Mesmo em casos mais fronteiriços como o Emirado de Granada e o Império Otomano, o fascínio muçulmano por armas e armaduras ocidentais não parece ter sido muito grande no período tardo-medieval. É de surpreender, então, que curadores ocidentais tenham encontrado um amontoado de espadas tipicamente ocidentais no Arsenal de Alexandria, no Egito, datando do início do século XV.

É natural se perguntar o porquê encontrarmos espadas de estilo ocidental no Arsenal de Alexandria. Teriam os muçulmanos feito armas à moda ocidental? Eram eles adeptos desta tendência?

Ao que tudo indica, assim como outros povos islâmicos de seu tempo, os mamelucos egípcios não parecem ter sido grandes entusiastas do armamento ocidental, embora muito provavelmente reconhecessem sua eficiência. Não temos nenhum registro de que o Sultanato Mameluco do Egito tenha feito qualquer uso significante de espadas ocidentais, ainda que fontes cristãs sejam explícitas em mencionar a escassez de equipamento nos setores não-privilegiados do exército mameluco; isto é, à parte da elite de cavalaria mameluca, setores como a massa de infantaria eram conhecidos por serem mal-armados:

“Apesar do fato de que as fontes da Europa Ocidental dos séculos XIII a XV frequentemente se referirem a um grande número de infantaria aparecendo nos exércitos mamelucos, as fontes muçulmanas contemporâneas fazem tão pouca menção a eles que parece que sua presença no campo de batalha era incomum, para não dizer rara. Eles certamente apareceram em cercos e em guarnições de fortalezas, mas são apenas ocasionalmente mencionados no campo, e mesmo assim aparecem em pequenos números (geralmente apenas alguns milhares, e geralmente superados em número por sua cavalaria). No entanto, mesmo os relatos muçulmanos admitem seu uso ocasional em batalha ao longo desta era, até a queda do reino em 1517, e significativamente, pelo menos um manual militar mameluco (datado de c. 1400) descreve seu papel no campo de batalha com alguns detalhes.

[...]

Um relatório elaborado para o rei Henrique II de Chipre em 1311 descreve a infantaria mameluca como mal armada, carregando apenas arcos e incapaz de enfrentar besteiros cristãos. Um século depois, Gilbert de Lannoy os descreveu da mesma forma como ‘uma raça miserável, vestida com uma camisa sem meias ou calções, a cabeça coberta por um turbante, eles têm poucos arcos, espadas ou qualquer tipo de arma defensiva’” (HEATH, Ian. Armies of Middle Ages, vol. 2)

Apesar de espadas ocidentais não terem sequer disputado o monopólio de uso das espadas e armamentos nativos do Sultanato Mameluco, historiadores são da opinião de que, apesar da ausência de fontes, os egípcios não devem ter sido completamente indiferentes à presença de equipamento ocidental capturado ou cedido, sendo muito provavelmente reutilizado dentro do próprio exército – ao que parece, por aqueles que não tinham condições de arcar com o equipamento nativo.

Corroborando o ceticismo inicial, elas de fato não são de fabricação muçulmana, mas católica e mediterrânea, dotadas até de relativa qualidade. Se especula que elas tenham acabado nas mãos dos mamelucos ao serem saqueadas de inimigos mortos ou, de acordo com a tese mais popular, obtidas como parte de um tributo que o Sultanato Mameluco extraía do Reino do Chipre, um último reminiscente dos Estados Cruzados, governado pelos descendentes de Guy de Lusignan (mais conhecido por sua retratação como o rei antagonista do filme “Cruzada”). Embora fosse uma ilha grega e cristã ortodoxa, desde o século XII o Chipre passou a ser governado por senhores feudais católicos, que compunham uma minoria étnica estrangeira, mas com o poder político, advindos principalmente da França. Por causa disto, estes senhores feudais lutavam como típicos cavaleiros medievais da Europa Católica, com armadura pesada e armas ocidentais.

Os mamelucos e o reino do Chipre viviam uma situação complexa que alternava entre armistícios, ataques piratas e campanhas militares plenas. Nos períodos em que o reino católico se encontrava em decadência, tributos eram pagos ao sultão no Egito como forma de evitar conflitos; espadas, aparentemente, faziam parte dos tributos cotados.

Apesar da qualidade e do desenvolvimento complexo, essas espadas não parecem ter despertado grande interesse, conforme revelado pelas inscrições puramente burocráticas, em árabe, deixadas nas lâminas: “Doação de al-Mālik al Mu`ayyad Abū al-Nasr Shaykh à armoraria na cidade fronteiriça de Alexandria [no] ano de 822 [1419 no calendário cristão]”. Estas armas ficaram estocadas no arsenal para caso a cidade assim precisasse, como em situações de cerco ou invasões, onde seriam dadas para que cidadãos em idade militar, mas sem equipamento, pudessem ajudar nos conflitos. Em síntese, elas não despertaram o menor interesse na aristocracia nativa, nem nas classes militares.

