Os leitores do História Islâmica sem dúvida já estão acostumados a lerem sobre as relações entre o Islam e a Europa, principalmente sobre Al-Andaluz, a presença islâmica na Península Ibérica. Não obstante, outro tema abordado diz respeito às nuances de temas familiares para nós no Ocidente, como o caso da escravidão. A breve biografia de hoje é uma junção desses temas: um ex-escravo espanhol que chegou até um dos postos mais elevados no governo islâmico do Marrocos e conquistou o Império Songai: seu nome era Judar Paxá.

Seu nome “de batismo” era na verdade Diego de Guevara e nasceu no século XVI em Cuevas del Almanzora, na Espanha. De origem mourisca, ou seja, muçulmano espanhol batizado à força, sua família havia fugido para a região de Almería após a Rebelião das Alpujarras. Ainda quando criança foi capturado por uma incursão de piratas da berberia procurando por escravos, sendo castrado e vendido como eunuco. Com isso, foi levado até o Marrocos para servir ao sultão Ahmad al-Mansur, que já possuía outros eunucos como servos.  

No Marrocos, Diego galgaria a graus cada vez mais elevados social e militarmente, até que em 1590 fosse nomeado Paxá por Ahmad al-Mansur, um título muito elevado no contexto político e militar. Em outubro do mesmo ano, o agora Judar Paxá seria incumbido de invadir o Império Songai, no território do atual Mali. A invasão foi motivada pela dificuldade econômica que a dinastia marroquina enfrentava após repelir as invasões portuguesas na batalha de Alcácer Quibir. Assim, o Império Songai que estava enfraquecido por lutas pelo trono após a morte de Askia Daoud parecia um bom alvo para recuperar o que havia sido despendido para evitar a conquista portuguesa do Marrocos.

Judar levaria consigo cerca de 1.500 tropas de cavalaria leve e 2.500 membros de infantaria, com um percentual significativo deles equipados de arcabuzes. O exército de Judar Paxá era muito variado em seus membros, possuindo em sua formação diversos espanhóis e cristãos renegados do sul da Europa. Só no seu destacamento pessoal possuía cerca de 80 cristãos. Não obstante, contava ainda com oito canhões ingleses em seu armamento.

Contudo, para que Judar Paxá pudesse chegar até o território do Império Songai, o mesmo teria de passar por uma árdua travessia pelo imenso e hostil deserto do Saara. Foram necessários 8.000 camelos e 1.000 cavalos para transportar toneladas de munição, equipamento, comida e água através do deserto.

Partindo de Marrakesh, seu destino final era a capital do Império, Gao. O imperador de Songai na época, Askia Ishaq II [1], não ficaria esperando Judar chegar nos limites de seu território e menos ainda em sua preciosa capital: assim, reuniu 40 mil homens [2] e foi ao norte ao encontro das forças marroquinas. Desse encontro resultou a icônica batalha de Tondibi em março de 1591.  

O exército de Askia encontraria o exército de Judar em Tondibi, quase 50km ao norte da capital Gao. O exército marroquino estava claramente em desvantagem numérica, porém possuía uma qualidade muito superior ao exército do Império Songai. Enquanto as tropas de Askia lutavam com lanças e espadas, as forças de Judar Paxá possuíam mosquetes e canhões. Diante disso, segundo um cronista que narrou a batalha, as forças de Judar dizimaram as tropas de Askia em um piscar de olhos.

A estratégia Songai contra Judar foi um fracasso: a ideia era enviar cerca de mil animais de grande porte em direção ao exército marroquino para quebrar suas defesas, porém os animais se assustaram com o barulho dos tiros e fugiram em direção às tropas de Ishaq II. Não bastasse isso, as tropas do Império foram totalmente destruídas com os tiros dos arcabuzes. Restava agora apenas a cavalaria, que também seria dizimada após Judar Paxá posicionar seus atiradores e canhões. O que agora havia restado das tropas de Songai ou fugiram ou foram destruídos.

Como desfecho da batalha, Gao caiu primeiro, depois Timbuktu, depois Djenné. Todas foram saqueadas em busca de ouro e outros saques. Cativos foram capturados e marcharam para o norte através do deserto. Mas os marroquinos não conseguiram estender seu controle para além das três cidades. Em outro lugar, o vasto império que os Songhai controlavam começou a se desintegrar. A rica província de Djenné foi devastada de ponta a ponta por hordas dos Bambaras, grupo étnico local. A área acabou se dividindo em dezenas de reinos menores, e os próprios Songai se mudaram para o leste, para a única província sobrevivente de Dendi, continuando a tradição Songai pelos próximos dois séculos e meio. O ataque de Judar Paxá marcou o fim do poderio efetivo do Império Songai enquanto força local.

Segundo Prieto (2001), nenhum europeu chegou a conhecer as glórias de Timbuktu, senão Judar Paxá.

