotada de talento poético. Certo dia, Moawi surpreendeu sua esposa, em meio dos esplendores e comodidades do faustoso palácio, cantando tristemente os seguintes versos, nascidos espontaneamente do seu estado de animo:

Eu era feliz vestindo os couros de cabra que outrora usava.

Mais do que o sou agora em suntuosas roupas.

Se eu pudesse viveria, não neste alcáçar,

mas na tenda do deserto onde muge o vento

O camelo impetuoso de passo agitado

eu amo mais que a mula de pacífico passo

Mias que o som do atabal que aqui rebate

Amo o latir do cão ao estranho que se aproxima.

Prefiro um pastor de minha tribo

Ao estrangeiro mais rico daqui.

Ouvido um tal pranto, Moawi separou-se dela e deixou- a voltar junto aos seus, no deserto.

No que diz respeito à produção poética dos árabes, escrita já em solo ibérico, temos que considerar sucessivas fases, correspondentes ao processo histórico que foi regulando convívio entre duas populações confrontadas, diferentes na raça, na religião e na situação política: condição dominante à invasores muçulmanos, subjugada, à dos cristãos aborígines.

Nos dois séculos iniciais, correspondentes à etapa dos dois Emiratos (o dependente e o independente), a poesia andaluza é um eco apagado da poesia do longínquo Oriente, de onde periodicamente recebe reforços nas pessoas de escravas importadas, destras no canto e na improvisação poética; de músicos e literatos de gabarito, fugitivos das intrigas políticas de Bagdad; de textos trazidos do Oriente, etc.

Mas o gosto pela poesia não perde em volume frente ao da matriz. Nos diz Adolfo Federico de Schack:

A poesia era o ponto central de toda a vida intelectual dos andaluzes. Durante seis séculos foi cultivada com tal cuidado e por uma tão grande multidão de pessoas que um catálogo apenas dos poetas arábico-hispanos encheria volumes. Em meados do Séc. IX era tão estendido o gosto pela poesia, mesmo entre cristãos radicados em território muçulmano, que Álvaro de Córdoba, cristão, reagindo contra a influência estrangeira, se queixa com estas palavras: Os cristãos esqueceram sua língua religiosa. Entre milhares de nós, dificilmente poderíamos encontrar um só que soubesse escrever suportavelmente uma epístola, em latim, a um amigo. Mas se do que se trata é escrever em árabe, encontram-se, em grande quantidade, pessoas que se expressam nesta língua com grande facilidade e elegância e que compõem poemas preferíveis, do ponto de vista artístico, aos dos próprios árabes.

Isto porque Al-Andaluz (denominação dada pelos conquistadores ao território peninsular que ocupavam) deu sempre provas de seu espirito tolerante para com seus súditos cristãos. Pois, como bem observa Lévi-Provençal [5]:

Sem dúvida, em nenhuma outra parte do mundo muçulmano foram tão necessárias as relações permanentes entre o Islão e a Cristandade como na Espanha árabe. A maior parte de sua população tinha conservado, pelo menos durante o primeiro século da dominação islâmica, a antiga religião oficial do Estado visigótico. E, mesmo mais tarde, após conversões em massa de mozárabes, um número considerável de cristãos integrava florescentes comunidades, nas cidades andaluzes, com suas igrejas, seus conventos, seu chefe cívico, seu magistrado, etc.

Excetuando os últimos séculos da dominação, quando as lutas para banir os árabes radicalizaram as posições, o fosso entre o Islão e Cristandade nunca foi grande nem profundo, como era comum afirmar até há pouco tempo. A diferença de confissão, inclusive, não constitua obstáculo para as alianças matrimoniais, das quais temos inumeráveis exemplos, mesmo entre pessoas de sangue real. Coexistia o arábico puro junto com o latim vulgar, também chamado de língua romance, bilinguismo que era, não apenas próprio das camadas altas, como também das humildes. Conta o historiador Mariano que durante o sítio de Calatarazor, um pobre pescador cantava, alternadamente em língua vulgar e em língua árabe, um lamento sobre o triste destine da cidade sitiada.

Com o Califado, a partir da primeira metade do Séc. X vem-se afirmar já uma lírica arábico-andaluza própria, de alto padrão, na qual pode-se apreciar a mistura de influências duais, tanto em mentalidade quanto em língua.

Mais tarde, na época dos Reinos de Taifa (Séc. XI), fragmentados e regidos por uma plêiade de reizinhos, príncipes berberes e escravos palatinos, os territórios dominados lembram múltiplas e microscópicas Bagdades – Garcia Gómez as chama de Repúblicas italianas com turbante – nas quais impera o crime e a orgia, a paixão e o capricho, o fausto e a intriga, o punhal e o veneno... "Grande época, portanto, de poesia" conclui espirituosamente o referido arabista.

[5] La Civilización árabe em España. Col. Austral – España – Calpe

São os tempos dos quais al-Saqundi, testemunha coetânea, pode dizer: "Os poetas deslizavam entre os reis como as brisas pelos jardins e entravam a saque em seus tesouros com a veemência de al-Barrad".

Todo o mundo era poeta! Em Silves – faz notar al-Qazwini – qualquer camponês à frente de sua carroça de bois podia improvisar sobre o tema que lhe fosse proposto. Os poetas notáveis cruzavam a Espanha visitando as Cortes, onde lhes eram oferecidos alojamentos, gratificações, cátedras...

Tão solicitados estavam, que podiam elevar à vontade a tarifa das louvações poéticas: há um poeta que afirma que não escreverá um elogio por menos de cem dobras de ouro. As grandes personagens convidam-se, escusam-se, presenteiam- se, autobiografam-se, sempre em bilhetes poéticos nos quais são comparados aos astros e às flores. Tudo é poesia! Poesia em grande parte artificial e vácua, embora na mesma não deixem de aflorar, de vez em quando, os mais nobres e eternos sentimentos humanos.

Uma improvisação feliz podia valer um Emirato. Outra, feita na hora certa, conseguia romper as correntes de um cativo ou, até, salvar a vida de um condenado à morte. A prosa ritmada era um sinal de boas maneiras e usava-se mesmo em obras cientificas, em documentos oficiais e até em passaportes.

Nas festas da Corte, o rei, a partir de determinado momento, podia ordenar a todos os presentes a se expressarem exclusivamente em verso. Praticava-se também um jogo poético no qual um poeta improvisava um hemistíquio e o outro devia completá-lo. A propósito deste jogo, é rigorosamente histórico o seguinte episódio da vida de Al-Mutamid, Príncipe de Sevilha (1040-1095), um dos últimos reis de Taifa e grande poeta ele mesmo: ia o rei passeando pela beira do rio Guadalquivir, exercitando o referido jogo com seu Vizir, quando tendo o Vizir hesitado numa resposta poética, a escrava de um muleiro, que lavava roupa no rio, levantou-se e lançou uma réplica viva e picante. Bastou este motivo para o príncipe se apaixonar por ela e desposá-la.

Na metade do séc, XII e durante uma centúria, a dominação dos almóades traz sossego e paz às terras de Al-Andaluz, embora seja nesta época que comece a se radicalizar a intransigência racial. As ciências atingem seu apogeu. Ao lado delas, no entanto, a poesia não perde em popularidade. O Califa Yaqub-al Mansur (1184-1198), numa audiência poética, teve que pedir que não lhe fossem recitados mais que os dois ou três primeiros versos de cada poesia.

As poesias, neste período, revestem quase sempre uma forma descritiva, panegírica ou epistolar e nadam em piscinas de símbolos e tópicos oriundos da abundante obra dos predecessores. O gosto árabe, aliás, não costuma repudiar o convencionalismo literário. Aceita-o em muito maior grau que outras literaturas.

A louvação, por exemplo, chega a ser tão hiperbólica e desmensurada, que acaba sendo impessoal. A maior parte das qãsidas ditirâmbicas, como leves retoques, poderia trocar de destinatários e de época. O poeta Ben Baqui, num desabafo de sinceridade, de sinceridade, chega a confessar: "Os louvei com falsidade e me pagaram com desdém, na mesma moeda".

Aliás, Garcia Gómez opina que, entre os árabes, proibidos de representar imagens gráficas, as louvações correspondem aos retratos da Corte. De maneira que, numa qāsida ditirâmbica, as adulações e favores da pena equivalem aos do pincel do artista, nos lisonjeiros retratos de grandes senhores e mecenas.

Terminamos estas referências histórico-poéticas que, quase literalmente, fomos transcrevendo de fontes fidedignas, acreditando ter dito o indispensável para mostrar até que ponto (um verdadeiro ponto de saturação, inexistente em qualquer outra cultura) a civilização arábico-ibérica possuiu uma tradição poética que permite supor que, no espaço de oito séculos, teve tempo suficiente para marcar os hábitos, o sangue, o gosto e – usando um termo em moda, criado por Jung – o inconsciente coletivo dos povos ibéricos. Povos que iriam, na mesma hora em que se descolonizavam dos árabes, colonizar as Américas.

Propositalmente temos evitado, também aqui, tentar qualquer comparação entre as características referentes à poesia árabe, oriental ou ocidental e às da poesia do sertão do nordeste brasileiro. Teria sido fácil descobrir semelhanças de meio ecológico, de temperamento racial, de conceituação do poeta e da poesia na vida do povo, de usos e costumes – feiras de poesia, jogos de poetização, etc – de gêneros poéticos – desafios, réplicas, louvações, narrativa de acontecimentos tribais, etc.

Temos preferido, que na sequência do relato feito, cada qual possa ter ouvido, ou não, os ecos que, entre uma e outra tradição poética, possam ter estalado.

3 O TRANSPLANTE DA TRADIÇÃO

 3.1 Vínculos raciais e culturais

 

  1. Acabamos de ver que a produção que mais avulta nos celeiros artísticos da cultura arábico-ibérica corresponde à arte de poetizar. Poetização geralmente de circunstâncias, amiúde repentizada. E sonora, podemos acrescentar, aliada como estava ao canto acompanhado de, pelo menos, um instrumento.

As incógnitas mais imediatas a desvendar seriam agora: esta tradição poética, foi de fato transplantada aos povos do Ocidente?... E num suposto afirmativo: quais foram as vias de penetração? Quem a herdou? Até que ponto?

À procura de respostas, investigaremos inicialmente as influências exercidas por contatos diretos – incluindo os cruzamentos inter-raciais entre muçulmanos e europeus.

  1. Se é inegável que grande parte da intelectualidade do Ocidente tem-se revelado esquecidiça e ingrata para com os árabes e seu espetacular desempenho na cultura medieval, não é menos certo que dois historiadores brasileiros constituem louváveis exceções desta regra: Gilberto Freyre, no nordeste; Manoelito de Ornellas, no Rio Grande do Sul. O primeiro, notadamente em sua Bíblia do povo brasileiro que é "Casa Grande & Senzala". O segundo com "Gaúchos e Beduínos", um livro interessantíssimo que recentemente tivemos ocasião de conhecer em sua 3a edição, uma obra escrita com o coração, muito bem documentada e acompanhada de uma excelente bibliografia.
  2. Remontando o mais possível às origens, Manoelito de Ornellas explica que os árabes invasores da Península não tiveram dificuldades para implantar nela suas peculiaridades culturais, devido à pré-existência, lá, de um substrato racial afim: substrato decorrente do enraizado hábito, entre os berberes, de emigrar de tempos em tempos e em pequenos grupos para o solo ibérico, levados tanto por seu irrequieto espírito nômade e guerreiro, quanto pela facilidade da travessia; atraídos pela riqueza natural de muitas das terras peninsulares. Pontualiza Ornellas que "navegantes fenícios, comerciantes de Cartago e grandes chefes púnicos encontraram radicados à orla do Mediterrâneo, um sem-número de berberes, cuja identificação com os iberos indígenas era tão perfeita que difícil seria discriminá-los separadamente".
  3. Sobre este substrato étnico infiltrado de semitismo, Gilberto Freyre chama a atenção para a volumosa injeção de sangue mouro que significou a Conquista "considerando-se não só as íntimas relações entre conquistadores e conquistados, durante a invasão africana, como as que se seguiram, entre cristãos e cativos mouros; e entre hispano-romanos e moçárabes". E salienta o fato de que foram precisamente estas populações mestiçadas, compostas por gente impregnada da cultura e mesclada do sangue do invasor, que se constituíram no fundo e no nervo da nacionalidade portuguesa. (grifo nosso)

Corroborando esta presença racial, conta Alexandre Herculano, citado por Manoelito, que "na aldeia de Restelo, no fim do século XIV, a população toda era constituída por mouros forros". Acrescentando que "todas as cercanias de Lisboa pareciam terra muçulmana. Avultava, entre a raça goda e a cristã, a raça africano-árabe". Observa Manoelito, além do mais, que de Sagres, no Algarve –o território mais arabizado de Portugal – é que “partiam, para os mares desconhecidos, os grandes almirantes que no século XV deram a Portugal a glória de um Império".

  1. Nos aspectos culturais, Gilberto Freyre não somente avalia com justiça a ingente e benéfica influência dos séculos de domínio árabe que enriqueceram a Península de conhecimentos e técnicas ausentes no resto da Europa, como também leva em conta que o influxo continuou após a Reconquista cristã, através dos escravos mouros e dos moçárabes que, mais ativos e preparados que os indolentes e belicosos nobres lusos, a exerceram sobre os seus senhores, facilitando assim as condições para a colonização agrária, escravocrata e polígama da América tropical. E conclui:

As condições físicas da parte da América que tocou aos portugueses, exigiram deles um tipo de colonização agrária e escravocrata. Sem a experiência moura, o colonizador teria provavelmente fracassado nesta tarefa formidável. Teria fracassado, impotente para corresponder a condições tão fora de sua experiência propriamente europeia.

  1. Manoelito de Ornellas considera muito especialmente a penetração espiritual arábica nos povos da península ibérica e nos diz que, além de intensa, ela foi fecunda e nada violenta, pois os árabes praticaram uma tolerância ideológica que nem de longe tiveram os povos cristãos. Nas palavras do historiador gaúcho: "Os árabes são tão zelosos de sua liberdade que jamais consentiram numa tirania em matéria de crença. Marthad, rei de lêmen, no século IV proclamava: - "Reino so- bre os corpos e não sobre as opiniões. Exijo de meus súditos que obedeçam ao meu governo. Quanto às suas doutrinas, que os julgue Deus que os criou". A essa tolerância acrescentaram costumes muito cavalheirescos, pois aquelas leis de Cavalaria que consistem em respeitar ao débil, em ser magnânimo com o vencido e cumprir religiosamente a palavra empenhada, foram introduzidas na Europa pelos árabes espanhóis"

Essa tolerância é a que explicaria (segundo opinião de Américo de Castro, reportada por Ornellas) que a Ibéria medieval, discrepâncias religiosas à parte, não fosse em realidade uma terra sofrida, gemendo sob uma dominação estrangeira, senão um povo submisso e ao mesmo tempo deslumbrado diante de um inimigo por muitos títulos superior. E que os séculos de História muçulmana, na Espanha, não tenham representado um longo e turbulento período com características de aventura guerreira, mas algo muito mais nobre e substancial e que em modo algum terminou com o fim da Reconquista cristã.

Aliás, a respeito do tolerante espírito colonizador muçulmano, tão diferente do que animou os povos anglo-saxões em suas expansões territoriais, Gilberto Freyre descobre um traço de cultura moral e material notável, dentre os transmitidos ao Brasil pelos árabes: "a doçura no tratamento dos escravos que, na verdade, foram entre os brasileiros, tanto quanto entre os mouros, mais gente de casa do que besta de trabalho".

  1. Por muitos conceitos, como vemos, a Península foi natural e grandemente arabizada por sangue e cultura que, diz Gilberto, "viriam ao Brasil; que explicam o muito que no brasileiro não é europeu, nem indígena, nem resultado do contato direto com a África negra através dos escravos. Que explicam o muito de mouro que persistiu na vida íntima do brasileiro através dos tempos coloniais. Que ainda hoje persiste até mesmo no tipo físico". São reminiscências árabes que, conforme sucessivas correntezas europeizantes, foram varrendo ou esmorecendo muito em Portugal e na Espanha. Mas que, em parte dos territórios sul-americanos, tiveram ótimas condições para perdurar. Ao ponto que, muitas das diferenças que hoje se manifestam entre os povos ibéricos e os povos sul-americanos da costa atlântica, mais do que a influência dos indígenas – que nesta parte do continente, pouco tinham para oferecer aos conquistadores – corresponderia atribuir a tudo aquilo que do árabe foi aqui conservado, e lá, se diluiu. Um fenômeno parecido ao que constata Gilberto Freyre na península ibérica em relação à Europa quando opina que "o que a cultura peninsular guardou da cultura dos invasores (os árabes) é o que hoje diferencia e individualiza esta parte da Europa".
  2. No tocante aos aspectos materiais da cultura arábica, ambos os historiadores em cujos textos encontramos conceitos de apoio, reportam numerosos e interessantes fatos concretos. Dentre os quais, com Gilberto Freyre, salientamos o cultivo da cana-de-açúcar, tão fundamental na estruturação social e econômica do Brasil, o qual foi inicialmente desenvolvido pelos árabes na Península Ibérica, para depois ser transplantado para a ilha da Madeira e finalmente para o Brasil, junto com o engenho de roda-d'água, técnica industrial também muçulmana.
  3. Da obra "Gaúchos e Beduínos" destacamos a longa referência que Manoelito faz do livro "Influências Muçulmanas na Arquitetura Tradicional Brasileira", de José Mariano Filho, o qual não hesita em atribuir os personalíssimos estilos coloniais da arquitetura espanhola e portuguesa a uma determinante influência mourisca que seria precisamente a que permite identificar velhas cidades da colonização portuguesa com muitas, não só daquelas que ainda perduram em solo ibérico, como também na Holanda, marcada no século XV pelo domínio espanhol. Comenta, a respeito, que Guy Choquete, em viagem pelo país flamengo, ao contemplar a cidade de Breda "teve a nítida impressão de rever Salvador". Descobrindo e documentando, mais adiante, influências árabes não apenas sobre a arquitetura como também sobre a mobília de estilo chamado "manuelino" e sobre o uso dos azulejos em forma de silhares nos pátios, nos saguões ou nas peças-de-estar, especificando "a impregnação da influência muçulmana haurida através dos árabes que dominaram Portugal, deve ter tido início na Bahia e em Pernambuco, logo no começo do século XVII. Quando os holandeses chegaram a Recife, o povo vivia à moda oriental".
  4. Estes motivos todos nos fazem sentir o quanto pode haver de verdadeiro e justo nas palavras do jurista e escritor Roberto Lira que depois de ler "Gaúchos e Beduínos" comentou, segundo Ornella: "Como são simplórios quantos classificam, segundo a tricotomia clássica, os contingentes raciais do nosso povo".

