Sundiata Keita, nascido em 1217 em Niani, uma vila na atual Guiné, foi um príncipe e o fundador do famoso Império Mali, um dos maiores impérios da história do continente africano.
 
Retratado em um poema épico que leva o seu nome (Épico de Sundiata), registrado principalmente na tradição oral mali, a figura do príncipe e conquistador africano se tornou algo quase lendário, ao ponto de ter tido a sua própria existência como motivo de dúvidas. Entretanto, fontes independentes que visitaram o Império Mali afirmam a veracidade de sua existência, como o caso dos viajantes muçulmanos Ibn Khaldun e Ibn Battuta, que estiveram na região cerca de um século após a morte de Sundiata.
 
De acordo com a tradição, Sundiata era filho de Naré Maghan Konaté e Sogolon Condé. Segundo os relatos, ele teria nascido aleijado, impossibilitado de andar, o que resultou na zombaria das outras esposas de Naré contra sua mãe. Porém, miraculosamente, um dia Sundiata conseguiu se levantar e andar normalmente, vindo a assumir um papel de liderança em sua comunidade ao se tornar um grande caçador.
 
Apesar dessa incrível reviravolta em seu estado de saúde, seu sucesso atraiu os ciúmes de seu irmão por parte de pai, Dankaram Touman, que juntamente com sua mãe, Sassouma Bereté, se tornaram extremamente ressentidos com Sundiata e Condé. O ressentimento de mãe e filho passariam para uma “crueldade prática” após a morte de Naré Konaté, não deixando outra opção para Condé senão fugir, levando consigo Sundiata e seus outros filhos, exilando-se em diferentes territórios pertencentes ao Império de Gana (Uagadu) por muitos anos. Após o exílio em Uagadu, mãe e filho foram convidados pelo rei de Mema, um pequeno estado soninquê [1], provavelmente fundado no delta interior do Níger, sudoeste de Tombuktu, por um chefe dos escravos reais da já mencionada Gana (SILVA, 2011).
 
Em Mema, Sundiata se destacaria como um grande soldado, ganhando uma posição privilegiada no reino. Porém nessa época, Soumaoro Kanté, rei dos sossos [2], viria a conquistar os povos mandingas, que por sua vez foram pedir socorro para Sundiata. Assim, após receber os mensageiros mandingas, Sundiata iria ao seu amparo, levando seus seguidores e recebendo o apoio de uma cavalaria do rei de Mema.
 
Com seu exército, Sundiata derrotaria o rei Sumaoro na batalha de Quirina, norte da atual Bamako (no Mali), cuja data é objeto de divergência entre os historiadores. Alguns, como Alberto da Costa e Silva (2011) afirmam que a batalha ocorreu em 1230, enquanto outros, como é o caso da famosa coleção “História Geral da África”, editada por D.T. Niane (2000), afirmam que o ocorrido foi em 1235. Independentemente da data, o fato é que a batalha de Quirina foi extremamente importante para Sundiata e também para o futuro do continente africano. Tal batalha entra novamente nos aspectos lendários da vida de Sundiata, pois:
 
Essa batalha é apresentada, nas sagas mandingas, como uma peleja entre dois grandes magos. Sundiata teria tido a vantagem de saber que Sumanguru era invulnerável às armas de ferro, mas não ao esporão de um galo branco, e, graças a isto, pôde vencê-lo (SILVA, 2011, p. 339).
 
Apesar do caráter épico encontrado nas sagas mandingas, Sundiata teria reunido sob si vários clãs manlinques, que foram essenciais para a sua vitória. O fim da batalha de Quirina marcaria também o começo do Império Mali, sendo o mais novo império mandinga da região.
 