Para reprimir a resistência em Timbuktu, os marroquinos enviaram acorrentados importantes eruditos a Marrakesh. A riqueza de Timbuktu, Gao e Jenne também foi destruída. Enormes quantidades de ouro em pó foram enviadas pelo deserto. Quando Judar Pasha retornou ao Marrocos em 1599, sua caravana incluía trinta carregamentos de camelos com ouro avaliados por um comerciante inglês em £ 600.000 (MEREDITH, 2014, p. 145-146). [3]

Dessa maneira, Judar assumiu o controle da lendária Timbuktu. A riqueza dessas regiões, contudo, para Costa e Silva (2011) é um tanto quanto relativa:

O ásquia vivia em seus palácios, cercado por numerosas esposas e concubinas, eunucos, escravos e cavalos. Com toda a pompa e o cerimonial de um ser quase divino. Contudo, o que ali era opulência poderia parecer pobreza em outras partes. Pois esquálida considerou Judar — o renegado granadino que conquistaria Songai, em 1591, para o sultão de Marrocos — a residência do ásquia em Gao, e inferior à morada de um xeque de tropeiros no Magrebe. O casarão de barro socado, de muros irregulares e nus, despido de enfeites e alfaias, só podia causar impressão de penúria e descaso a quem se acostumara à profusão de colunas e arcos em ferradura, às paredes de arabescos ou de azulejos policromos, aos tetos em estalactites, aos tapetes a forrar as salas e às águas a correr nos pátios, a todo o requinte que envolvia a vida de um rei mouro nas duas margens do extremo ocidental do mar Mediterrâneo (COSTA E SILVA, 2011, 546-547).

Indo mais além, conta-se que ele foi relativamente bondoso com seus inimigos, poupou a vida de Ishaq II e apenas despojou os nobres de suas riquezas, respeitando as prerrogativas comerciais da cidade. Ishaq II ofereceu uma boa quantia à Judar para que o mesmo abandonasse a cidade: dez mil moedas de ouro e mil escravos. Conta novamente Costa e Silva (2011, p.87) que de fato não foi nada barato para o Askia de Songai, citando uma quantia muito maior de ouro: “E muito caro custou, em 1591, ao ásquia Ishaq, de Songai, o render-se ao sultão do Marrocos: 100 mil peças de ouro e mil cativos”.

Um adendo que deve ser feito é que o legado de Judar não se resume somente à queda do Império Songai. O povo Arma no vale do rio Níger descende dos invasores marroquinos e andaluzes do século XVI. Após se estabelecerem na região, mantiveram seu poder até 1737 e sua preeminência social e cultural até a primeira metade do século XIX, quando foram definitivamente conquistados pela etnia Peul. Chegaram a desempenhar um papel muito importante para a independência do Mali. Até hoje se valem de palavras de origem árabe (alcaide, alfafa e afins) e relembram do seu fundador, ninguém menos que Judar Paxá.

Dando continuidade, Judar seria rebaixado a governador por ter defendido que Timbuktu deveria ser a nova capital ao invés de Gao, como desejava o sultão al-Mansur. Apesar das vitórias de Judar, sua discordância com o sultão marroquino levou à sua substituição anos após suas conquistas. Depois da morte do sultão em 1603, guerras de sucessão ocorreram pela disputa do trono de Askia Ishaq II. Judar foi executado em dezembro de 1606 sob as ordens de Mulay Abdallah, filho de Mullay al-Shaykh, durante as mencionadas contendas pelo trono marroquino.

NOTAS

[1] Askia ou ásquia seria um termo equivalente à rei.

[2] Alguns autores, como é o caso de Meredith (2014) afirmam o número de 20 mil soldados.

[3] “To quell resistance in Timbuktu, the Moroccans sent leading scholars to Marrakesh in chains. The wealth of Timbuktu, Gao and Jenne was also stripped. Huge quantities of gold dust were shipped across the desert. When Judar Pasha returned to Morocco in 1599, his caravan included thirty camel-loads of gold valued by an English merchant at £600,000”.

REFERÊNCIAS

COSTA E SILVA, Alberto da. A Enxada e a Lança. Nova Fronteira. 2011

______. A Manilha e o Libambo. Nova Fronteira. 2011.

PRIETO, José. A la conquista de Tombuctu. 2001.

MEREDITH, Martin. The Fortunes of Africa: A 5000-Year History of Wealth, Greed, and Endeavor. Public Affairs. 2014.

OLIVER, Roland. The Cambridge History of Africa (1050-1600). Vol. 3. Cambridge University Press. 2008.

SHILLINGTON, Kevin. History of Africa. Red Globe Press. 2019.

OGOT, Bethwell A. General History of Africa: From the Sixteenth to the Eighteenth Century. Vol. 5. UNESCO General