Aliás e desta vez em relação à infiltração de sangue semita, Gilberto Freyre destaca ainda a influência que os judeus sefarditas tiveram sobre os portugueses do Reino que viriam colonizar o Brasil. Influência "sobre sua vida econômica, social e política; sobre seu caráter. Influência que agiu no mesmo sentido deseuropeizante que a moura". Influência, além do mais, que penetrou no sangue e na raça. Particularidade bem mais incomum, esta, porquanto os judeus, que não costumam celebrar casamentos mistos, em Portugal o fizeram abundantemente, até o ponto de Mário de Sá, citado por Gilberto, confessar que "por toda parte têm os judeus o conhecimento de serem judeus; em Portugal não o têm. Atravessaram as idades sob a designação de cristãos-novos e, há pouco mais de cem anos, com o decreto pombalino que abolia a designação infamada, e com a perda da unidade religiosa, se foram de si próprios se desmemoriando".

  1. Encerramos por aqui as observações que, guiados pelos dois ilustres patrícios repetidamente aludidos, fizemos a respeito de contatos diretos entre árabes e aborígenes ibéricos ao longo da Idade Média, levando em conta inclusive algumas consequências destes contatos sobre a colonização brasileira.

Será conveniente, agora, desviar os nossos olhares da Península propriamente dita para os dirigir à Europa como um todo, rastejando um segundo plano mais diluído, porém não menos eloquente do impacto com que as tradições e o saber árabes marcaram a cultura e a espiritualidade do Continente todo.

Ora, no período compreendido entre os séculos XV e XVI, quando começa a colonização americana, três grandes acontecimentos históricos marcavam a mentalidade, as artes e os padrões político-sociais das comunidades europeias.

Dois destes movimentos tinham-se desenvolvido coetaneamente, dos fins do Séc. XI até fins do XIII: são as Cruzadas e a arte dos Trovadores. O terceiro foi a Renascença, preludiada já no séc. XV e firmada no XVI.

Abrindo um parêntese em nosso tema principal, focalizaremos as grandes linhas destes acontecimentos da História europeia, pois em cada um dos três transparece manifestadamente o vultoso débito que a cultura ocidental tem para com a cultura dos árabes. Débito que afeta todas as áreas da atividade espiritual e que, se esquecido, pode nos levar a conclusões errôneas no assunto que os ocupa.

  1. Citemos, como exemplo, a frequência com que os estudiosos das tradições artísticas do nosso sertão, invocam influências atribuíveis tanto aos trovadores, trouvères, Minnesinger, etc., quanto à própria eclosão cultural renascentista. Mas não é do nosso conhecimento que se tenha feito qualquer exegese demonstrativa ou ponderadora de pesos específicos, neste sentido. E, sobretudo, nunca foi levado em conta o quanto as referidas influências já eram débito europeu a essa tradição arábica. O movimento trovadoresco eclode no sul da França; o Renascimento, na Itália, isto é, em territórios limítrofes aos longamente ocupados pelos árabes invasores. Casualidade?

 3.2 As Cruzadas

  1. Com referência às Cruzadas, seria supérfluo querer demonstrar o influxo que sobre o Ocidente exerceram oito investidas, ao longo de 200 anos, em direção às terras dos árabes, de Constantinopla até o Egito. Apenas desejaríamos destacar que neste afã de penetração do Oriente e por trás da fachada que, representava o nobre impulso de recuperar a Terra Santa, latejaram ocultos e interessados propósitos das duas principais Ordens religiosas medievais – os Beneditinos e os Cisterienses – no sentido de arrancar aos árabes, conhecimentos que os europeus sabiam ser muito superiores aos seus, muito embora, por questões de prestígio, tivessem que dissimular esta verdade.

Efetivamente, os restos do Império Romano Ocidental, despojados durante muitos séculos daqueles elementos da civilização grega que outrora os tiraram de sua rusticidade original, estavam cônscios do atraso e da pobreza na qual tinham recaído. E sabiam também que os perdidos tesouros se encontravam agora em poder dos árabes que, tendo-os adquirido dos territórios que conquistaram, os tinham polido e aumentado notavelmente.

Para se ter uma ideia do ponto a que tinha chegado o desequilíbrio cultural entre cristãos e árabes, bastará dizer que no Séc. X, quando as bibliotecas eclesiásticas europeias contavam seus livros apenas por dúzias e raramente passavam da centena, a biblioteca do Califa Alhakam II, de Córdoba, possuía 400.000 volumes, trazidos de todo o mundo árabe.

  1. Do lado cristão, todavia, a Ordem de São Bento vinha, desde sua fundação no séc. V, procurando, dentro do possível, salvar textos e documentos do saber antigo. Maneira de agir que, proporcionando um acervo de informações existente em outras Ordens, acabou dando aos beneditinos um prestígio e liderança únicos. Daí os numerosos Papas que, saindo dos conventos de São Bento, subiram ao Trono de Pedro, dentre os quais, um dos mais notáveis e enigmáticos foi Silvestre II, sob cujo reinado a Cristandade viu a passagem do ano 1000. Elevado ao Papado, apesar de sua vida não apresentar a menor santidade, sua consagração foi motivada pelos seus assombrosos conhecimentos, tanto científicos quanto esotéricos e alquímicos – dele se diz ter sido o primeiro alquimista cristão –, conhecimentos que lhe vieram dos árabes hispânicos. Efetivamente, ainda moço, os beneditinos mandaram o futuro Silvestre II estudar por longos anos em Toledo e Córdoba. E foi de lá que ele trouxe para o mundo ocidental os algarismos arábicos (o zero incluído), a álgebra e a alta geometria dos árabes, e até uma misteriosa máquina falante que resolvia intrincados problemas e predizia o futuro, engenho cujas respostas, na base do "sim" e do "não", inclinam cientistas hodiernos a crer que se tratava de um tipo de computador operando com dois algarismos, nas mesmas bases dos nossos atuais.
  2. Não é de estranhar, pois, que tenha sido beneditino também o Papa (Urbano II) que, décadas mais tarde, antes do fim da centúria, predicou e pôs em marcha a Primeira Cruzada. Após ter conseguido, na península ibérica, algumas gemas preciosas do tesouro dos árabes do Ocidente, os beneditinos voltavam suas vistas para o Oriente, onde calculavam existir as minas: Damasco, Alexandria, Jerusalém. Minas de conhecimen- tos, entende-se – secretos, muitos deles.

A segunda Cruzada foi iniciativa de São Bernardo, outro alquimista e taumaturgo, reformador da Ordem do Cister, patrono da Ordem dos Templários, e rival dos beneditinos, aos quais culpava do estar já se acomodando e arrefecendo em sua missão.

Tem muito fundamento, portanto, supor que as decantadas influências árabes oriundas das Cruzadas não foram casuais em seus aspectos mais transcendentes e "sim" procuradas.

 3.3 Os Trovadores

  1. Os trovadores irrompem na História bruscamente, com ideologia e com técnicas poético-musicais que custa crer que pudessem surgir por geração espontânea. A crítica literária tradicional, sempre de costas aos árabes, menciona, sobre a arte trovadoresca, possíveis influxos provenientes da arte eclesiástica cristã, monopólio das artes medievais europeias. Mas as explicações mostram-se insuficientes e, a maioria das vezes, capciosas ou forçadas. Uma observação imparcial tinha que acabar admitindo, como gerador da "revolução dos trovadores", um elemento fecundante vindo de outra civilização amadurecida e rica. E esta só poderia ser a árabe da Península Ibérica.
  2. Condições para caracterizar esta influência houve e com abundância. Descompromissadas pesquisas históricas vêm demonstrando, de maneira cada dia mais clara, que séculos a fio da Idade Média, antes e durante a floração trovadoresca, houve de fato uma amistosa convivência entre árabes, cristãos, judeus e até germânicos. Convivência a projetar influências recíprocas por ambos os lados. Pois, se os gostos orientais se expandiram entre os espanhóis, as tradições da cultura latina e visigótica não deixaram de exercer uma ação eficaz sobre o desenvolvimento intelectual do povo árabe, ação que nos altos níveis da política e da cultura não esmoreceu nem durante os períodos da luta sangrenta que representou a Reconquista. Os árabes, repetimos, praticaram sempre uma larga tolerância religiosa que, enquanto sua potência não declinou, teve razoável correspondência no campo cristão. Em muitas cidades ibéricas, independentemente do poder que as dominasse, coexistiam pacificamente mesquitas árabes, igrejas católicas e sinagogas judias. E entre os séculos X e XV, apesar das guerras, os diversos reis do território espanhol aceitavam a cultura árabe a ponto de cunhar moedas gravadas nas duas línguas: árabe e castelhana.
  3. A Córdoba e a Toledo muçulmanas eram cidades às quais se peregrinava à procura do saber e da ciência. Toledo, além do mais distinguia-se por ser a cidade na qual mais equilibradamente se distribuíam as três facções religiosas: muçulmana, árabe e judaica. Os judeus, descompromissados das rivalidades guerreiras que, de tempos em tempos, conflitavam as duas primeiras, tinham livre trânsito entre ambas, por cujo motivo vieram se constituir em pivô da reintegração do saber antigo ao Ocidente. Bons poliglotas, os judeus toledanos originaram verdadeiras dinastias de tradutores que vertiam ao latim, clássico ou vulgar, os tesouros artísticos e científicos das bibliotecas árabes e, também, das propriamente hebreias.

Esta convivência tri-racial, ibérica, tinha uma réplica exata na Sicília, reconquistada já dos árabes, em cuja Corte o rei normando Roger II (tão arabizado que vestia mantos importados do Egito, adotava em seu Palácio a etiqueta dos Califas e mantinha um harém) sustentava oficialmente uma academia na qual trabalhavam, juntos, sábios cristãos, muçulmanos e judeus

A Universidade de Montpellier, para citar um exemplo do sul da França, fundada em 1181 – em plena época da Reconquista e das Cruzadas, portanto – convidava docentes árabes para lecionar Medicina, em harmoniosa convivência com catedráticos cristãos e judeus. Aliás, foi nesta Universidade onde as sementes da alquimia e do esoterismo, trazidas pelos doutos muçulmanos, produziram a safra mais abundante e rica de iniciados medievais: Alberto Magno, Roger Bacon, Nostradamus, Raimundo Lúlio, Rabelais, Erasmo, entre outros, fizeram lá seus estudos.

  1. Também no terreno cortesão e social tinham lugar frequentes contatos (que podiam chegar até matrimônios mais ou menos arranjados) entre pessoas das duas confissões religiosas. Chegou a ser muito comum cavalheiros muçulmanos fazerem visitas aos cristãos. Pode-se afirmar, enfim, que existiam condições para efetivos intercâmbios de cultura em nível social. Confraternizações durante as quais forçoso seria que destacassem músicas e canções oferecidas de parte a parte. Canções que, por imperativos de cortesia, deveriam ser bilíngues.
  2. Por outro lado, o intercâmbio cultural tinha outras vias que não as pacíficas. Em várias ocasiões a França, partindo da barreira protetora dos Pireneus, incursionou contra territórios hispano-muçulmanos. E na rapina subsequente às lutas, valiosos elementos culturais alienígenas passaram ao poder dos hostilizadores. Ponto alto destas ações foi a Cruzada Francesa que em 1064 tomou por assalto a cidade aragonesa de Barbastro. Cruzada que, de volta à França levou muitos cativos muçulmanos, especialmente grande quantidade de moças árabes ("gainat" é seu nome árabe) educadas no canto e na prática do alaúde. As canções destas "gainat", altamente apreciadas nas cortes feudais da época, difundiam certamente a poesia e a música árabe-espanhola, com seus sistemas de versificação e interpretação, sua temática etc [1]. Do grau de apreço em que os Cruzados tinham para com a arte dessas moças, são testemunhas documentos da época que revelam não ter sido aceito resgate nenhum em troca das mesmas. De igual maneira que não foi permitido o resgate de alguns poetas que, como AI Higan, foram retidos após terem sido feitos prisioneiros.

Caudilho da Cruzada contra Barbastro foi Guilherme IX, Duque de Aquitânia, "casualmente" o primeiro trovador que registra a História, a inaugurar o gênero.

  1. Em grandes linhas, poderíamos salientar, da arte dos trovadores:

I - que usa do canto monódico, acompanhado de pelo menos um instrumento.

II que introduz o jogo das rimas, nas estrofes poéticas.

III - que inaugura, em sua temática, a mística do amor cortês.

IV - que eleva o poeta-músico ao nível social dos altos senhores cortesãos.

Vamos em seguida estudar separadamente estes itens, procurando sentir a maior ou menor dependência que cada um possa ter, em relação aos padrões latinos vigentes na época.

  1. Item I – Do século IX ao XII, enquanto a música europeia descobre, complica e aperfeiçoa a polifonia, estritamente vocal, a civilização árabe desconhece completamente a referida prática, mas, em seu lugar, apresenta uma monumental explosão de poesia cantada monodicamente e acompanhada por instrumentos, antecipando o figurino dos trovadores.
  2. Item II – A poesia latina era métrica e estrófica, mas não usava a rima. A árabe não parcelava estrofes, porém tinha rima, recurso muito coerente com a própria estruturação das palavras, na língua árabe. Desde os primitivos poemas dos beduínos do deserto, tão perfeitos que os próprios árabes os consideravam modelos da sua poética, cada poema usava uma determinada rima para todos os versos, podendo também acontecer a rima paralela dos himistíquios. Os versos eram longos, pois cada um devia expressar de "per" si um pensamento completo, A rítmica era solene e persistente, sem alterações.

Ora, a partir do Séc. IX, precisamente em terras de Andaluz, faz sua aparição um gênero poético, o zégel, de versos mais curtos e buliçosos, constituído por estrofes e diversificando rimas de uma estrofe para outra. Não vamos nos estender aqui a respeito das teorias e contra-teorias que querem que o zégel seja o modelo do qual os provençais tomaram o impulso inicial para as formas poéticas trovadorescas. Mas a verdade é que o zégel representa realmente uma técnica absolutamente inédita até então no mundo da Poesia e que aparece já uns dois séculos antes de que o façam modelos idênticos (ou ligeiramente variados) compostos por muitos dos primitivos trovadores.

  1. O Zégel típico começa com um estribilho – habitualmente de dois versos, monorrimos – que se constitui em "tema" da composição e é cantado em coro pelos assistentes, que assim participam da representação.

Logo mais vem a estrofe, cantada por um solista, composta por um tristico monorrimo – cuja rima varia a cada nova estrofe – seguido de um quarto verso que acaba com a rima do estribilho, se constituindo em chamada para o coro repetir o invariável estribilho.

Esta alternação de solista-coro e feitio dos 4 versos da estrofe repete-se sucessivamente tantas vezes quantas estrofes tiver o zégel. Outras particularidades a serem notadas são que o estribilho vem redigido em árabe vulgar (e até na língua espanhola da época). enquanto as estrofes mantêm o árabe clássico, usualmente. Estrofes e estribilho por sua vez, estão compostos por um número de sílabas que se pode manter inalterado ou não, mas sempre se trata de versos bem mais curtos que as longas tiradas onorrimas que caracterizam o clássico poetizar dos árabes, oriundos dos primeiros beduínos que o cultivaram magistralmente.

  1. O inventor do zégel foi um poeta muçulmano-andaluz de nome Mucaddam ben Muàfa, cego, da região de Córdoba, que viveu em fins do Séc. IX e no primeiro quarto do X.

A novidade pegou e dois séculos tornou-se uma das maiores culturas do gênero. Aben Guzmán explicava como os versos do zégel eram cantados revezadamente por um solista e um coro e vêm acompanhados de alaúde ou de pífano, tamboril ou castanholas, combinando às vezes com dança.

Esta integração de fatores estéticos, artistas e público da Espanha islamizada, espalhou-se por todo mundo árabe e, ainda hoje, tem plena vigência em ambientes populares dos países do Islão.

Além das muitas e interessantes inovações que o zégel introduziu na prática poética muçulmana – os zégels de Aben Gusmán eram famosos e muito cantados no Egito, Iraque e em muitas grandes cidades do Oriente sarraceno – há um fato que reveste a maior importância em relação a esta forma poética: é que ela nasceu em solo ibérico e, após impregnar os poetas cristãos da Península, representou um primeiro e decisivo passo para o transpasso da tradição poética árabe à cultura literária do Ocidente. Pois como cada dia fica mais provado, foi do solo ibérico que partiram as influências árabes que fecundariam o movimento dos trovadores, movimento que por sua vez conquistou, desde a Provença, tanto os países românicos como os germânicos.

  1. Vamos observar, de passagem e como amostra desta última afirmação, o sistema similar de rima entre um zégel de Afonso Álvarez de Villasandino [2] e uma estrofe da canção 11 de Guilherme IX de Aquitânia, o primeiro trovador da História anteriormente mencionado, que viveu em começos do Séc. XII e que, ao que tudo indica, falava também a língua árabe. Escreve o Espanhol:

Vivo ledo con razón,

amigos, toda sazón.