Sundiata, seguindo fielmente a tradição de seus ancestrais que haviam se convertido ao Islã por volta de 1050, retomaria as relações com mercadores e sábios árabes e negros. Desde o seu sucesso em Quirina até em 1255, ano que marcaria sua morte, Sundiata fundaria instituições no ascendente Império Mali, que por séculos que influenciariam os impérios e reinos vizinhos. Não obstante, o Saara voltaria a ser cruzado por peregrinos, assim como o grande tráfego de mercadores, sábios e demais viajantes retornaria a todo vapor.
 
Com a ascensão do Império Mali de Sundiata na região Ocidental da África, as relações com o mundo islâmico em geral nos próximos dois séculos seriam amplamente expandidas. Exemplo disso são os mercadores e imigrantes malis no Egito, ou ainda as várias embaixadas estabelecidas no Magrebe. Não obstante, anos depois o sobrinho-neto de Sundiata, o também lendário Mansa Musa [3], viria a fortalecer mais ainda sua relação com o mundo islâmico em geral, realizando inclusive a sua famosa peregrinação à Meca.
 
Outro fato que serve para ilustrar a importância dada às relações diplomáticas pelo Império Mali, é que fontes de extrema importância que chegaram até nós hoje são de estrangeiros que viajaram até as terras imperais, como os já mencionados Ibn Khadun e Ibn Batutta, o primeiro nascendo na Tunísia e o segundo no Marrocos.
 
Após a fundação do aclamado império, Sundiata passaria a expandir seus domínios, conquistando as terras do antigo Império de Gana. Juntamente com seus generais, principalmente o brilhante Tiramakhan Kaore, o governante (Mansa) do Mali venceria também batalhas contra o rei do Império Uolofe, reduzindo o reino em apenas mais um vassalo. Sundiata iria também conquistar as terras do povo Bainuk, derrotando o rei Kikikor e anexando seu estado ao grandioso Império Mali.
Fato curioso é que muito embora os territórios conquistados respondessem ao Mansa do Mali, sendo anexados ao Império ou tidos como vassalos, o modelo de governo era mais semelhante a uma federação, onde cada tribo e localidade possuíam seus próprios representantes na corte do Mansa. Havia inclusive uma “assembleia deliberativa” chamada de Gbara ou simplesmente como “Grande Assembleia”, encarregada de realizar a checagem do poderio de Sundiata, aplicando as ordens imperais sobre seu próprio povo, possuindo também a função de escolher o próprio Mansa, que normalmente seria da família do antecessor.
Indo mais além desse sistema administrativo semelhante ao federativo, é interessante observar a constituição do Império Mali, que chama a atenção pelos seus mais variados artigos, principalmente aqueles que possuem semelhanças com as modernas constituintes, como a brasileira, mundialmente conhecida como “Constituição Cidadã” devido aos direitos e garantias ofertados pela mesma, principalmente em seu artigo 5º.
 
A Constituição Mali, também chamada de Kourokan Fouga, nasce após a batalha de Quirina através de uma assembleia dos nobres com o objetivo de criar um sistema de governo para o recém-nascido Império. Diante disso, os griots [4] tanto do Mali como de Guiné afirmam que a famigerada Kourokan estabeleceu o modelo federativo mandinga do Império (já mencionado), uma vez que reunia os diversos clãs mandingas em um só governo, todos sob os comandos do Mansa do Mali: Sundiata e seus sucessores.
 
O Kourokan Fouga encontra-se no Épico de Sundiata, porém foi reconstruído pelo especialista Siriman Kouyaté e sua equipe de linguistas guineenses. A reconstrução pautou-se principalmente para o leitor contemporâneo, não subvertendo o conteúdo original da Constituição Mali, mas sim adaptando os dizeres para que o leitor moderno possa entender os aspectos da constituinte.
 
A Constituição, assim como reconstruída por Kouyaté, contém 44 éditos (ou artigos), sendo dividida em quatro partes: Organização Social; Direitos de Propriedade; Proteção Ambiental e Responsabilidades Pessoais.
 