Vivo ledo e sin pesar

pues amor me fizo amar

a la que podré llamar

mas bella de cuantas son.

Vivo ledo con razón

amigos, toda sazón.

Vivo ledo e viviré

pues que de amor alcancé

que serviré a la que sé

que me dará galardón

Vivo ledo con razón

amigos, toda sazón,

(etc.)

E o rei provençal:

Pois de chantar m'es pres talens,

farai un vers, don sui dolens:

mais non serai obediens

em Peitau ni em Lemozi [3]

(seguem mais 9 estrofes construídas com o mesmo padrão, o 4º verso consonantando sempre em i).

  1. Item III - A literatura greco-romana focalizou a muIher exclusivamente em dois ângulos: o da “mater familiae", com todos seus valores morais e cívicos e o da cortesã, dos prazeres eróticos e das orgias. A mudar essa dicotomia e como bem diz Menéndez Pidal: "a exaltação, a entronização da muIher aparece no Séc. XII como uma rara invenção da época trovadoresca". Além de não justifica-la nenhum precedente literário, de Aristóteles até Ovídio, ela vem contrariar a filosofia da todo-poderosa Teologia cristã, que via na mulher uma costela de Adão, um apêndice do homem. Nefasto, aliás, pois fora ela quem o tentara para perdê-lo no pecado original.

Do lado dos árabes, pelo contrário, uma abundante literatura testemunha as fontes naturais do amor cortês. Desde o Séc. IX podemos encontrar em poetas de Bagdad um conceito de amor refinado e sofisticado, extraordinariamente semelhante ao que, no Séc. XII aparece subitamente na Provença. O amor perfeito, nesta literatura, é um amor puro, embora sensível a todos os encantos da amada. Tudo o que tem de exagerado – "morrer de amor é coisa doce e nobre" – tem de casto e imaginativo. "Um amor para louvar e cantar", como diz Ibn Dawd no "livro da flor", coleção medieval de poesias que o autor explica serem "tiradas dos maiores poetas que têm louvado o amor, em árabe; poetas do deserto, poetas das cidades". Para explicar mais adiante: "É o dever de cada um ficar casto, com o fim de eternizar o desejo que o possui com o desejo que o inspira".

- Justificava-se o estribilho, na poetização árabe, para dar participação aos assistentes (daí estar redigido em língua vulgar) mas não faria sentido incluí-lo em composições que não contavam com esta participação.

- fora do zégel, muitos poetas muçulmanos compuseram sobre um modelo estrófico idêntico eliminando também o estribilho. Aliás, depois que o zégel veio quebrar a mololítica tradição dos longos versos monorrimos, tanto por parte dos árabes como dos espanhóis – estes, em língua romance – foram criando variantes que resultaram em novas combinações de métrica e rítmica, muito embora sempre com tendência ao verso curto, ágil, espirituoso, musical.

De Mougdalis são estes versos:

Tortura-me, sê injusta, foge de mim.

Nada disto desmerecerá a tua beleza!

Faz tudo o que quiseres, como quiseres!

O que seja que faças, eu te dou a razão.

Que tu queiras ou não me receber,

eu suporto esperar, eu acato tua virtude.

E Suleiman, filho de Abderrahman escreveu:

Ninguém censuraria a um rei prostrar-se por amor.

Humilhação por amor é uma honraria, uma segunda majestade.

Não é portanto, um amor inteiramente espiritual – como não o é tampouco, aparentemente, o dos trovadores – que pudesse se confundir com o conceito do amor cristão, por exemplo. É um amor que inflama os olhos cobiçosos tanto quanto os corações. Que, no entanto, para nunca o expor ao cansaço, à rotina ou ao olvido, deve ser mantido em desejo e deixado crescer até sacrificar-lhe a vida, se preciso.

  1. Aliás, e mesmo aceitando que o ideal amoroso possa também ter sido transplantado à lírica provençal, pesquisadores modernos sustentam que a Dama dos trovadores não representava em realidade uma mulher e sim uma alusão à lgreja Cátara, cujo culto estava, na época, profundamente enraizado na Provença e que, denunciado como uma perigosíssima heresia, o Papado romano passou a combater com terríveis matanças e fogueiras que enlutaram o "languedoc".

Um provençal moderno, Jacques Huynen [4], é deste parecer e nos aconselha a procurar – tal e como deve ser feito diante de muitas realizações medievais – o sentido oculto dos cantos à Dama. E argumenta, em defesa da inconsistência que teria o amor cortês levado a sério: "Tomada ao pé da letra, a poesia dos trovadores e a do 'dolce stil nuovo' não é porventura um amontoado de sandices recitadas por poetas frouxos a uma Dama reticente e pretensiosa? Ninguém nega aos homens do Sul da França serem galantes e elegantes, mas seu temperamento mal se adaptaria a este tipo de castidade forçada que se tem qualificado de amor cortês".

  1. Os cátaros contavam em suas fileiras com os mais destacados senhores feudais da Provença. Na hora da perseguição religiosa disfarçaram, parece, com o amor cortês, o culto ao credo pelo qual estavam dando até suas vidas. Daí o "trovar clus" (poetizar fechado), particularmente na última centúria da floração trovadoresca, cujas poesias representavam verdadeiros criptogramas onde, por baixo de um significado aparente, as vezes até banal, escondem-se mensagens de fé e de solidariedade na hora difícil.

Outro recente livro, "O tesouro cátaro" de Gérard de Séde, nos diz que no "ensenhament" (aprendizagem) a que o trovador tinha que se submeter para ser digno da sua Dama, havia uma série de assags (estágios) pelos quais era preciso passar. Eram, sucessivamente; fenhedor (aspirante), precador (suplicante), entendedor (entendido) e drut (amante). Amante, já sabemos, totalmente casto. Atingido este último estágio, o trovador receberia apenas um único beijo da Dama e seria obrigado a celar (guardar segredo). O nome da Dama não podia ser revelado: apenas evocado com a senhal, um pseudônimo feminino qualquer. Se a paixão o levasse ao paroxismo ideal de "morrer de amor", ele seria compensado com "gautz e jovens" (gozo e juventude). Ora, o amor cortês, conclui Gérard de Séde, é um ritual iniciador. Com seus doutrinamentos prévios, provações, acesso por graus, sacralização e, sobretudo, com o compromisso de guardar segredo e o desfecho numa "morte simbólica" que garante ao iniciado um "nascimento novo".

A Dama, portanto, teria mais da Esposa do Cântico dos Cânticos, de Salomão, e até da Isis egípcia, que de senhora nenhuma dos castelos occitanos.

  1. Longe destes castelos, aliás, onde o problema cátaro nem foi vivido nem, consequentemente, poderia ser entendido o sentido oculto da poesia da Dama, a imitação tomou por certas as aparências externas, o sentido literal. De modo que, se é lícito supor que a Beatriz do Dante – um iniciado – tenha parentesco com a Dama dos trovadores, a Dama de D. Quixote já é realmente uma mulher, idealizada em pontos de ridículo, uma vez que o bom senso espanhol, mesmo depois de ter imitado o que foi moda avassaladora, não tinha tragado o sapo do amor cortês. Por outra parte, é revelador que um grande contemporâneo espanhol dos trovadores, Afonso X, rei e ilustre trovador ele mesmo, na hora de cantar sua Dama e seja porque cheirou, desde suas alturas políticas, a verdade dos provençais, seja por não poder imaginar sinceramente um amor a seco como o do modelo, dedica suas trovas, com muito bom senso e perspicácia, à Santa Maria.
  2. Item IV – Muito difícil seria encontrar, do lado latino, um antecedente ao figurino do trovador: artista diletante, admitido na intimidade das famílias feudais, nobre ele mesmo, muitas vezes. Os "mimi", os "histrioni" e outros tipos de artistas ambulantes, habituais nas feiras e nas encruzilhadas europeias desde os tempos do Império, eram mais ou menos apreciados pelas comunidades carentes de outras diversões, mas considerados elementos imprestáveis, vulgares, marginalizados. E não é dentre os mesmos que poderia ter surgido a figura prestigiosa do trovador, admirado pelos seus dotes pessoais como pela sua elegância espiritual.

O figurino, aí sim, estava perfeitamente definido do lado das Cortes árabes, orientais e ocidentais: era o músico cantor que já tivemos ocasião de ver pululando pelos paços muçulmanos da Península, solicitado e admirado pela nobreza, pelos Califas e pelos Reis, poetas eles mesmos, amiúde. Era só copiá-lo, dando-lhe nome e carta de naturalização. O nome, aliás, foi mais um empréstimo feito aos muçulmanos, pois as pesquisas mais recentes vêm afirmando que a palavra "trovador" não deriva do verbo trouver (achar, em francês) como se acreditava antigamente, nem de troppare [5], mas da raiz arábica TRP que significa "tocador de alaúde".

  1. Temos nos estendido bastante na consideração dos trovadores, apesar de nossa afirmativa inicial de não acreditarmos que a arte trovadoresca possa ter exercido qualquer influência na música e na poesia sertaneja. Pareceu-nos oportuno, no entanto, esboçar em bases atualizadas o que foi o movimento trovadoresco para patentear:
  • que daquilo que foi o seu conteúdo característico – a Dama, o amor cortês – e o seu poetizar original – o trovar clus por exemplo – não parece ter-se desprendido nenhuma das sementes germinadas no sertão brasileiro.
  • que naquelas criações nas quais se podem reconhecer identidades em relação à poesia do sertão, – a tençó (o desafio), o sirventés (a sátira), a lloa (a louvação), etc. – as semelhanças se devem ao fato de ambas as florações poéticas terem bebido numa fonte comum, bem mais antiga: a tradição poético-musical arábico-ibérica. Daí o engano de alguns, pensando ser influência trovadoresca o que em realidade foi filiação de uma matriz compartilhada.

 3.4 Os Jograis

  1. Até aqui falamos somente em trovadores e nada dissemos dos seus colaboradores, intérpretes e, inclusive, parceiros artísticos: os jograis. Isto, para evitar embaralhar conceitos que convém discriminar. Pois um olhar além do superficial revela logo que os jograis constituem uma classe perfeitamente definida que não deve ser estudada em função da classe trovadoresca. Embora seja inegável que aos jograis interessou colaborar com os trovadores durante o longo período em que aqueles dominaram o cenário da vida cortesã, não é menos verdade que eles mesmos já vinham vindo por seu caminho velho de séculos e nele prosseguiram, depois que os trovadores sumiram.
  2. A denominação jogral – aprendemos de Menéndez Pidal [6] – possuiu significados diversos dependendo das épocas e do contexto social em que os jograis foram apreciados. Em termos muito vastos, seriam jograis todos aqueles que ganhavam seu sustento atuando diante de um público, para diverti-lo por diversos meios. Cabendo, nesta definição, tanto o trapaceiro roda-mundos como o bem-acomodado menestrel a serviço de uma casa real; tanto o acrobata e o charlatão quanto o fino cantor ou instrumentista.

A denominação latina joculator (algo entre declamador e charlatão) começou a aparecer na Europa central a partir do Séc. VII, ao lado dos chamados mimos, histriões, e thymelici, oriundos do desintegrado teatro romano e representantes da farandolagem dedicada a divertir populações e a amenizar festas palacianas. Classe social que, apesar do numeroso público que a solicitava e que se regozijava com suas habilidades, era olhada com desprezo pelo comum das gentes e até com censura pelas autoridades, sobretudo as eclesiásticas, que condenavam os extremos licenciosos a que seus espetáculos costumavam chegar.

  1. Todavia, na Península Ibérica, a partir do Séc. X, uma parcela destes boêmios começa a crescer em consideração e prestígio, ao ponto de conseguir a proteção dos nobres, das Cortes e inclusive dos mosteiros. É a parcela dos que cultivam estritamente a poesia e a música, e que cantam acompanhados de instrumentos variados, dependendo do gênero interpretado: instrumentos de arco ou de ponteio, aptos para serem tocados simultaneamente pelo próprio cantor; de sopro e percussão, idôneos para episódios ou interlúdios consistentes em ritmos dançantes, sem palavras.

Este tipo de artista virá assumir plenamente a denominação de jogral, que na Espanha, com o nome de juglar, aparece tardiamente, começando a ser documentado só a partir do Séc. XII.

  1. O repertório destes jograis consistia em narrativas de episódios guerreiros, tratando muito especialmente das Cruzadas, das vidas dos Santos, de acontecimentos admiráveis ou miraculosos etc., sem que deixassem de aparecer, na mistura, os devidos louvores aos grandes senhores hospitaleiros.

Muito embora a documentação que nos restou não permitisse muitas precisões a respeito, pode-se crer que as melodias e os textos cantados eram em grande parte – como acontecia entre os árabes – invenção de cada artista ou escolha e adaptação feita a partir de um acervo comum: não existe notícia apontando literatos ou músicos a fornecer composições aos jograis.

  1. Vemos, portanto, que a concretização do tipo melhorado de poeta-músico que o jogral representa, vai-se firmando em solo ibérico precisamente nas alturas históricas em que a tradição poético-musical andaluza atinge seus pontos culminantes, ostenta verdadeiras legiões de prestigiados artistas, possui seus géneros autóctones – o zégel e afins – e, mediante contatos que vão do convívio cordial até a rapina bélica, vai sendo divulgada e altamente apreciada pelas nações cristãs circundantes.

Nada de forçado, então, em supor que a nova denominação, jogral, viesse a ser aplicada ao tipo latino correspondente ao padrão popular de poeta-músico dos árabes, suposição que explicaria que, desde o início, a mesma definisse um mesmo tipo de artista, cristão ou sarraceno, em ambos os territórios político-religiosos. Aliás, a ilustração da portada deste livro, copiada de uma miniatura das Cantigas de Alfonso X, sugere esta identidade mostrando dois jograis, um árabe e o outro castelhano, com suas respectivas vestimentas tradicionais, cantando cara a cara – uma banqueta com uma jarra de bebida a separá-los –, tocando os seus alaúdes, provavelmente se desafiando.

  1. Partindo desta suposição, qual poderia ser, aos olhos dos próprios árabes, a diferença entre seu poeta-músico palaciano e seu próprio jogral? Não possuímos referências documentando diretamente esta questão. Porém, baseados em detalhes apreciados em textos coevos, é possível supor, entre os árabes, duas categorias de poetas: de um lado aparece o poeta que cultiva – mesmo quando improvisa – uma linha de poesia sofisticada, lírica e cortesã, um tanto retórica, baseada em experiências pessoais, amatória... Do outro, o jogral propriamente dito, com sua poesia-espetáculo-reportagem; seu lendário épico-religioso, suas sátiras e chacotas e seus vibrantes desafios verbais.

Aliás, consta que os jograis árabes foram sempre muito solicitados, por parte dos Reinos cristãos-ibéricos. Encontramo-los fartamente relacionados nas folhas de pagamento das Cortes reais castelhanas: na de Sancho IV, de Castilha, por exemplo, figuram 13 jograis sarracenos assalariados, contra 12 cristãos. Pedro IV de Aragão contratava jograis diretamente da Escola de Música mourisca de Xâtiva [7].

De maneira parecida, em Palermo e em Nápoles, nas Cortes de Federico II e de Manfredo, grande número de jograis muçulmanos partilhava, com seus colegas europeus, da estima dos nobres. E o que é mais notável, a penetração do jogral atingia as próprias Igrejas, nas quais a participação artística dos mouros – e também dos judeus – chegou a ser tão ostensiva que acabou provocando leis episcopais proibindo-a [8].

  1. Aliás, cabe neste ponto esclarecer que também no plano jogralesco os judeus inteiravam a trilogia racial que já tivemos ocasião de comentar em planos culturais outros. Nas grandes festas das cidades espanholas, por exemplo, as três religiões eram representadas pelos seus respectivos jograis, isto constituindo uma tradição da qual possuímos abundante documentação e que perdurou por séculos, a ponto de a descrição referente ao recebimento que Toledo fez a Alfonso VII em 1139, na qual consta que o Rei foi aclamado em três línguas por cristãos, mouros e judeus, todos tocando seus instrumentos, poderia perfeitamente ser trocada por estes versos escritos três séculos e meio depois, por ocasião do recebimento, em Portugal, da filha dos Reis Católicos, na qualidade de esposa do Rei Manuel:

“Ya me salen a encontrar tres leyes a maravilha:

los cristianos com sus cruces, los morros a la morisca,

los judios con vihuelas que la ciudad se estrujia...”

  1. Do ponto de vista profissional, diz Menéndez Pidal que "a Classificação mais comum dos jograis se fundamentava no instrumento no qual eram especialistas. Vinham em primeiro lugar os violeiros, qualificados pelos poemas de clerecia como sendo os principais jograis”, violeiros que tocavam suas violas (vihuelas) tanto com arco como ponteando-as, se bem que com o correr dos tempos e o crescente emprego da rabeca, tocada unicamente com arco, a viola passou a ser exclusivamente ponteada: com plectro (era muito habitual uma peninha) ou diretamente com os dedos, à moda da guitarra, instrumento que viria substituir a viola na preferência do povo.
  2. Com a aparição dos aristocráticos trovadores, estabeleceu-se uma relação trovador-jogral que assumiu aspectos variados. O jogral podia cantar os versos do trovador, acompanhando-se instrumentalmente. Ou podia limitar-se a tocar um instrumento, acompanhando um trovador que interpretava suas próprias canções. Ou podia, mais raramente, compor ele mesmo as canções que cantava, acercando-se assim à condição de trovador, condição final, porém, que, de fato, fugia às suas possibilidades, uma vez que a principal diferença entre trovadores e jograis não radicava na capacidade de criar ou de interpretar, e sim na de comercializar ou não essa capacidade. O jogral ganhava por se exibir. O trovador, pelo contrário, não visava nunca a recompensa. Como esclarece Menéndez Pidal: "O trovador ainda que às vezes cantasse em público não o fazia por ofício; e mesmo que fosse pobre, era sempre o poeta das classes mais cultas. Muitos cavaleiros da mais alta condição social buscavam, no exercício da poesia e da música, a plenitude de suas qualidades cavalheirescas". E não andava longe da verdade D. Quixote ao afirmar que todos ou a maioria dos cavaleiros andantes da idade passada eram grandes trovadores.

Contudo, a categoria do jogral não era nada desprezível. Riquier de Norbona, um jogral da Provença, nos ilustra sobre o conceito que sua classe deve merecer quando, em 1274, hospedado na Corte castelhana, dirige a Alfonso X sua "Suplicatio al rey de Castela per lo nom dos juglars". Riquier, expressando opiniões certamente compartidas por seus colegas, lamenta que seja chamado de jogral "aquele que diverte com macacos e títeres, ou aquele que com pouco saber toca um instrumento, cantando por praças e ruas perante gente baixa, e corre a seguir para à taberna a gastar o pouco que ganha".

  1. Rematando estas referências sobre os jograis e visando apontar uma possível linha ancestral especialmente direta entre os jograis ibéricos e os violeiros-rabequeiros do sertão nordestino, ressaltaremos dentre as variadas escolas jogralescas ibéricas e precisamente na galaico-portuguesa, com exclusividade, um tipo de artista chamado segrer ou segrel (o já mencionado Riquier o chama de segrier) que é um misto de trovador e jogral: compõe e canta suas composições.

Menéndez Pidal [9] supõe que o segrer fosse um trovador peninsular anterior ao modelo provençal. Nós não tão somente concordamos, quanto não relutaríamos em considerá-lo um equivalente galaico-português do já secularmente tradicional, naquelas alturas, poeta-cantor dos territórios ocupados pelos árabes. Em valores sociais, aliás, a condição do segrer era superior a do jogral. Era fidalgo, habitualmente, ainda que fosse de última categoria. Morava na Corte dos reis e viajava com ela, muito embora levasse uma vida privada, boêmia. Diferenciava-se do trovador pelo fato de receber pagamento por suas canções; do jogral, pela sua fidalguia e por compor, como profissional, canções cortesãs, características, enfim, de um perfeito gêmeo dos poetas palacianos árabes, tal qual os víamos atuar nas Cortes dos Reinos de Taifa.

  1. Menéndez Pidal [10] diz que a origem da denominação do segrer é desconhecida. Todavia e apesar dos nossos rudimentares conhecimentos de etimologia, nós não acharíamos muito aventurado fazer derivar este termo do árabe châ-hir, nome dado pelos beduínos do deserto, já desde os tempos pré-islâmicos, aos seus poetas-adivinhos tribais. Poetas rapsodos, cujos hábitos de declamar ao som do seu rabab tornou muito conhecido este instrumento pelo nome, precisamente, de "rabab-al-cha-hir": o rabab do poeta.

Por outro lado, pareceria bem provável a própria voz portuguesa jogral derivar de segrel e não do jocularis latino. Esta virtual etimologia, aliás, conseguiria explicar a curiosa diferença entre o termo espanhol juglar, este sim derivado de jocularis e o português jogral, cujo grupo consonântico "gr" não corresponde ao da denominação latina. Mas identifica se com a de segrel.

[1] Aliás, a “gainat” é uma constante história, na vida árabe. Existiu sempre, nos graus mais variados da sociedade, do palácio à taverna, a perdura até os nossos dias. O melodismo dos cantos e o cuidado da técnica vocal costumam ser muito mais valorizados pelas gainat do que pelos poetas-cantores homens, cujas habilidades centram-se particularmente nos seus dotes poéticos.

[2] Não usamos um "zégel" ern língua árabe porque certamente dificultaria a comparação. Mas nem precisamos dizer que o "zégel" do espanhol (fins do Séc. XIV) respeita rigorosamente a forma poética adotada.

[3] A ausência do estribilho, na canção do Rei Guilherme, pode-se explicar por duas razões

[4] El enigma de las Virgenes negras. Plaza – Janés

[5] Hábito muito em voga, na época, entre os cantores litúrgicos cristãos, consistente em compor troppos, versos musicados que eram interpolados ou vinham desenvolver primitivos Cantos Gregorianos.

[6] Poesia juglaresca y juglares". Col Austral - Espasa - Calpe

[7] Desde os tempos do Califato de Córdoba, poetas-músicos da Arábia, da Pérsia, da Síria e do Egito, imigrantes em terras de al-Andaluz, foram fundando importantes escolas jogralescas, na Espanha árabe.

[8] No Concílio de Valladolid, em 1322, os bispos castelhanos condenaram severamente o hábito, por parte dos fiéis, de levar às vigílias noturnas das igrejas, jograis sarracenos ou judeus para cantar ou tocar instrumentos.

[9] Poesia juglaresca y juglares". Col Austral- Espasa – Calpe

[10] Obra citada.

4 O SALDO DAS INFLUÊNCIAS

 4.1 A Renascença

  1. A colonização do sertão nordestino teve lugar em plena Renascença, quando árabes e judeus já haviam sido banidos de todo o território peninsular. Até que ponto, então, seria imaginável um predomínio cultural de cunho árabe nas práticas poético-musicais exportadas de Portugal para o Brasil? Não pareceria mais lógico terem sido as manifestações do espírito renascentista as que cruzaram o Atlântico naquela hora?

Tentaremos responder estas questões através de três epigrafes convergentes ao propósito:

I - A dívida da Renascença para com a civilização ará- bica (especialmente com a sediada na península ibérica).

II - O espírito da Renascença.

III - O remanescente medieval, na Ibéria renascentista.

  1. Os cameleiros nômades do deserto, tão frugais e rudimentares em seus hábitos de vida quanto amadurecidos em seu caráter e sua espiritualidade, caldeada por um telurismo tremendo e fascinante, logo após dominar povos de culturas mais adiantadas e não tendo muito progresso material próprio a empatar com o encontrado nos povos sob o seu domínio, mostraram-se ávidos por conhecer e assimilar tudo o que nestes povos houvesse de conhecimentos e de técnicas mais evoluídas. Vemo-los adotando a agricultura dos egípcios e dos babilônicos, a indústria dos sírios e dos persas, as artes dos persas e dos gregos e integrar depois todos estes conhecimentos – e os mais adquiridos em suas fronteiras extremas com indostânicos, francos e germanos –, numa cultura rica, moldada já a sua racialidade. Cultura que, na hora de sua decadência política os islâmicos haveriam de deixar como preciosa herança ao Ocidente renascentista; cultura sobre a qual o mundo ocidental, fecundado e alimentado por ela, iria deixar cair rapidamente uma pesada cortina de esquecimento e ingratidão, recortada de preconceitos religiosos e costurada com orgulhos e racismos.
  2. "Além do passado visível, existe quase sempre outro passado mais longínquo que escapa aos nossos olhares" nos adverte Rajna [1]. E no caso que nos ocupa, haveria que alertar ainda sobre a facciosa visão dos historiadores ocidentais, em geral, embora hoje esta atitude comece a ser corrigida por alguns historiadores objetivos e corajosos, como Sánchez Albornoz [2], quando declara: "A cada dia que passa surgem novas provas afirmando o insuspeitado florescimento da vida espiritual e material da Hispânia islamizada. Séculos antes que o Renascimento fizesse brotar de novo as fontes semi-exaustas da cultura clássica, fluía em Córdoba e corria para Europa o rio da mais rica civilização que o Ocidente conhecera durante a ldade Média; da civilização que soube conservar as essências da vida pretérita do velho mundo para transmiti-las, transformadas, ao novo mundo". Os livros árabes, traduzidos na Espanha de Alfonso X pela Escola de Tradutores de Toledo, tinham imediata difusão por toda Europa, até seus últimos confins, e levaram à cultura do Continente conhecimentos técnicos, filosóficos e literários completamente desconhecidos do Ocidente. Isto sem falar no contínuo afluxo de europeus às brilhantes universidades árabes das cidades ibéricas ou na participação de eminentes sábios muçulmanos nas universidades europeias.
  3. Crossley Holland [3], historiador da Música, escrevendo sobre sua especialidade, vê desta maneira as influências dos árabes medievais sobre a música renascentista:

"A Espanha islâmica foi importante tanto pelos seus próprios e originais achados musicais quanto pela sua influência sobre grande parte da Europa. O Islão foi a principal força motora entre Bizâncio e a época da Renascença, e dele a Espanha irradiou sua cultura para uma Europa que, comparada com o que mais tarde chegou a ser, se poderia qualificar de 'bárbara', por volta do Séc. VIII".

"Enquanto a música europeia só conhecia fragmentos da teoria grega, os árabes tinham tratados inteiros ao seu dispor e os eruditos escreviam seus próprios métodos já no Séc. VIII, muito antes que na Europa acontecesse algo parecido. Entre os séculos VIII e XV foram escritas umas 260 obras sobre Música, entre as quais muitos tratados teóricos". "Nos Colégios maiores da Espanha islâmica, a Música era parte da Ciência matemática e aos mesmos acudiam estudantes de toda a superfície do mundo civilizado".

  1. Por outra parte, se deixarmos de olhar a Espanha para focalizar o país que foi berço da Renascença, a Itália, poderemos constatar que lá a poesia em língua vulgar – e com ela literatura propriamente italiana – começa a ser cultivada na Sicília recuperada dos árabes e não na península itálica. Nascendo, como a ibérica, não aos impulsos de obras eruditas compostas por gênios isolados, mas, modestamente, na forma de poesia popular que anda de boca em boca e que por esta razão acaba se impondo aos letrados entrincheirados em seu latim. Fatos que ressaltam:
  • que a ingente tradição poética na vida diária dos árabes tinha conseguido se enraizar nos hábitos do grupo de populações latinas com as quais convivera. Pois resulta revelador que seja na Sicília e não em qualquer outro lugar que o processo literário italiano venha a ser iniciado. Aliás, entre as produções poéticas italiana e espanhola daquela época são tantas as afinidades, sob tantos aspectos, que seria insensato negar a comum inseminação.
  • que se trata de uma poesia de caráter popular, feita pelo povo e para o povo, indiferente por completo às preocupações dos eruditos, condição na qual perdurará mesmo depois de, com seu exemplo, ter gerado padrões de poesia mais ambiciosos, elaborados em superiores níveis culturais. Exatamente como acontece hoje em relação à nossa literatura, na qual ao lado de uma robusta poética erudita, viceja com denodo a tradição poético-musical dos violeiros sertanejos.
  1. Poder-se-ia questionar, quem sabe, se em Portugal a influência árabe chegou a ser tão atuante quanto o foi na Espanha. Efetivamente, Portugal liberou dos árabes o seu território quase 200 anos antes do que o fez a Espanha. Mas em compensação sua expansão marítima o levou a dominar terras mouras já em 1415, quando conquistou Ceuta. Consequentemente, como bem nos recorda Gilberto Freyre [4], as influências que os árabes não exerceram como dominadores, passaram a exercê-las como dominados, como escravos, porém, mais preparados e destros do que os seus senhores e pelos mesmos muito apreciados. Escravos-mestres, no estilo em que o foram também os cultos gregos em relação aos seus bárbaros conquistadores, os romanos.

Aliás, nesta condição de escravos, as influências arábicas puderam ser em Portugal mais eficazes e duradouras que na própria Espanha. Isto porque a animosidade castelhano-aragonesa-catalã contra o infiel, armado e resistentes fez com que as populações árabes fossem muitas vezes aniquiladas ou desterradas e olhadas com ojeriza seus particulares conhecimentos e comportamento. Em terras lusas, pelo contrário, a condição dominadora dos portugueses, obtida muito antes e sem tão longas lutas e violências, propiciou uma atitude muito mais tolerante e receptiva.

E em última análise, Portugal, confinado num extremo do continente europeu, tinha uma cultura autóctone muito menos desenvolvida que a dos árabes e era interesse seu beber nas ricas fontes muçulmanas, nas quais toda a Europa bebia, com a vantagem, por parte dos portugueses, de poder beber em primeira mão e de graça, sem ter que depender das correntes continentais, afinal de contas mais fracas.

  1. Na Europa, a Renascença veio determinar o fim da Idade Média na mesma hora em que os árabes eram expulsos do Continente, decadentes politicamente, mas projetando ainda um resplendor cultural muito maior que o da apagada latinidade. Hora em que a revalorização do corpo humano e da liberdade espiritual do homem acendiam o desejo de espargimento e de prazeres. Hora, portanto, na qual os europeus, carentes de instrumentos para animar suas festas e salões, precisaram tomar emprestado aos muçulmanos o seu variado e rico instrumental. De fato, a Europa, até hoje, deve em grande parte aos árabes a esplendorosa música instrumental que a Renascença inaugurou graças a este empréstimo. Pois são muitos os tipos de instrumentos que integram as nossas atuais Sinfônicas que foram encampados pelo Ocidente copiando os modelos muçulmanos, as cópias sendo possíveis graças ao contato vital que a Cristandade tinha com os sarracenos andaluzes, possuidores de padrões de Cultura mais evoluídos em relação aos de suas próprias matrizes orientais.
  2. O novo acervo instrumental, tão logo adquirido, foi posto ao serviço dos Palácios e da nobreza que procuraram substituir com instrumentos a polifonia das vozes humanas, pouco adequada à animação e brilhantismo das suas festas e danças.

Fez-se o possível para dissimular a arabidade do empréstimo feito. Os instrumentos importados sofreram modificações e adaptações ao gosto ocidental. As características de alguns foram incorporadas a outros parecidos europeus, que a Cristandade tinha condenado, deixando-os sem possibilidades de evoluir. Mudaram-se nomes, ainda que não mudassem as principais peculiaridades dos instrumentos adotados.

Todos estes eufemismos e esta vontade de apagar origens não gratas podem-se comprovar comparando, no próprio Portugal, duas relações de arquivo do Palácio Real de diferentes datas. Na época de João I (1385-1433), o arquivo registra uma orquestra formada por alaúde, guitarra, harpa, arrabit, rabeca, anafil, charamela e órgão – instrumentos de tradição muçulmana, quase todos eles.

Já da época em que João IV (1604-1656) tira Portugal do domínio espanhol, existe outro catálogo do Palácio no qual são mencionados como instrumentos principais, descartando os de teclado:

- De cordas pinçadas: alaúde, tiorba, mandora, chitarone, bandúrria e cítara espanhola.

- De cordas friccionadas: viola d'arco ou viola de braço, viola bastarda, viola baixa ou baixo de viola, violone ou baixão e violin ou piccola viola alla francese.

- De sopro: frauta ou flauta.

Isto é, os instrumentos de origem árabe cederam o passo aos que a Europa vai ressuscitando e aprimorando a partir do acervo instrumental, obtido do lado muçulmano. Tudo isto prova, que os dois principais instrumentos difundidos no sertão – a viola ponteada e rabeca – têm que ser relacionados com influências medievais, aquelas que nas camadas baixas da população perduraram, mesmo entrada a Renascença. Mas de maneira alguma ao período barroco; quando na terra-māe dos emigrantes portugueses privavam já, novos modelos de instrumentos que inclusive renegavam os dos velhos tempos muçulmanos. .

 4.2 O espírito da Renascença

  1. Ver na Renascença apenas uma mudança nos rumos da literatura e das artes, ou um progresso científico trazido pela recuperação da antiga sabedoria grega, é ficar em aspectos um tanto externos. A Renascença é, antes de tudo, uma brusca mudança de civilização, entendendo por tal uma radical atitude espiritual, diante da vida interior e da realidade exterior.

O humanismo renascentista, na medida que veio enaltecer o indivíduo, veio também destruir em suas bases o senso gregário da criatura humana; aquele sentir do homem medieval, que estava junto com outros "nas mãos de Deus", senso que alicerçou as grandes criações corporativas – populares, no sentido mais genuíno – da Idade Média.

Das fabulosas Catedrais góticas aos riquíssimos tesouros da literatura e música anteriores à Renascença, nenhuma criação medieval jamais fez questão de mencionar autores. A noção de autoria, bem como a de plágio não faziam sentido naquele mundo.

A partir da Renascença é que começa o reinado dos autores, num crescendo de poder que em nossos dias chega ao absurdo de valorizar, às vezes, uma simples assinatura.

  1. A Renascença inaugura também a mentalidade prática, metódica, racionalista. O homem vira oficialmente as costas ao sentido do mágico, à religiosidade medular, irracional. Inaugura a arrogante atitude de considerar a criatura humana o centro do Universo, medida de tudo o que existe, critérios que, se há poucas décadas eram considerados conquistas do gênero humano, hoje, expostos como estamos às imprevisíveis e alarmantes consequências decorrentes dos mesmos, já se perguntam, muitos, se na troca de valores da Renascença houve lucros ou perdas. Um escritor atual, a quem ninguém pode negar um corajoso vanguardismo nas idéias, Louis Pawels [5], diz, por exemplo:

"A civilização de Córdoba, na qual se fundiam elementos helênicos, persas e ocidentais, tinha sido um grande momento na história do espírito humano. Em 1453, a tomada de Constantinopla pelos turcos veio secar a corrente que fluía, velha de quatrocentos anos, de uma civilização para outra. Morrem muitos sábios e cientistas, enquanto pegam fogo muitas bibliotecas com muitos tesouros inestimáveis. Interrompe-se o contato com uma certa forma de sonho e de meditação, com certos conhecimentos matemáticos e metafísicos, com um universo poético e místico, alimentado ao mesmo tempo por uma estética da volúpia e por elevadas abstrações". Concretizando a seguir: "Em franca reforma social e subitamente enriquecida, a Europa lançou-se à colonização do mundo. Sua inteligência e seu poder cresceram formidavelmente, enquanto diminuíam suas virtudes e uma determinada forma aguda e espiritual de conhecimento. A Europa caminhou para o materialismo e o racionalismo, que lhe deram todas as oportunidades de sucesso, para conduzi-la em seguida ao perigo da autodestruição nesta nossa época...".