A primeira parte (Organização Social) compreende do artigo 1º ao 30. Sobre a parte dedicada à Organização Social, a Constituição Mali divide a sociedade mandinga em 16 clãs chamados de Djon-Tan-Nor-Woro [5]. Indo mais além, existem outros 4 clãs, os Mori-Kanda-Lolou, responsáveis por guiarem a população na fé islâmica. Havia ainda outros 4 clãs chamados de nyamakala, que possuíam uma espécie de monopólio de algumas atividades comerciais, como os referentes à fundição, trabalhos com madeira e etc. Por último, havia ainda os já mencionados djelis, ou griots, que possuíam a função de registrar a história do Império através de músicas e poesias.
 
Sobre os clãs acima, os três artigos primeiros (transformados em um para facilitar a leitura) dizem o seguinte:
 
A Grande Sociedade Mandinga está dividida em dezesseis clãs de “aljavas” [Djon-Tan-Nor-Woro], cinco clãs de marabus, quatro grupos de "nyamakalas" e um grupo de escravos. Cada um tem uma atividade e função específica.
 
Os "nyamakalas" devem dedicar-se a dizer a verdade aos chefes, ser seus conselheiros e defender pela palavra os governantes estabelecidos e a ordem em todo o território.
 
Os cinco clãs de marabus são nossos professores e educadores no Islã. Todos devem ter respeito e consideração por eles (tradução do autor).
Juntos, os clãs ocupariam 29 das 30 cadeiras na Grande Assembleia, sendo a última reservada para o djeli, que era também um mestre de cerimônias (belen-tigui), sendo as vezes reservado para uma representante mulher, pois conforme o artigo 16 da Constituinte Mali, as mulheres também devem ser representadas publicamente:
 
Artigo 16: As mulheres, além de suas ocupações habituais, devem estar associadas a todas as nossas gestões (tradução do autor).
Interessante observar o quão abrangente a Constituição Mandinga foi. Exemplo é o artigo 20 da mesma, que aborda o tratamento devido aos escravos:
Artigo 20: Não trate mal os escravos. Você deve permitir que eles descansem um dia por semana e terminem seu dia de trabalho em um horário razoável. Você é o senhor dos escravos, mas não da bolsa que eles carregam (tradução do autor).
 
O próprio Kouyaté em seu comentário sobre a Kourokan Fouga reconhece o caráter humanitário do artigo mencionado, que exige um tratamento mais digno aos escravos [6].
 
Entre os demais artigos que compõem a sessão da Organização Social, vemos ainda previsões legais sobre nunca trair uns aos outros, respeitando assim a palavra de honra (artigo 23); nunca ofender uma mulher (artigo 14), e inclusive no que diz respeito à educação das crianças, que segundo a constituição Mali é responsabilidade da sociedade como um todo, e a autoridade paterna consequentemente caindo sobre todos os membros do Império nesse sentido (artigo 9). Há ainda a obrigação de ajudar àqueles que passam necessidades (artigo 31).
 
Indo mais além, a Constituição Mandinga irá legislar ainda sobre o divórcio, algo que se tornou também objeto das constituições ocidentais e legislações infraconstitucionais após o Código Napoleônico:
 
Artigo 30: No Mande, o divórcio é tolerado por um dos seguintes motivos: impotência do marido, loucura de um dos cônjuges, incapacidade do marido para assumir as obrigações devidas ao casamento. O divórcio deve ocorrer fora da aldeia (tradução do autor) [7].
 
Nos artigos 32-36 encontramos os direitos relativos à propriedade, ou seja, a forma legal de adquirir os bens, troca de animais e até mesmo sobre objetos achados. Porém, o que mais chama atenção nesse trecho é o artigo 36, que traz uma isenção ao famoso “furto famélico”, isto é, quando alguém furta algo para comer, que por sinal também não é crime na legislação penal brasileira. Assim dita o artigo 36 da Constituição Mandinga:
Artigo 36: Saciar a fome não é roubo, se não levar nada na bolsa ou no bolso (tradução do autor).
 