  1. Consideradas em seus íntimos impulsos, as duas civilizações – a medieval e a renascentista, aqui forçosamente resumidas aos seus traços mais elementares – com qual diríamos que sintoniza melhor a mentalidade sertaneja, com seus surtos de fanatismo religioso, seu desambicioso passar pela vida, sua solidariedade gregária tanto na calamidade e na morte quanto nos arraiais festivos, suas rivalidades regionais ou de clã, seus repentes de alegria indômita, suas rodas públicas atentas ao poeta popular que canta tudo isto?

É que poderíamos encontrar alguma coisa, na cantoria dos poetas sertanejos, a relembrar o espírito crítico, metódico, individualista, deslumbrado pelo poder e riqueza, ávido por descobrir horizontes inéditos, que caracterizou os homens da Renascença?

  • O remanescente medieval, na Ibéria Renascentista
  1. Da mesma maneira que, hoje em dia, junto a um tipo de civilização técnica que envia homens ao espaço exterior, encontram-se, em sucessivas estratificações descendentes, estágios múltiplos do desenvolvimento humano, que vão até aos índios amazônicos e aos antropófagos de Nova Zelândia, em toda época histórica têm coexistido estratos de população nos mais diversos níveis, muito embora a História somente contabilize aquela faixa frontal, mais representativa, que arremete contra as esgotadas estruturas, que abre rumos inéditos, que impulsiona o presente para transformá-lo em futuro.

Aliás, sem necessidade de apelar para o contraste de raças diferentes, estratificações não menos diversificantes as poderíamos encontrar, também, em qualquer grande cidade do mundo de hoje. No Rio de Janeiro, em Buenos Aires, em Nova lorque que seja, coexistem sistemas de vida que vão, desde o maior requinte em luxo e cultura, até padrões da Idade da Pedra; não só pelas condições materiais da vida dos seres humanos que moram em cavernas e buracos, como também pelo subdesenvolvimento mental e espiritual constatáveis em alguns indivíduos nesta condição.

  1. Tais considerações trazemos à baila para ilustrar, antecipadamente, o que nos parece ser a última chave que explicaria a ausência de qualquer influência renascentista nos grupos humanos que povoaram o sertão. Efetivamente, aqueles grupos não foram recrutados entre as camadas que podiam estar mais ou menos impregnadas da mudança de civilização representada pela Renascença. Eram populações a nível de soldadesca, de camponeses e pequenos comerciantes, no melhor dos casos; de párias e buscadores de fortuna. Não fossem assim, aliás, e o vasto sertão, duro e difícil, incompatível com naturezas frágeis, não os haveria de reter.
  2. Por outra parte, na Corte lisboeta, o "espírito da Renascença", certamente, aparelhava naus, fornecia armas e recursos. Mas o que embarcou no outro lado do Atlântico para povoar o interior nordestino, foi ainda o "espírito medieval" com suas lendas, suas crendices e seus mitos, seus hábitos, sua tabua de valores humanos e morais, suas rústicas diversões e suas artes despretensiosas. Comunidades de instinto gregário, mais intuitivas do que reflexivas na sua teimosia de avançar, de invadir. Turmas que, carentes de todos os bens que a virada de época oferecia aos poderosos, achavam "melhor do que nada" a vida na terra de ninguém sertaneja, com seus perigos e seu afastamento. Motivações emparelháveis, aliás, com as dos humildes pioneiros levados hoje a enfrentar os enormes riscos da colonização amazônica.

Para aquelas populações, a mentalidade, os usos e os gostos do Séc. XVI nem faziam sentido. Estavam alheias a tudo aquilo como um feirante de Caruaru o está hoje da música dodecafonica ou dos cálculos cibernéticos.

Nada do que estava a agitar e impulsionar as cúpulas do pensamento e do poder da Renascença afetava ou influía neles nem em suas, fortemente enraizadas, tradições hispano-arábico-judaicas velhas de 800 anos, tradições que naquela hora, tendo deixado os muçulmanos a península, vigoravam particularmente nas artes jogralescas, tão fortemente infiltradas do estilo de vida árabe, e nos próprios hábitos mouros já perfeitamente aculturados no seio das populações cristãs.

  1. Nesta perspectiva é que se tornaria fácil explicar muitas coincidências curiosas entre tradições muçulmanas e sertanejas, mesmo no homem do sertão que não prima pela racialidade árabe: o lenço cobrindo boca e pescoço das muIheres, a instituição da cabra na vida caseira, o amor ao cavalo (um verdadeiro culto, entre os sertanejos), muitos tipos de comida: as coalhadas e os requeijões sertanejos, o cuseuz – o "alcuzcuz" dos árabes –, etc.

Possivelmente, aprofundar uma pesquisa nos terrenos da culinária, dos licores e bebidas tradicionais, dos festejos que acompanham determinados feriados, dos jogos da criançada, dos procedimentos de cultivar a terra, etc, resultaria muito esclarecedor e até um tanto surpreendente quando comparados, os dados encontrados, com os respectivos padroes árabes, inclusive atuais.

  1. Com referência às artes, então, e concretamente à Poesia, a autoridade maior de Menéndez Pidal [6] afirma: "A Renascença espanhola considera a Poesia dividida em natural (popular: feita pelo povo) e de arte (feita de acordo com preceitos e artifícios de escola)". Esclarecendo a seguir que a natural consiste em "obras de jograis que não escreviam como os de agora, para a posteridade e para a fama, senão para o povo, para o aplauso do momento e para ganhar o pão".

Ora, da poesia "de arte" renascentista, mencionada por Pidal, acreditamos que num prazo mais ou menos dilatado tenha sido finalmente importada a métrica decassílaba, que a poesia sertaneja usa como um requinte precisamente nos MARTELOS dos desafios. Pois em verdade, o decassílabo foi a inovação máxima da versificação renascentista ibérica e teve um destaque e difusão de fazer empalidecer todas as restantes métricas.

Em aspectos outros, não vemos mais elementos renascentistas podendo ter afetado a poesia do sertão. O outro tipo de poesia – a “natural” – veio, evidentemente, com os primeiros colonizadores. Era justamente a que estava na boca e no coração do povo. Mas ela, apesar de coetânea da Renascença, representava, obviamente, uma prolongação medieval, tanto em espírito quanto em técnica.

  1. A principal característica da poesia natural trazida para o Brasil é, sem dúvida, a arte da improvisação poética, do repentizar. Arte que, com não menor brilhantismo dá-se também na Espanha, em Portugal, na Itália e em vários dos países da América do Sul oriundos das culturas mencionadas, em primeiro lugar: Brasil, Argentina e Uruguai, notadamente. Ou seja, em raças que tiveram um longo e íntimo contato com a cultura árabe ou que delas descendem.

Não queremos dizer, com isto, que em países outros não seja encontrada a faculdade ou a prática de improvisar, mas é numa percentagem e num nível artístico que nem se compara.

Rousseau, no seu Dicionário da Música, diz: "Nada mais comum na Itália que ver, durante o Carnaval, duas máscaras que se encontram, se desafiam e se atacam mutuamente em verso e dão-de-resposta, estrofe por estrofe, usando a mesma toada, com tal vivacidade no diálogo, na melodia e no acompanhamento que, quem não os tenha visto pessoalmente, dificilmente o poderá imaginar."

Alguns ciganos da Espanha ganham ainda hoje o seu sustento, improvisando cantilenas em concorrência com outros, sobre temas que lhes são propostos pelos fregueses de uma taverna.

Metastásio, o grande libretista de ópera italiana, que viveu a maior parte da sua vida em Viena, tinha a faculdade de improvisar já com 5 anos de idade. Mas depois abandonou esta prática porque abalava sua saúde e por achá-la "ruinosa para a faculdade poética, pelas negligências e disparates a que vão-se habituando os seus cultores”

  1. A titulo de curiosidade, apresentaremos a seguir umas amostras do estilo de repentizar dos "payadores" do Rio de la Plata. Chamam-se com este nome os rapsodos populares que, como os nossos violeiros e cantadores, improvisam versos acompanhados de uma guitarra e cultivando também o desafio poético que eles chamam de "la topada". Vamos transcrever alguns versos tirados de uma edição "de cordel" feita em Buenos Aires (1888). A impressão tem formato pequeno, idêntico ao das nossas edições no gênero e até apresentam na capa, o costumeiro gravado xilográfico.

Diz um dos payadores, na narrativa com que se apresenta ao outro:

Temprano llegué a sufrir

las corcobas de la suerte

mas era muchacho fuerte

y las pude resistir.

Pero cuando vi morir

a mi madre entre mis brazos

Pucha! se me hizo pedazos

le asiguro el corazón

Y era tanta mi aflicción

que pensé partirme hachazos.

 

Salí cual gallo atorao

que otro le clava la púa

y me tomé una mamúa

que me tentó por mal lao.

Estaba un gringo afanao calentándose el garguero

y con un facón de acero acercándome quietito

para reirme un ratito

voy y le pincho el trasero.

Cedo eu vim para sofrer

os corcovos da fortuna

mas ele era um garoto forte

e deu para resistir.

Mas na hora vi morrer

minha mãe entre meus braços

Puxa! Quebrou-me em pedaços

Pode crer meu coração

E era tal minha aflição

que quis partir-me a machadas.

 

Eu saí como um galo doido

que outro lhe crava a espora

e fui tomar um pileque

que tentou meu lado mau.

Estava um gringo ocupado

Em esquentar sua goela

e eu, com facão de aço,

me aproximando matreiro

para me rir um pedaço

vou e furo-lhe o traseiro

 

O outro payador inicia sua apresentação assim:

 

Nací por San Nicolás

ansí que soy arroyero.

Puesos pagos no hay agujero

que me sorprienda jamás.

Mi padre era capataz

de una estancia que allí habia

y tenía pulpería

adonde me madre estava.

Pero cuanto se ganaba

en jugadas lo perdía

Nasci no dia de São Nicolau

e sou portanto "arroyero".

Por aqui não tem buraco

que me surpreenda jamais.

Meu pai era capataz

 de uma fazenda de lá

e possuía um açougue

onde minha mãe ficava.

Porém tudo que ganhava

na jogatina o perdia.

 

 

 

Vejamos a seguir algumas quartetas do início de um desafio propriamente dito:

 

González

 

Vengaseme cuando quiera

que no ha de ganar pa susto

y crea que tengo gusto

en darle la delantera

 

Robles

 

Siempre he sido aprovechao

cuando lo he podido ser,

si es güeno vamos ą ver

como se saca el bocado.

González

 

Venha prá mim quando quero

que não há de ganhar pro susto

e acredite que me agrada

botá-lo na dianteira.

 

Robles

 

Sempre sei tirar proveito

quando me deixam tirá-lo;

se você é bom vamos ver

como escapa do bocado.

 

Mais adiante vêm as adivinhações que um propôs ao outro:

 

González

 

Güeno amigazo don Lion

digame con daridad

Que es el infiemo y onde está?

Hágame una relación.

 

Robles

 

No es cosa que mucho cueste

ni que mi haga titubear:

Quien pucha puede pensar

que haya mas infierno que este?

González

 

Bom amigo dom Leão

me diga com clareza

o que é o inferno e onde está?

Faça-me uma relação.

 

Robles

 

Responder não custa a mim

e falo sem titubear:

quem, puxa, pode pensar

outro inferno que o daqui?

 

  1. Por detalhes ainda hoje perceptíveis, poder-se-iam presumir duas diretrizes estéticas a caracterizar a poesia natural introduzida no sertão: uma, envolvendo métricas leves e curtas, de pé quebrado, etc. (ao redor da temática da Pastorela medieval, possivelmente) tão típica dos séculos XIV e XV peninsulares como familiar à cantoria do sertão, ainda hoje. Outra, versificando heptassílabos, prenunciando o posterior Romanceiro.

Efetivamente, diz-nos ainda Pidal [7], que é no seio da Poesia natural que aparecem os primeiros romances que "costumavam ser cantados, os rapsodos acompanhados de um alaúde ou viola (vihuela)".

Uma clara continuação, portanto – a poética sertaneja –, dessa poesia natural de longa tradição arábico-ibérica, incluindo na mesma o repentizar, o louvar, o desafiar, etc., opinião a favor da qual poderíamos reportar duas evidências:

  • Nos Açores, onde por causa de sua condição insular (como em Maiorca e como no sertão, por motivos equivalentes) as tradições tiveram condições de se preservarem por mais tempo e com maior pureza, ainda hoje os romances heroicos mantêm seu nome de aravias, gênero da primitiva poesia portuguesa que era recitado com acompanhamento instrumental. Aravias que, no próprio Portugal, reconhece-se que deram origem ao Romance popular.
  • O canto narrativo, mais recitado do que cantado, é denominado entre os árabes de lingui-lingui: a lenga-lenga na gíria dos cantadores.

 

  • Os Sefarditas
  1. Não tem sido avaliado (e uma pesquisa neste sentido seria interessante) o quanto pode ter de semita o sertanejo. Não somente pelo que ele teria de árabe, como também pelo que poderá ter de judeu – o outro tronco da mesma raça – e concretamente de sefardita (ou sefardim), a comunidade judia expulsa da Espanha na hora exata do descobrimento da América.

Traços judeus na racialidade das populações sertanejas são um pressentimento nosso de longa data, motivado pela observação de características etnográficas, de temperamento e de hábitos. Ultimamente, então, certa pesquisa histórica, recentemente publicada e à qual iremos nos referir em seguida, veio reforçar nossas suposições com elementos que julgamos concretos e pertinentes. Vamos, pois abrir um parêntese para considerar esta questão, apreciando de que maneira a mesma poderia contribuir para esclarecer a implantação de características de vida árabe, no sertão, mesmo porque os sefarditas partilhavam e se identificavam com a cultura e os hábitos dos muçulmanos muito mais do que os próprios cristãos peninsulares.

  1. A expedição que deveria descobrir a América zarpou de Palos no dia 3 de agosto de 1492. Na meia-noite anterior vencido o prazo que os reis católicos deram aos judeus para abandonarem o território espanhol, sob pena de morte para os que os desobedecessem.

Colombo, contrariando o hábito marinheiro em uso de permitir o embarque da tripulação nos últimos momentos anteriores ao levante dos ferros, exige de todos seus tripulantes estarem a bordo antes das 21 horas do dia 2.

Por outro lado, o projeto da expedição, que por duas vezes fora rechaçado pelo casal real espanhol, havia sido finalmente aceito depois que "marranos" (judeus conversos) ricos e influentes o recomendaram e se ofereceram para financiá-la .

Estes são dois importantes fatos históricos, documenta dos pelo moderno historiador judeu Wiesenthal – o autor da pesquisa à qual antes nos referimos – tendentes a demonstrar que o descobrimento da América, mais do que um arrojado gesto de aventura, foi um plano secreto dos judeus, objetivando encontrar terras novas onde se refugiassem.

Vamos coordenar, a seguir, alguns textos extraídos do livro de Wiesenthal – La voile del'espoir – resumindo aspectos da tese deste historiador tocantes àquilo que interessa aos objetivos de nossas próprias pesquisas.

  1. Os judeus instalaram-se na Península Ibérica alguns séculos antes de Cristo, provavelmente acompanhando os fenícios. Após a invasão dos árabes, Granada e Tarragona já eram até apelidadas de "cidades judaicas" pelos historiadores árabes do Séc. IX, tempos nos quais tanto os judeus quanto os cristãos que habitavam nos reinos mouros, gozavam de inteira liberdade religiosa e possuíam sua própria jurisprudência. A Espanha muçulmana, aliás, chegou a acumular a maior população judaica da Europa.

Tanto durante as lutas dos califados entre si quanto nas dos reinos cristãos contra reinos árabes, os judeus permaneceram em ambos os territórios, desempenhando um papel de intermediários e fazendo conhecer aos cristãos muitos aspectos da civilização islâmica.

Nos reinos cristãos, porém, os sefarditas eram obrigados a viver segregados, para evitar que uma convivência mais cerrada pudesse induzir os cristãos a conversões religiosas.

Viviam em bairros independentes, chamados de alhamas, constituindo um grupo étnico e religioso fechado, que se distinguia do resto da população. Salvo circunstâncias um tanto excepcionais – como a peste que flagelou toda a Europa, em fins do Séc. XIV, ocasião em que os judeus foram acusados de provocá-la resultando em verdadeiros progroms em muitas cidades do continente e também na Espanha – os judeus não eram, oficialmente, perseguidos nem trancados em seus guetos. Vez por outra era desfechada contra eles uma campanha mais ou menos violenta, de caráter religioso, com prédicas e panfletos. Mas, os soberanos preferiam proteger a integridade dos sefarditas, em troca, naturalmente, de vultosos tributos e empréstimos interesseiros.

Este estado de incerteza e as pressões, cada vez maiores, para que os judeus aceitassem o batismo, fizeram alguns serfarditas se converterem, pelo menos aparentemente. Em realidade, a maioria conservava-se fiel ao judaísmo, mesmo depois de batizada. Aliás, todo mundo sabia que, de fato, muitos continuavam a praticar secretamente sua antiga religião. E precisamente por isso eram apelidados de marranos (porcos), nome que acabou se tornando sinônimo de converso.

  1. Em 1478, quatorze anos antes da primeira viagem de Colombo, um conflito religioso envolvendo marranos, dá o pretexto para os reis católicos solicitarem do Papa a instauração da Inquisição na Espanha. Começa então um terrível período no qual muitos judeus são levados à fogueira enquanto outros fogem e outros ainda se convertem, muito embora estas conversões, como já dissemos, fossem olhadas sempre com total desconfiança. Nos altos escalões da vida espanhola continua a existir, porém, um clã de marranos que pela sua riqueza e seu prestígio, goza do favor real. E é de lá que vem o dinheiro para fretar as naus colombianas, como também é de lá que são feitas as pressões maiores sobre Isabel e Fernando, os quais, apesar de já se terem negado, por duas vezes, a encampar o projeto de Colombo, acabam autorizando a viagem à procura das "Indias Ocidentais”.

Wiesenthal documenta bastante convincentemente sua teoria de que Colombo era, em verdade, um marrano – de Maiorca, possivelmente –, judeu disfarçado e que sua missão foi realmente a de procurar terras onde os sefarditas pudessem se livrar da perseguição e da morte, onde, quiçá também, poderiam ser encontradas as tribos perdidas de Israel ou algum distante reino judeu ignorado, como certos teóricos judeus acreditavam que existisse.

  1. Contudo, cientes ou não das intenções dos marranos e do Navegante, os reis católicos pensavam diferente. Nas "Índias Ocidentais", logo após a emigração começar, ficaram proibidos de se instalarem, não apenas os judeus, como também os conversos ou descendentes dos mesmos que, uma só vez que fosse, tivessem sido chamados a depor diante de um Tribunal de Inquisição, mesmo se inocentados, na ocasião.

Somente era feita alguma exceção no caso de as famílias marranas pagarem altas somas à Coroa para serem poupadas desta sanção, em cujo caso podiam emigrar. Logicamente, muitas pagaram, como provam documentos encontrados a este respeito.

  1. Portugal expulsou também seus judeus, quatro anos depois da Espanha, e pressionado por esta. Repetiram-se, lá, idênticos fatos com referências aos judeus e marranos. A fuga de sefarditas – principalmente para a América do Sul, do Centro e do Norte – foi uma constante entre os judeus, conversos ou não, a partir de então. Certamente que, em parte, como diz Wiesenthal:

as esperanças que judeus e marranos tinham posto na viagem de Colombo não se realizaram. O grande navegador não descobriu nem reinos, nem principados, nem países judeus. Até o fim de sua vida, Colombo acreditou ter desembarcado nas Índias, em ilhas situadas ao longo do continente hindu. Todavia, ele abriu um mundo novo. Um mundo novo para perseguidos, um local para onde afluíram, durante séculos, judeus e marranos, malgrado todas as proibições impostas pelos Reis Católicos e pelos soberanos portugueses. A liberdade que esperavam encontrar nesse novo mundo levou-os a assumirem todos os riscos. Queriam libertar-se da velha Europa, dessa velha Europa que nada lhes dera, a não ser acusações, o martírio e a morte. Nesses novos países, esperavam começar uma vida nova e criar para seus filhos um mundo diferente daquele que conheciam.

  1. Ora, é evidente que, para aqueles fugitivos, o interesse maior era escapar da "questão judaica". Partir para onde ela não existisse. Todavia, aquela questão costumava viajar com eles. Bastava uma comunidade judia estabelecer-se num lugar para a "questão judaica" aparecer, fenômeno que concederia toda verossimilhança à possibilidade de os sefarditas que vieram para o Brasil terem preferido se internar em regiões afastadas e um tanto difíceis e a não ficar na costa brasileira, mais expostos à direta autoridade portuguesa, atitude justificada, pois algumas cidades costeiras do nosso país – como também em muitos centros importantes das colônias americanas, em geral – fogueiras para queimar judeus iriam se acender sem demora.
  2. Existe, de fato, e precisamente no alto sertão, um tipo bastante comum de sertanejo alvo, de rosto anguloso, olhos claros e nariz robusto, cujas características, de um modo geral, correspondem mais ao tipo judeu do que ao padrão celta ou português médio. Não somos conhecedores do sertão a ponto de afirmar – ou negar – se lá perdura qualquer tradição religiosa judaica mais ou menos aparente; aliás, qual seria a motivação da "estrela de Davi" nos chapéus dos cangaceiros? No entanto, levando em conta que os que para lá foram teriam sido conversos – não muito fanáticos em sua fé – e considerando, de um lado, as tremendas perseguições e sofrimentos vividos por causa do seu credo e de outro, vários séculos de luta posteriormente travada com a difícil natureza sertaneja, não teria realmente muita significação o fato de hoje não serem encontradas, no aspecto religioso, relíquias do judaísmo.
  3. Poderiam, todavia, serem pesquisadas outras características: alimentares, de comportamento (é famoso o espírito de economia do fazendeiro sertanejo, mais amante de dinheiro do que das comodidades que o mesmo pode proporcionar), de linguajar (os sefarditas que fugiram para Oriente próximo, por exemplo, ainda hoje falam o judeu-espanhol, sua particular língua espanhola arcaica). Poderia, quem sabe, ser contabilizada a favor do "ethos" sefardita, tanto a medular religiosidade quanto o estrito senso de moralidade que, no que ao sexo se refere – observa Câmara Cascudo – não deixa transparecer qualquer licenciosidade na poesia popular.

Como antes sugerimos em relação aos virtuais renascentes árabes (e talvez com maiores possibilidades de sucesso) poder-se-ia procurar a identificação de elementos de origem judaica aculturados no sertão. E no caso de serem encontrados em termos suficientemente expressivos, haveria de se suspeitar imediatamente, que também muitos dos remanescentes árabes poderiam ser atribuídos aos sefarditas. Isto pela penetração cultural e pela identificação racial muito maior entre os ismaelistas e israelitas medievais do que entre os árabes e os restantes ibéricos do mesmo período

  1. Estamos a sugerir hipóteses que julgamos providas de suficiente fundamentos para serem consideradas e exploradas, se houver interesse em fazê-lo. Aliás, será conveniente insistir aqui em dizer que nem de longe somos especialistas em vida sertaneja. Nossa intenção, no presente trabalho, visa principalmente dar informações de fora para dentro; reportar fatores alienígenas que nos parecem ter influído para moldar as notáveis características do sertão nordestino, cujas manifestações poético-musicais, pelo raro e cativante contraste que oferecem com o mundo de hoje, nos interessam particularmente.

Também não estamos pretendendo nem teríamos condições para tanto, concretizar afirmações absolutas. Incentiva-nos, apenas, pensarmos estar dizendo algo relativamente novo em conjunto, que poderia ser base de futuras e muito mais autorizadas indagações.

  • O Barroco
  1. A presença abundante, em território nordestino, de belas e importantes obras arquitetônicas, escultóricas e pictóricas do período barroco – especialmente igrejas e obras de arte dependentes – tem feito supor que a influência barroca devia encontrar-se também presente, em grau não menor, na arte poético-musical do sertão nordestino, em tantos conceitos tão desenvolvida, rica, surpreendente até, naquele meio geográfico.

Todavia, com esta suposição, deixa-se de levar na devida conta os dois planos socioculturais, completamente diferentes, dos quais depende a arquitetura com suas artes afins, por um lado, e o folclore poético-musical, por outro. Efetivamente, as igrejas foram projetadas, financiadas e fiscalizadas por Ordens religiosas cuja sede estava na outra borda do Atlântico. Consequentemente, a arquitetura frutificou no Brasil perfeitamente atualizada sob o ponto de vista da evolução estilística europeia, limitando-se a padronizar preferências por determinadas variantes ou, às vezes, a providenciar pequenas adaptações de tipo ecológico.

  1. O folclore poético-musical, pelo contrário, tem por natureza ser marcadamente regional, não se comprometendo com os estilos que acontecem nas abastadas esferas da Cultura. Mais do que isso: costuma ser avesso às inovações. Daí ser preciso muito tempo e a concorrência maciça de outros fatores suplantantes, para que um acervo folclórico comece a perder vigência no gosto das gentes simples. A persistência em nossos dias, ao lado dos fabulosos meios de divulgação atuais, de um público fiel à literatura de cordel e assistente às rodas públicas dos violeiros – não somente no Recife, como também no Rio e São Paulo, perto dos grandes cinemas e dos televisores funcionando nas vitrinas comerciais – é prova eloquente do que estamos afirmando.

Consequentemente, não nos parece válido, apenas com base na evidente influência barroca sobre as artes plásticas e a arquitetura, concluir afirmando que a mesma tem que ter marcado também o folclore literário-musical. Um fato não pressupõe o outro. Os planos não se interferem.

  1. Analisando preferencialmente aspectos da Poesia sertaneja – visto que a música, apesar de suas interessantes peculiaridades, perde de longe para esta, em volume e polifacetismo – até que pareceria correta uma referência ao barroco, envolvendo a suposição de influências vindas da península, mais cedo ou mais tarde (fazemos aqui a mesma ressalva que fizemos com referência aos decassílabos renascentistas: não há que esquecer a lentidão habitual, tão notável, às vezes, no tráfego das influências artísticas da península para cá; para o sertão particularmente).

Afinal, naquele período inclui-se o grande Século d'Ouro da literatura hispana; e é precisamente no Séc. XVII quando o Romanceiro castelhano se irradia com mais força expansiva sobre as literaturas neolatinas fronteiriças: a catalã e a portuguesa, principalmente.

  1. Por outro lado, contar-se-ia com agentes ideais que seriam os portadores das novidades literárias peninsulares às regiões sertanejas, ou sejam os padres e as Missões religiosas em geral. Efetivamente os religiosos deviam ver com bons olhos o amor daquela gente rude pela poesia, admirando-se até do notável grau de desenvolvimento em que a praticavam. Representava também uma magnifica base de entendimento e comunicação com as freguesias. Daí ser mais do que possível um real interesse por parte da Igreja em intervir, orientando, no fervilhante ambiente da poesia popular, em contribuir para ampliar conhecimentos e difundir novidades, novidades que seriam prazerosas e facilmente assimiladas pelos cantores, sobretudo naqueles aspectos que não ultrapassassem os padrões comunitários de conhecimento, que não fizessem sua poesia sair dos limites – em termos de cultura e vivências – dentro dos quais ela fazia sentido.
  2. Nesta perspectiva – consideradas também a temática e as técnicas de versificação encontráveis hoje - acharíamos justificável atribuir à época do barroco dois legados
  • O gosto que fez evoluir a habitual estrofe de 4 própria dos velhos arcabouços métricos, para as estrofes de 5 até 10 versos
  • a adoção do molde heptassílabo e assoante do Romanceiro, que veio remodelar os temas épicos e heroicos medievais, temas, por outro lado, muitos dos quais nem representavam novidades em relação ao tradicional lendário dos cantadores. Pelo menos em espírito.

Não achamos, assim, que o período barroco tenha sido responsável por qualquer mudança profunda, nos aspectos que nos ocupam. Incentivou-se uma certa evolução nos arcabouços e nas formas, mas tudo aconteceu dentro de um inalterado clima estético e espiritual em que continuou idêntica a si mesma, à tradição poético-popular medieval: espontânea, agressiva, engenhosa, transbordante, tagarela, que um dia cristalizara solidamente em terras ibéricas sob domínio árabe

  1. Referente aos aspectos musicais do Barroco, haveria talvez quem invocasse virtuais paralelismos com o falado barroco musical mineiro, permitindo imaginar um fenômeno comparável, na área sertaneja. Tocante a estes aspectos, nós submeteríamos à consideração os seguintes argumentos:
  • O grande fluxo inicial de colonização do sertão teve lugar no período da Renascença – a Capitania de Pernambuco sendo uma das mais desenvolvidas, na época – e o que esse fluxo acarretou já foi comentado há pouco. Depois do primeiro embate, aconteceram no território sertanejo sucessivos deslocamentos de grupos humanos, acomodações motivadas água e pastagens; mas não parece ter havido novas ondas migratórias apreciáveis. O afastamento da costa, a natureza brava, os periódicos flagelos do sertão pouco haveriam de contribuir para atrair novas levas, apesar do fascínio que, dizia-se, exercia sobre os seus habitantes – comparável com o que os árabes sentem pelo deserto, aliás – e o sertão fechou-se em si mesmo.
  • No triângulo mineiro, pelo contrário, as Bandeiras colonizadoras conheceram sua hora maior no período coevo ao Barroco, E o clima daquelas terras, muito mais ameno e parecido ao do velho mundo, tornou possível, lá, um tipo de desenvolvimento cultural propicio à implantação de modas e gostos até certo ponto refinados, europeus. Os cravos e os órgãos que foram importados com destino às mansões e às Igrejas das ricas cidades mineiras não teriam condições de resistir ao clima do sertão. A música barroca, para penetrar e radicar em Minas, dispôs de possibilidades históricas e climáticas com que não contou o Nordeste.
  1. Mas, por outro lado, será que se pode falar num "barroco mineiro""? Também lá, parece, a presença de uma bela arquitetura barroca e das extremosas figuras do Aleijadinho convidam a tirar paralelos com a Música, quando, na realidade, uma análise mais profunda faria esses paralelos se embaralharem.

Ninguém nega – está lá, para ser apreciada – uma extensa e notável produção de composições dos musicistas mineiros daquela hora histórica. O problema, no entanto, seria: estas produções, podem realmente ser consideradas "barrocas"? Pois é neste particular que as evidências se obscurecem.

  1. As produções musicais mineiras não encaixam nos moldes propriamente barrocos. O que fica explicado, aliás, tão logo é consultada a história da Música no próprio Portugal. Pois em verdade, tão pouco na Pátria-mãe a música barroca enraizou nem foi cultivada apreciavelmente.

Na mudança de hábitos da Idade Média para os da Renascença na época de João I (1385-1433), a música na Corte deste rei esteve, como não podia deixar de ser, totalmente influenciada pela tradição arábica: música rica em instrumentos, entre os quais se destacam, além do alaúde e a guitarra, a harpa, o "arrabit" (rubeba), a rabeca, o "anafil" (trombeta reta dos árabes) e a charamela.

Até que ponto se enraizou e perdurou o cultivo do canto acompanhado pela guitarra (ou pelo alaúde, a viola de mão, etc.) testemunha-o Filipe de Carverel, Secretário da Embaixa- da que, depois da derrota sofrida pelo rei Sebastião (1554- 1579) diante do Rei de Fez e do Marrocos, escreve um informe no qual consta que "foram encontradas no campo de batalha perto de 10.000 guiteres", número que ainda que possa pecar por exagero, expressa um eloquente fato real.

E mesmo em pleno período das descobertas territoriais (Brasil, Índia, etc.) com Dom Manuel (1495-1521), é o padrão árabe de poesia-música que impera nas Cortes, intensamente cultivado não só por profissionais, como também por nobres e poetas e, em padrões mais simples e ingênuos, pelo povo em geral: música de todos os dias e para qualquer ocasião, com a rabeca imperando [8].

  1. Quando, pelo casamento de Juana, filha dos reis católicos, instaura-se na Espanha a dinastia dos Habsburgos, Felipe l e Carlos V, monarcas de cunho plenamente europeu, tratam de europeizar os espanhóis apagando dentro do possível as pegadas muçulmanas que faziam lembrar séculos de dominação exercida por uma raça em fase decadente e olhada com desprezo, naquelas horas.

Sob este prisma é que devem ser interpretados, creio, os esforços daqueles monarcas em deslocar para a Corte espanhola inclusive maestros flamengos e musicistas da talha de Agrícola e de Nicolás Gombert, o mais famoso discípulo de Joaquim des Prés.

Carlos V, aliás, trouxe para Madri sua Capela Sacra de Cantores de Flandres inteira, muito embora preferisse espanhóis para constituir seu corpo de ministriles e de instrumentistas de Banda – mais uma prova da reconhecida superioridade dos instrumentistas ibéricos, saídos da tradição sarracena.

Os gostos musicais de Espanha e Portugal, por outro lado, se já eram bem parecidos na Idade Média, passam a identificar-se neste período como consequência da dominação espanhola e da penetração, também em Portugal, da dinastia dos Habsburgo. Eleanor, rainha de Portugal e irmã de Carlos V compartilhava com este monarca um entranhável gosto pela polifonia flamenga, além do que, quando o próprio Carlos V casa com Isabel de Portugal, esta rainha leva para Madri sua Capela Musical particular.

  1. Em contrapartida, como acontece amiúde com estes choques culturais provocados por guerras e estratégias dinásticas, os vencidos acabam influenciando os vencedores. Assim vemos que o antes mencionado Gombert começa usar instrumentos em grande número para acompanhar sua música vocal, até então interpretada exclusivamente à Capella. E o monumental contraponto dos flamengos vai-se esvaziando, suplantado pelo crescente interesse suscitado por um etilo musical mais simples e atrativo cujo modelo estava na Península, nas singelas melodias populares acompanhadas por "vihuelas" e guitarras, remanescentes da tradição poético-musical dos árabes e já perfeitamente integrada aos hábitos culturais dos povos ibéricos.

De fato e em seus variados aspectos, a música instrumental peninsular exerceu uma influência decisiva sobre os países da Europa, constituindo-se em toque de partida para o desenvolvimento que, nestes países, passaria a ter a arte musical dos séculos subsequentes.

  1. Contudo, a presença da dinastia austríaca no trono de Portugal, auspiciou um desenvolvimento da música polifônico-vocal, neste país, que permite, hoje, falar-se até de um estilo especificamente luso. Entrando o Séc. XVII, porém, quando por toda a Europa eclode a polifonia instrumental, característica do Barroco, o ambiente musical dos portugueses é, mais do que invadido, devorado pela Opera italiana, com seu melodismo fácil, sua dramaticidade exuberante e sua preferência pela pirueta vocal.

Os aspectos instrumentais e formais do Barroco – os mais representativos – não tiveram praticamente vez, entre os portugueses. Mal haveriam, então, de ser exportados às terras mineiras, motivo que nos explica o fato de os esforçados pesquisadores musicais da atualidade, ao lado da farta produção de música sacra-coral, não terem encontrado, no interior de Minas, nenhum "Concerto grosso" ou "Sonata a tre", ou Suíte para instrumentos, composições tão frequentes e abundantes, no barroco europeu.

A moda portuguesa do "bel canto" haveria, pelo contrário, de dar depois de passar os trópicos quentes e devidamente acompassada pelos perfumados leques, na "modinha" brasileira.