No trecho que compreende às previsões ambientais (artigos 37-39), a Kourokan nomeará os Fakombà como líder dos caçadores (art. 37); o trato com os animais domésticos no período de plantio e colheita (39), e mais importante: a preservação das árvores frutíferas:
Artigo 38: Antes de colocar fogo em algum arbusto, não olhe para o chão, levante a cabeça na direção do topo das árvores para ver se elas dão frutos ou flores (tradução do autor).
 
Em síntese, o artigo 38 protege as árvores que dão frutos ou flores da ação antrópica, como eventuais devastações por conta do fogo causado pelo próprio homem.
 
Por último, os artigos 40 ao 44 são as “disposições finais” da constituinte Mali, reiterando as obrigações de respeito mútuo (art. 40), trato com os inimigos (permitindo mata-los, mas não os humilhar, conforme o art. 41); nomeando alguém como chefe de cerimônias (art. 43); discorrendo brevemente sobre as Grandes Assembleias (art. 42) e por último ditando que os que descumprirem com as regras da Constituição sofrerão as punições cabíveis, vinculando às obrigações da população a devida efetivação prática da Constituição Imperial.
 
Apesar das poucas informações sobre a morte de Sundiata, é geralmente consenso a data de 1255. Em algumas tradições, o Mansa teria morrido afogado após tentar cruzar o Rio Sankarani, que é a causa mais aceita pelos especialistas modernos.
 
De qualquer forma, Mansa Sundiata Keita deixaria para trás um incrível legado para o continente africano e também para o mundo, sendo o fundador de um dos impérios mais brilhantes da história da África que duraria por mais alguns séculos. Legaria ainda uma constituição muito à frente de seu tempo, semelhante inclusive às constituições modernas em muitos aspectos, que vieram a surgir de 600-800 anos depois da Constituição Mandinga.
 
Posteriormente, outros Mansas seguiriam seus passos, sendo também lembrados pela história como governantes brilhantes, recebendo inclusive características lendárias, como o caso de seu sobrinho-neto, Mansa Musa.
 
Notas:
[1] Grupo etnolinguístico mandinga da África Ocidental.
[2] Se trata do Império Sosso, fundado no século XII também na África Ocidental, oriundo da região de Kaniaga, no sudeste do Mali. Soumaoro Kanté seria o governante mais famoso desse império.
[3] Mansa Musa é considerado o homem mais rico da história. Na sua mencionada peregrinação à Meca (hajj), um dos pilares do Islã, é narrado que as suas doações aos governos locais chegaram a causar a inflação do ouro na época, devido aos números expressivos que doava por onde passava.
[4] Também chamados de djelis, os griots foram historiadores, poetas, contadores de histórias, músicos e muito mais na África Ocidental. Foram eles os principais responsáveis pela manutenção da tradição oral sobre Sundiata até que os primeiros escritos começassem a surgir sobre o fundador do Império Mali.
[5] Referência ao objeto chamado de aljava, usado para carregar flechas, fazendo referência ao papel de defesa do Império que essas tribos possuíam.
[6] Essa exigência em melhor tratar os escravos ou até mesmo em libertá-los seria amplamente difundida no mundo islâmico. Para um maior aprofundamento, ver a obra de Jonathan Brown, Slavery and Islam.
[7] Observação: a edição francesa de 1998 da Constituição não contém esse artigo, dividindo o artigo 34 em dois, e numerando os artigos de forma distinta.
 
 
Bibliografia:
Cissé, Youssouf Tata. La charte du Mandé et autres traditions du Mali. Paris: Albin Michel, 2003.
CONRAD, David C. Empires of Medieval West Africa. Infobase Publishing, 2005.
CONRAD, David C., Sunjata: a West African Epic of the Mande peoples. Hackett Publishing, 2004.
NIANE, D.T. GENERAL HISTORY OF AFRICA: Africa from the Twelfth to the Sixteenth Century. Vol. IV. UNESCO Printing, 2000.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. 5.ed., rev. e ampl. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.