  1. Voltando à música sertaneja do mesmo período, faltar-nos-ia acrescentar, finalmente, que a maior demonstração de que esta música nordestina nada tem de barroco é que ela, em suas expressões mais genuínas, menos deturpadas ou aviltadas pelo tempo e o mau gosto de alguns, revela ser "modal", isto é, as melodias apresentando características arcaicas regidas ainda pelos chamados "modos musicais", sistema anterior ao da moderna tonalidade bimodal que irrompeu, precisamente, no início do período barroco e que, sem sombra de dúvida, foi a principal característica técnico-musical do referido período; tonalidade triunfante, que passaria a estruturar, do barroco em diante, toda a ingente produção musical dos Clássicos e subsequentes, até as primeiras décadas de nosso século, quando começam as experiências atonais e vanguardistas em geral.
  2. Em verdade, na época do Barroco a música do sertão já tinha definida inabalavelmente sua personalidade, que era a mesma que podemos apreciar ainda hoje, a mesma que foi introduzida no sertão formando parte das vivencias básicas de imigrantes sem sofisticações, em cuja terra de origem já a vinham praticando por tradição imemorial. Aqui chegando, mais nada passaria a absorver da irrequieta evolução estilística da Europa. Nem de Portugal, em particular, onde do Séc. XVII em diante, nos ambientes da corte e nos palácios, somente se dança; não se encontrando, nos documentos lusos da época, qualquer nova referência a atividades musicais ligadas à poesia ou à canção popular. A tradição dos versos semi-recitados ou cantados, de origem arábico-ibérica, tinha-se perdido completamente, nos meios cultos de Portugal. E nos meios populares sofria as transformações provocadas por sucessivas ondas e modas inovadoras.

Pulsava agora, porém, inteira e atuante, em terras longínquas, quase esquecidas, preservada pela sua áspera geografia, no seio das comunidades rudes e cordiais do sertão brasileiro nordestino.

[1] Origine dell’epopea francese

[2] “España y el Islam” – Revista de Occidente

[3] “Historia General de la Música”, vol. 1. Ediciones Itsmo.

[4] “Casa Grande e Senzala” Ed José Olympo.

[5] Revue “Pianéte”

[6] “Poesía árabe y poesia europea” Col. Austral – Espasa - Calpe

[7] Obra citada

[8] Resulta curioso que o nome “rabeca” (não “rebec”) com o qual designa-se até hoje o violiono rústico em Portugal, seja encontrado em terras lusas mais de um século antes de, na Itália, aparecer o violino.

5 A MÚSICA E OS INTRUMENTOS DA TRADIÇÃO

  1. Até aqui traçamos uma panorâmica histórica à procura de identificar fontes culturais, bem como o processo de fusão e transplante de alguns dos elementos destas fontes. Vamos agora fazer um cotejo para ver como os preferidos e mentos aparecem na cultura arábica, que julgamos preponderante. E como os mesmos são encontrados, ainda hoje, na -tradição poético-musical sertaneja, numa supervivência que pode até parecer inacreditável.

Começaremos com uma análise objetiva da música, muito embora não possamos, no seu estudo, deixar de levar em conta os fatores poéticos, tão intimamente amalgamados.

  • A Música
  1. Importantes diferenças – convém esclarecer de entrada – caracterizam a música praticada, ao longo da Idade Média e no início da Renascença, pela Europa cristianizada, por um lado, e pelo Islã por outro (seja nas terras originárias dos muçulmanos, seja na Península Ibérica). Diferenças que radicam essencialmente nos opostos conceitos de vida – religiões incluídas – dos árabes em relação aos cristãos.

Os muçulmanos eram um povo aberto à sensualidade – não condenada pelo seu credo – e aos aspectos materiais e prazerosos da vida. Além do que, o domínio político conquistado lhes permitia realizar suas vontades.

Daí o hábito de usar a música para exaltar as emoções e não como foi o ideal dos antigos gregos, para disciplinar e dominar as mesmas. Daí encomendar boa parte da atividade musical (atribuída aos homens, na maioria dos povos, à mu- Iher, a "gainat" antes comentada). E daí também o gosto pela música instrumental, ritmada por percussões e propícia para a dança, assim como pelo canto individual, solístico ou coletivo, empregado apenas para responder e animar com breves estribilhos, ao unissono, o recitado-cantado do solista.

  1. A Cristandade, pelo contrário, considerava a música um agente excitante do corpo e provocador de paixões a perturbar o relacionamento contemplativo e obediente que a criatura deve manter sempre com Deus. Apenas o canto coletivo, elevando à divinidade palavras de fé, salva-se da condenação.

Os instrumentos, particularmente vistos como perturbadores do recolhimento espiritual, tiveram o seu uso frequentemente proibido pela Igreja.

Diante deste posicionamento, não é de estranhar que a música medieval europeia fosse quase que exclusivamente vocal e coletiva, característica que, por outra parte, veio provocar a esplêndida eclosão e evolução da música sacra do Ocidente.

  1. Consequência deste estado de coisas, entre os séculos X e XV, na confluência que a Península Ibérica significava para o lslamismo e o Cristianismo, admira a abundância e riqueza dos instrumentos sarracenos, destinados à música para o prazer e a diversão, em confronto com a pobreza e primitivismo dos encontrados entre os cristãos, entregues por inteiro à música vocal, destinada ao culto e ao espírito religioso idealizado pela lgreja.
  2. A música dos árabes integra elementos muito heterogêneos que, de um modo natural, arregimentam-se em dois grandes grupos:
  3. Um grupo de elementos de origem cultural alienígena.
  4. Um grupo de elementos autenticamente raciais.

Vamos considerá-los separadamente.

5.1.1 Os elementos alienígenas

  1. Os nômades beduínos, de cultura rudimentar, mas ávidos por apreender, no decurso da fabulosa expansão que os levou a dominar parte do continente asiático, o norte da África e o Sul da Europa, assimilaram intensa e rapidamente os refinamentos culturais das terras ocupadas. Os elementos musicais forâneos, concretamente, foram incorporados em sua maior parte após a conquista de Damasco (Séc. VII), cidade na qual por longos séculos tinham confluído as culturas helênica e persa. Da primeira, os árabes copiaram e arredondaram a teoria musical, com seu sistema de escalas, de "modos", etc... Da segunda ganharam um crescente gosto pelos instrumentos. Efetivamente, do Séc. X em diante, a prática instrumental muçulmana emparelha sua importância com a do canto.
  2. Foram as conquistas guerreiras, portanto e curiosamente, as que vieram erigir os árabes em preservadores de uma tradição musical que, desde 2.000 anos a.C., proveniente da Índia e da Mesopotâmia, passando pela Pérsia e Grécia, vinha estruturando um sólido sistema de técnica musical, que viria depois desembocar no nosso. Os árabes, porém, pouca coisa acrescentaram ao referido sistema, seu mérito maior tendo sido o de preservá-lo e entregá-lo finalmente ao Ocidente.

Alguns dos legados muçulmanos feitos à Europa renascentista já foram oportunamente comentados. Insistiremos apenas em destacar aqui:

  • Uma evoluída prática instrumental e uma variedade esplêndida de instrumentos, entre os quais se destacam, em lugar honorífico, as famílias de arco, originadas a partir do "rabab" árabe.
  • Um grande acervo de canções e danças, entre populares e palacianas – beneficiadas pelos conhecimentos técnico-musicais-instrumentais dos árabes – a refletir a mistura de influências raciais e culturais que caracterizou o caldeirão ibérico-medieval.
  1. Canções e danças, as acima mencionadas, integrando o repertório da arte jogralesca que as divulgava entre o povo, carente de maiores diversões, e que os imigrantes carregaram para cá. Parcialmente, apenas, pois de fato sua integral transferência teria demandado escolas profissionais especializadas, ambientes sociais compactos e receptivos, o que não era o caso. O afastamento das fontes culturais, a rusticidade e as grandes distâncias da região, a falta de centros populacionais adequados, vieram podar forçosamente aquele folclore precisamente em suas manifestações mais eruditas e estruturadas, deixando apenas as de mais fácil cultivo, Perderam-se certamente – algumas de imediato, outras mais lentamente – a maioria das canções "artísticas", as cativantes melodias das "gainat", os solos instrumentais elaborados. Ficaram praticamente descartados os instrumentos de tecla e, com eles, o meio mais efetivo de conhecer as evoluções que iriam aparecendo em relação à harmonia. Em compensação, a viola, a rabeca e o pífano, fáceis de adquirir e transportar, vieram a tiracolo com os imigrantes; muito embora os aspectos mais requintados da técnica destes instrumentos também ficaram na península
  2. O que não deu, nem poderia dar problema de transporte e aclimação foi a memória das pessoas, seus hábitos solidificados, seu gosto e sua necessidade de exercitar a sensibilidade e o espírito.

Daí os aspectos poéticos terem chegado mais ou menos inteiros, enquanto os aspectos musicais: passariam a ser cultivados em nível bem mais pobre e primário; fariam da prática instrumental apenas um complemento da poética.

Daí também os aspectos essencialmente fônicos da música antiga serem difíceis de se descobrir hoje, no sertão – canções acusadamente melódicas ou antigas danças – quando tão fácil resulta encontrar a velha tradição dos violeiros e rabequeiros.

5.1.2 Os elementos alienígenas

  1. O grupo de elementos musicais autenticamente raciais dos árabes, historicamente documentados e ainda marcantes nos povos muçulmanos de hoje, poderíamos resumi-los no seguinte enunciado de tendências:
  • Um predominante cultivo da música profana em relação à religiosa.
  • A preferência pelos intervalos pequenos, menores até que o semitom – as cantilenas dos beduínos não excediam uma distância de terça menor, dentro da qual, aliás, se distinguiam 6 sons, em distâncias de aproximados quartos de tom, estranhas ao sistema musical ocidental.
  • Um sentido "plangente" - as frases melódicas costumam evoluir por intervalos descendentes, a partir de um som inicial mais agudo.
  • O gosto pelo canto individualizado, empregado o coletivo apenas para responder, com breves estribilhos, ao recitado-cantado do solista.
  • A repetição obstinada de uma fórmula melódica que, empregada para cantar uma primeira estrofe, fica a seguir, quase sem modificações, valendo para o restante e longo texto poético
  • Um apreço muito maior pelos valores do verso que pelos valores propriamente musicais. Razão que explica a rude maneira de cantar dos violeiros; dentro da qual os elementos musicais, mais do que valerem por si mesmos, servem sobretudo para sonorizar o recitado poético e ajudá-lo a chegar aos ouvintes: um sistema de impostação da voz, em suma.
  • Decorrente do anterior, uma absoluta dependência rítmica da música em relação ao verso cantado, o ritmo musical sendo sempre uma consequência da métrica poética e esta por sua vez, baseando-se em dois padrões fundamentais que os velhos beduínos identificavam: um, com o passo do camelo (h’idá); outro, com o trote do cavalo (khabab).

Salta à vista, cremos, a quase total identificação deste quadro de valores com o que corresponderia aos da música dos nossos cantores. Vejamos, senão, o que Câmara Cascudo Informa, em seu livro "Vaqueiros e Cantadores" a respeito da música e da maneira de cantar dos violeiros e reportemos suas informações a alguns itens expostos em nossa análise.

Com referência ao item 2: "Os violeiros-cantadores tinham um ligado típico, dum glissando tão 'preguiça', que Mário (de Andrade) julgou-os empregar o desaparecido quarto de tom – Não era". (Somos obrigados aqui a apartear, esclarecendo que os quartos de tom nunca desapareceram da música arábica nem da oriental, em geral. A afirmação "não era" parece ter sido um engano do ilustre sertanista, em tantos aspectos admirável pela sua lucidez e sensibilidade).

Segue depois o texto do próprio Mário, que diz: "Mas o nordestino possui maneiras expressivas de entoar que não só graduam seccionadamente o semitom por meio do portamento arrastado da voz, como esta, às vezes, se apoia positivamente em emissões cujas vibrações não atingem os graus da escala (grifo nosso).

Ao item 4: "Sentimento musical sertanejo não é elemento que prepondere em su'alma. Um índice é a ausência de música para cada espécie de cantoria. No momento de cantar improvisa-se uma qualquer, por mais inexpressiva que seja, servirá para ritmar o verso". (Gostaríamos de frisar neste ponto que, com base nas experiências dos cantores ouvidos por nós, poderia dizer-se que as improvisações transcorrem sempre num marco de características restritas e repetidas, uma espécie de Maqã tradicional, adotado em suas essências por todos os cantores).

Já no item 5: "O canto do improviso sertanejo se tem pobre o desenho (sic) é porque é um detalhe, uma forma do essencial que é o recitativo, único centro-de-interesse para o auditório". Em outro lugar: "O canto é uma declamação onde a linha musical apenas disfarça o recitativo seco, continuado, solto do motivo melódico, quase sem ligação". O qual justifica esta anterior afirmativa sua: "Curiosamente, é raro o cantador que tem boa voz". Especificando que: "é uma voz dura, hirta, sem maleabilidade, sem floreios, sem suavidade. Cantam soltamente, quase gritando, as veias entumecidas pelo esforço, a face congesta, os olhos fixos para não perder o compasso.

Referente ao item 6: Diz Câmara Cascudo que a concentração do cantor na métrica poética, impede-lhe maiores controles sobre a invenção melódica que desta maneira flui livre, irresponsável, instintiva, embora muitas vezes, resulte primitiva e monótona, acrescentando: "O desenho musical desenvolve-se automaticamente, por impulsão do ritmo poético ou por sua única necessidade declamatória. É um acessório". E mais adiante: "A solfa é obrigada a sujeitar-se às exigências do metro desdobrando-se, adaptando-se, dando de si resultados imprevistos pelo portamento que é típico de cada cantor, subindo em graus infixáveis ou terminando por um processo de nasalação indispensável e, para eles, natural. Todo cantor é fanhoso quando canta".

Finalmente, ainda com referência ao item 6, ocorre-nos que tudo o que teria de surpreendente tem de coerente ao supormos a sobrevivência do h'idá beduíno (ye hedia... ye yada...), nos "ai, d-a dá" das ligeiras, que são cantadas como desafio. Desafio, diálogo contrapontado mais ou menos agressivo, questionário adivinhatório, etc que foram (e são) características marcantes da tradição poético-musical dos árabes em seus aspectos de espetáculo e de relacionamento humano, motivo pelo qual não podemos estranhar que seja precisamente chamado de "mourão" um tipo de cantoria baseada no diálogo.

  1. Tradição arábica, sim, da qual, em países dominados pelos árabes ou limítrofes dos mesmos, haveriam de surgir tantas práticas gêmeas: a "tençó" e os "Jeux partis" provençais, as "desgarradas" e desafios portugueses, os "contrasti" italianos, as palhadas ou "payadas" de vários países hispano-americanos etc.

Tradição dentro da qual, como passa também em relação aos repentistas sertanejos, o respeito às formas poéticas consagradas, a destreza de construir versos e de manejar metros e rimas, chegam a dar uma embriaguez ao poeta que, com frequência, – sobretudo quando se trata de poetas jovens ou medíocres – acaba transformando o conjunto das regras num objetivo em si mesmo, como o álcool para muitos alcoólicos: a criação poética perde então a sua vitalidade e o seu encanto para se converter num apanhado de falsidades e automatismos

A tradição foi exportada pela Península Ibérica, nunca importada. Não faria sentido os territórios hispanos terem importado o que já possuíam abundantemente.

  1. Nesta perspectiva e fazendo apenas uma ressalva, poderíamos concluir estes parágrafos citando o próprio Câmara Cascudo, quando diz: "O que existe no sertão, evidentemente, nos veio pela colonização portuguesa e foi modificado para melhor. Aqui tomou aspectos novos, desdobrou os gêneros poéticos, barbarizou-se, ficando mais áspero, agressivo e viril; mas o fio vinculador é lusitano, peninsular, europeu". ("Árabe", seria o adjetivo certo para substituir a última palavra).
  2. Tão certo, que ainda hoje, no que ao "meios" se refere, estaríamos em condições de definir a música dos cantores sertanejos usando as mesmas palavras com que o Dicionário da Música de Pena-Anglês qualifica o canto dos beduínos, tanto antigos quanto atuais: "... música simples, limitada a umas quantas fórmulas características que costumam ser adotadas de acordo com as exigências métricas do texto. O âmbito destas canções geralmente não ultrapassa o próprio marco temático, que é preferentemente um intervalo de 4a ou de 5a". Ao que poderíamos acrescentar a opinião de J. Rouanett quando diz que a música árabe, a partir do Séc. VIII em que arredonda sua definição, tem por característica "a absoluta ausência da menor evolução. Ela é hoje a mesma que era. Suas particularidades essenciais permanecem as mesmas. Como dantes, esta música é puramente homófona, essencialmente rítmica e fundamenta-se no emprego de intervalos pequenos e no uso dos mesmos instrumentos", o que permite explicar o fato de a música sertaneja, sua enteada, não ter sofrido qualquer evolução em solo brasileiro.
  • Os Instrumentos
  1. Tanto a viola quanto a rabeca são instrumentos do período renascentista peninsular, de longa gestação medieval.

Aliás, em se falando de instrumentos medievais é necessário esclarecer previamente que tanto os numerosos tipos existentes quando a nomenclatura dos mesmos são de uma tal versatilidade e plurivalência, que seria totalmente utópico querer concretizar genealogias precisas. Pode-se, no máximo, tentar estabelecer linhas aproximadas a ilustrar etimologias e origens.

  1. O nome da viola, por exemplo, deriva do termo fidula, latino, diminutivo por sua vez de fides, um antigo tipo de lira greco-romana, de cordas pulsadas. De fidula, por outra parte, derivam também os nomes de grande variedade de instrumentos europeus de cordas; a viola dos trovadores, a vièlle francesa, a vihuela espanhola, a viola portuguesa e italiana. E, ainda, o fiedel alemão e o fiddle inglês. Tudo o que faz é só mencionar nomes, porque na realidade os tipos que podem corresponder aos mesmos são, sobretudo nas etapas iniciais, de uma diversidade notável, devendo-se entender apenas, como denominador comum, um instrumento com caixa de ressonância de variadas formas, provida de cordas tensas a serem exclusivamente pulsadas, seja com dedos seja com puas ou plectros.
  2. A técnica das cordas friccionadas com um arco, oriunda do Oriente, deveria chegar à Europa importada pelos árabes, trazida da Pérsia Importação após a qual, lenta mas, seguramente o som inerente desta técnica viria conquistar a preferência dos ouvidos ocidentais, até o ponto de a família europeia das violas passar a ser tratada também com arcos: violas de gamba (pema), tocadas com apoio na coxa ou mediante um espigão, no chão; violas de braccia (braço), a serem sustentadas pelo braço, encostadas no peito.
  3. Do lado árabe, o instrumento de cordas pulsadas, por excelência, era representado pelo alaúde. Al'úd, em lingua árabe, significa "a madeira" [1] e o nome foi adotado quando um anterior e mais rudimentar instrumento beduíno de cordas pulsadas, feito com meia cabaça e coberto com um couro, passou a ser melhorado e construído em madeira, imitando os aprimorados instrumentos persas. Do modelo primitivo, porém, respeitou-se a feição piriforme do fundo. O alaúde árabe, cultivado e difundido através de séculos e terras, na medida em que foi enriquecendo e enobrecendo seu formato e sua sonoridade, passou a incentivar parecidas melhoras em seus rudimentares congêneres europeus, os descendentes da fidula. Suas 5 ou 6 cordas duplicadas, correspondendo a outras tantas afinações básicas, seu sistema de braço provido de trastes, sua abertura circular trabalhada com um pequeno rosetão, sua caixa de cravelhas, a própria afinação das cordas, foram outras tantas características fielmente copiadas em terras cristãs. A vihuela hispânica, sobretudo, copiou muito do alaúde, se bem que ficou divergindo do mesmo em alguns aspectos de forma, tradicionais na viola, aos quais não quis renunciar. Já no resto da Europa, muito embora o maior distanciamento geográfico, adotou-se de vez o próprio e genuíno alaúde árabe, em detrimento dos tipos europeus afins, a vièlle, fiddle, a maioria dos quais deixou de ser apreciada como instrumentos pulsados e passou a ser tocada exclusivamente com arco.
  4. A vihuela, ou viola como era chamada em terras galaico-portuguesas, distingue-se do alaúde apenas no formato da caixa: em lugar do fundo bojudo, de "meia-pera", ela apresenta dois tampos planos, um inferior e outro superior, interligados por altas ilhargas. Estes tampos, além do mais, não têm forma oval, como acontece com os do alaúde, senão apresentam um estreitamento central, uma cintura quase idêntica a do atual violão.

Este tipo de viola, já perfeitamente definido e muito popular no Portugal renascentista, é o que veio para o sertão e o que é conhecido, hoje, com o nome de "viola sertaneja". Com idêntico conjunto de cordas e idêntica afinação que a antiga [2]. Tão similar, aliás, que qualquer música escrita para "vihuela” ou alaúde nos séculos XVI e XVIII, na Europa – o repertório é muito grande – pode ser tocada na viola sertaneja sem qualquer adaptação prévia. Uma perfeita sobrevivência, neste caso também, das deixas musicais arábico-ibéricas: perdidas lá, conservadas aqui.

  1. Os instrumentos de cordas friccionadas com um arco eram desconhecidos na Europa, até os árabes introduzirem o rabab (ou rebab), que eles adotaram dos persas [3]. Muito parecido ao primitivo alaúde, o arcaico modelo do rabab apresentava a caixa piriforme e vinha coberto por um couro, na parte anterior. Mais tarde, o couro foi também substituído por uma peça de madeira fina. Constava de duas cordas, afinadas em 5a e tocava-se encostado no chão mediante um espigão.
  2. Na parte ocldental da África do Norte, por outro lado, as tribos árabes dos berberes usavam uma variante do rabab tocada com apoio no peito. Chamavam-na de ar'abebah, tinha uma só corda e era também sonorizada com arco. Servia para garantir o tom na recitação do rapsodo.

Ora, coincidindo com a conquista do domínio politico de al'Andaluz por parte dos berberes, difundiu-se pela península, ao lado do rabab oriental propriamente dito, um tal de rabé, preferentemente tocado acima do peito: rabé ou rabel ou rebec etc., nomes todos com os quais o referido instrumento teve muita divulgação e prestígio nas penínsulas ibérica e italiana, assim como na França, nomes que, pode-se observar, puxam mais para ar'abebah do que para rabab, justamente pelo fato de predominar, nas cortes islâmico-ibéricas desta época, a gíria berbere. Afinidades puramente verbais, por outro lado, pois o mencionado rabé está melhor constituído que o africano e possui já três cordas, afinadas por quintas.

O rabé e seu arco ganharam muita popularidade, tanto no território ocupado pelos árabes quanto no cristão, onde contribuíram para popularizar a técnica e o som das cordas friccionadas, incentivando assim a progressiva e já comentada adoção do arco por parte das vièlles, violas, fiddles, etc.

Os rabés, em qualquer de suas variantes nominais, são constantemente mencionados em relações de instrumentos da baixa Idade Média e aparecem profusamente representados em todas as modalidades de artes plásticas do período.

  1. Se a dupla rabab-rabé, numa primeira fase evolutiva, fez as violas europeias adotarem o arco, no começo do séc. XVI, em troca, chegou a hora de as violas de arco, com seus variados tamanhos e cada vez mais elegantes e caprichadas, fazerem sentir sua influência sobre o próprio rabé, o qual, então, passou a modificar em parte seu formato, desistindo de seu fundo piriforme e adotando o sistema de ilhargas laterais interligando dois tampos contrapostos. Todavia, procurando não perder seu característico som possante e estridente, o rabé conservou seus tampos bojudos, não planos como os da viola, facilitando assim o uso de um cavalete mais alto, capaz de exercer uma maior pressão sobre a caixa: condições físico-acústicas propiciatórias do tipo de som desejado. Manteve também suas aberturas frontais em forma de "f" – as da viola tinham forma de "c" –, uma maior espessura nas madeiras dos seus tampos e sua habitual afinação por quintas, entre outras coisas - as violas de arco afinavam-se por quartas.
  2. Este "aviolamento" do rabé trouxe uma nova mudança de nome, desta vez trocando o masculino pelo feminino – o gênero da viola de arco, precisamente mento a ser chamado de "rabeca". Todavia, ao lado desta nova denominação, muito difundida e específica do instrumento que veio para cá, continuou a ser mencionado um tal de rebec que, por ter menor tamanho e o seu som ser mais agudo e estridente, dominava nos alvoroçados ambientes populares ao ar livre, nas ruas e praças do sul da Europa. Com o tempo, este rebec, cujas ilhargas, mais baixas que as da viola, admitiam que o instrumento pudesse ser encaixado sob o queixo, melhorando assim a sustentação e a técnica da mão esquerda, acaba se impondo ao tipo das braccias – violas de ilhargas muito altas, menos manejáveis e de som mais apagado. E é precisamente deste tipo de rebec-rabeca que, aos poucos, graças a pacientes experiências de luthières talentosos, aparece o violino e sua família atual de instrumentos de corda. O violino, que passa a dominar totalmente o ambiente musical e obriga a família das violas de arco a bater numa retirada que foi rápida e definitiva e da qual salvaria se apenas, por uma inércia linguística, o nome, violino (viola pequena, em italiano), aplicado a um instrumento cujas principais características eram todas oriundas do rabé-ar'abebah' [4].

Nesta perspectiva, então, a rabeca deveria ser considerada, senão a própria genitora do violino, a tia carnal do mesmo.

  1. A definitiva adoção da família do violino tornou obsoleto o uso das rabecas e dos rabé-rabel-rebec, etc., instrumentos que iriam perdurar unicamente em ambientes rurais montanheses: alguma zona rústica de Portugal (rabeca chuleira), do planalto espanhol (o rabel dos pastores castelhanos) alguns pontos da cordilheira italiana (a rubeca), etc.

No tocante ao Brasil, não há dúvida de que tanto a rabeca quanto a viola devem seu uso a uma implantação que aconteceu nas primeiras etapas da colonização. Efetivamente, a partir do Séc. XVII estes instrumentos não mais teriam podido ser importados, estando como estavam já praticamente desaparecidos em Portugal e na Espanha. Tinham sido substituídos, naquelas terras: a viola cedera seu lugar para a guitarra; a rabeca, para o violino. No sertão a dupla perdura, e manda, até hoje.

  • O pífano

O pifaro - pífano seria a grafia correta – que, junto com a viola e a rabeca, completa a trilogia sertaneja de instrumentos, diferencia-se dos outros dois porquanto não costuma ser empregado acompanhando recitados poéticos e sim para, junto com percussões, tocar a melodia de ares vivos de dança.

A sua origem há que a procurá-la também pelo lado dos árabes andaluzes. Por uma razão básica: o pífano é tocado em posição transversa em relação aos lábios, o que desde a mais alta antiguidade caracterizou a flauta árabe em relação à flauta reta, de bico, dos europeus, tocada da boca para fora, longitudinalmente. Se o fato de o nome pífano derivar do verbo germânico pfeiffen (soprar) pudesse levantar alguma dúvida a respeito das origens árabes deste instrumento, esta dúvida poderia ser esclarecida lembrando que os árabes ibéricos costumavam comprar eslavos no nordeste europeu – na época a palavra eslavo equivalia a escravo – para deles servir-se como milicianos, mordomos, eunucos e domésticos em geral, músicos incluídos. Estes eslavos, cuja fala pertencia ao grupo das línguas germânicas, eram levados à Península ainda jovens e, se por um lado arabizavam-se (andaluzavam-se, diríamos melhor) por outro influenciavam seus donos com certas técnicas, costumes e linguajar, sendo nesta perspectiva que se justificaria o uso da palavra pfeiffer aplicado a um instrumento de sopro que não correspondia à flauta reta européia, por eles conhecida.

6 EPÍLOGO

  1. Alguns estudiosos das tradições literário-musicais sertanejas têm apontado serem possíveis certas influências árabes. Todavia, o comentário é feito quase sempre de passagem e às pressas, o nome dos árabes sendo mais um, na lista sumária de virtuais contribuintes. Tudo o que até aqui temos dito, no entanto, tende a demonstrar que esta influência foi muito mais do que isto; ela foi preponderante sobre todas as restantes. Por outro lado, não é de estranhar-se que o peso desta influência tenha deixado de ser avaliado com justiça, habitualmente: os árabes, como indivíduos, representam um elemento irrelevante na colonização do sertão. A história brasileira não os registra aqui. E na hora em que a colonização do Brasil foi iniciada, a história da Península Ibérica era escrita pelo povo que acabava de desterrá-los, os dizimava ou, no melhor dos casos, procurava ignorá-los.
  2. Mas 800 anos de domínio político, de caldeamento racial e, sobretudo, de liderança cultural não se apagam de uma hora para outra, pelo menos que tantas coisas tinha chegado a aprender e a amar, no vivo exemplo da espiritualidade e do transbordante dos seus dominadores muçulmanos, Os árabes tinham implantado nesta massa, de uma maneira natural e dentro da tolerância ideológica que os caracterizou, hábitos e vivencias que significavam verdadeiras conquistas da inteligência, graus de evolução espiritual. Notadamente, tinham feito da Poesia e música profana – e da mistura de ambas – um meio de comunicação abrangente, acessível a todos. A Poesia deixara de ser um cultivo modelar a cargo de gênios eruditos, como costumou ser dentro da cultura latina, para passar a ser o que semfora entre os árabes: um jogo de agilidade espirituosa, um canal de extroversão, um meio informativo, um arquivo da tradição, um instrumento de esgrima intelectual, tão apto para a louvação quanto para a sátira, uma dimensão colorida da linguagem fosse nas Cortes, nos mercados ou nas festas e nas folgas dos camponeses. Ora, conseguir fazer um povo inteiro habituar-se a pensar e falar em verso, a musicar e cantar Poesia, é de fato muito mais do que instaurar uma moda: é ampliar a capacidade espiritual deste povo, elevá-lo em seus valores mais nobres: os do verbo, os da comunicação espiritual através do simbolismo das palavras.
  3. Todo um estilo de atividade espiritual, com sua temática e sua filosofia, tinha impregnado as populações não-árabes governadas pelos muçulmanos. Aculturação profunda, nestes e noutros aspectos, que representou uma fecundação muçulmana no gênio coletivo de populações, houvesse ou não infiltrações raciais árabes, nelas próprias.

Todavia, a tremenda e rápida decadência dos árabes seguiu-se ao desabar do seu império político no Ocidente, sua absoluta perda de prestígio aos olhos dos velhos grupos raciais autóctones e, sobretudo, a recuperação por parte destes grupos de uma consciência europeia numa hora em que a Europa começava sua própria e retumbante caminhada cultural, modificaram violentamente o quadro de valores espirituais das comunidades ibéricas. A Renascença, invadindo a Espanha e Portugal com modas inovadoras em todos os terrenos, foi uma impetuosa corrente a varrer rapidamente muitos dos sedimentos deixados pela dominação islâmica. E daquilo que não podia ser varrido, eram apagadas manhosamente quaisquer marcas que denotassem origens muçulmanas.

  1. Mas o espírito da Renascença não arribou ao sertão brasileiro. Se, numa investida inicial, rumo ao desconhecido, as terras sertanejas foram penetradas, investidas posteriores, já informadas da dureza das condições climáticas, preferiram terras mais amenas, o litoral, muito especialmente. No sertão, em consequência, não aconteceram cunhas culturais a empurrar e remover as tradições profundamente enraizadas. Nem a da Renascença nem a de qualquer outro período cultural posterior. O sertão continuou com as atividades artísticas e espirituais fundamentalmente idênticas às que trouxeram os seus primeiros colonizadores. Nisto consistindo, provavelmente, o maior diferencial entre a maneira como as referidas atividades prosseguiram no sertão brasileiro e como o fizeram em outras terras ibéricas ou de colônias hispano-americanas, nas quais uma geografia menos fechada deixou a tradição mais exposta a influências novas, contribuindo para torná-la uma relíquia folclórica, apenas, sem o valor de prática viva que esta tradição conservou no Brasil.
  2. O lazer e os hábitos dos sertanejos continuaram a basear-se, por séculos, na perpetuação dos padrões que vieram com seus antepassados imigrantes. As inovadoras e consecutivas atividades artísticas que foram aparecendo tanto em Portugal quanto nos centros urbanos mais desenvolvidos do Brasil – teatro, ópera, concertos, literatura atualizada, novos gêneros de música e de dança popular, etc. – representatividade no sertão, nunca conseguindo suplantar as robustas tradições medievais. Até recentes tempos, em que só se dispunha de tração animal, aquelas áreas afastadas, puro interior embolsado, vastas regiões amiúde flageladas pela natureza, pobres de recursos, só eram visitadas por alguns modestos espetáculos circenses, tão bem evocados por Suassuna, eles próprios sobreviventes da velha farândola dos jograis, perfeitamente entrosados, portanto, com o ambiente humano que visitavam e no qual só faziam era ratificar valores, nunca os modificar.
  3. Foi precisa a fulminante explosão das técnicas modernas que revolucionou os meios de comunicação – veículos a motor e novas estradas, radiofonia, cinema, a televisão, finalmente – para que o sertão viesse, de fato, a ser invadido pela segunda vez, invasão relativamente recente e ainda em vias de execução, mas que inelutavelmente provocará básicas e irreversíveis transformações. Segunda invasão que tem trazido uma contrapartida fascinante para os invasores, fazendo com que um estranho mundo sobrevivente aparecesse aos olhos espantados do brasileiro moderno, mostrando em plena atividade e com insignificantes retoques, tudo o que constituiu o dinamismo e as atividades espirituais do homem medieval, na Ibéria arabizada: uma rara miscelânea de hábitos, tradições e valores estéticos ancorada numa mentalidade que mistura, a um sólido cristianismo doutrinal, um sentido mágico-crendeiro em relação à vida e ao próprio mundo. Contexto encantado, à margem do tempo, que explica a garrida vitalidade destas figuras lendárias, em relação aos nossos padrões atuais de comunicação artística, que são os violeiros, os rabequeiros, os repentistas e os poetas do sertão, em geral, arautos de um passado que neles, de alguma maneira e legitimamente, é presente ainda, continuadores de uma das manifestações mais esplêndidas que caracterizaram a cultura arábica em seus tempos de máximo esplendor.

[1] A mesma identificação que em nossa gíria leva o violão a ser chamado de “pinho”.

[2] Algumas pequenas diferenças que poderiam ser apontadas, quanto ao número de cordas e sua afinação, existiam já em relação ao velho modelo

[3] A teoria que pretende fazer do “crouth” – antigo instrumento celta-britânico – e antecedente europeu dos instrumentos de arco é, como sempre, uma manifestação do bairrismo da Europa e da tácita conspiração anti-árabe. Não há provas que a justifiquem. O “crouth” tem sua existência demonstrada desde a alta Idade Média, sim, mas ninguém provou até hoje que o mesmo fosse tocado com arco até o séc. X ou XI, quando já fazia séculos que o rabab compeava pelo Ocidente, difundindo a nova técnica de fazer as cordas vibrarem.

[4] Nalgumas regiões italianas chegou a chamar o novo instrumento, na transição que precedeu a sua definitiva adoção, de rabechino.

[5] As flautas e o flautim das nossas atuais Orquestras Sinfônicas são também versões modernas das "flautas" árabes, todas tocadas transversalmente, o que Ihes dá um som muito mais penetrante que o das flautas retas, cujo som fraco as torna inaproveitáveis, nestes grandes conjuntos.

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