Eventualmente, as armas ocidentais no Arsenal de Alexandria foram levadas para o arsenal otomano de Hagia Eirene, uma antiga igreja ortodoxa de Constantinopla que foi dessacralizada para estocar equipamento. No início do século XX, quando os turcos decidiram desmanchar o arsenal, as armaduras e armaduras medievais presentes foram dadas à leilão; o equipamento que não foi comprado por entusiastas ocidentais acabou destruído e reciclado. As espadas ocidentais de Alexandria fazem parte dos objetos comprados por curadores anglo-saxões, revelando aspectos interessantes sobre a percepção muçulmana das espadas ocidentais, o que de outra forma levaria muitos espatólogos a pensar que os muçulmanos nutririam alguma admiração pela refinada indústria de espadas da Europa Católica. Curiosamente, não foi o caso.

Ao comentar sobre uma “Espada de Guerra” – termo de época para espadas longas ou “de uma mão e meia”, o curador Peter Finer nos releva muitos detalhes sobre estas armas e a função deste “Arsenal de Alexandria”:

Espada Longa do Arsenal, do tipo Oakeshott XIIIa, cuja marca de lobo, impressa pelo ferreiro na lâmina, indica ter sido feita no famoso centro de Passau, Alemanha, famoso por produzir e exportar espadas. Modelos cortantes como este eram bastante populares na luta contra os muçulmanos, por conta da escassez de armadura do lado inimigo.

“Este exemplo notável de uma "espada de guerra" do século XIV pertence ao fascinante e diversificado grupo de espadas com inscrições árabes do arsenal mameluco de Alexandria. O grupo, conhecido por ter um número bem superior a cem peças, é do maior interesse para aqueles que estudam o desenvolvimento de espadas medievais porque muitas destas as inscrições incluem datas, bem como os nomes dos vários sultões ou amires que as colocaram no arsenal. Enquanto alguns exemplos muito provavelmente foram capturados em batalhas ou escaramuças, hoje se crê que a maioria destas espadas eram realmente presentes ou itens de tributo dos governantes dos Estados cristãos das proximidades, particularmente o Chipre.

O arsenal (Khaza al-silah) era um grande edifício fortificado construído numa parte da cidade agora perdida para o conhecimento moderno, denominado "o recinto" (al-zariba) e possivelmente localizado no lado ocidental de Alexandria. A prática de exibir armas e armaduras dentro das suas muitas salas parecem ter começado após um breve mas devastador ataque à cidade por uma força Internacional dos cruzados, comandada pelo rei Pedro I do Chipre, em 1365. Embora esta fosse a última vez que uma cruzada formal atacaria o Sultanato, muitas espadas europeias chegariam ao arsenal nos próximos setenta anos. As últimas peças datáveis chegaram por volta de 1436-37.

O viajante borgonhês Guilleberto de Lannoy, que foi enviado para observar a área em antecipação de uma possível cruzada futura pelos governantes da Borgonha, França e Inglaterra, escreveu sobre o arsenal em 1422:

‘Há (em Alexandria) uma casa cheia de antigas armaduras cristãs, e tudo o que é dado ao Sultão ou que é obtido dos cristãos é colocado lá.’

As observações de Lannoy nunca foram utilizadas, uma vez que a cruzada projetada nunca chegou a se concretizar. Menos de um século depois, no entanto, o Sultanato Mameluco tornou-se um alvo de seus vizinhos muçulmanos, os turcos otomanos, que invadiram o Egito em 1517. Após esta conquista, a maior parte dos conteúdos do arsenal de Alexandria foram removidos e levados para a antiga igreja bizantina de Haghia Eirene em Constantinopla, que por esta altura foi usada para abrigar o Arsenal do Império Otomano. Muito mais tarde, em 1726, este tornou-se o Museu Militar Nacional da Turquia e, embora muito dos seus conteúdos tenham sido dispersos nos últimos tempos, mais de sessenta espadas com inscrições de Alexandria permanecem no museu militar moderno de Istambul, mantendo assim uma proveniência impecável. Muitos mais residem agora nos museus da Europa Ocidental e da América do Norte, assim como em coleções privadas ao redor do mundo”. (FINER, Peter. Catálogo de Leilão do Victoria and Albert Museums, p. 28-29. Disponível em: < https://issuu.com/artsolution/docs/2005-complete-2?e=6637020/4868424>. Acesso em 7 de dezembro de 2021).

O renomado espatólogo Ewart Oakeshott ainda comenta um pouco sobre o Arsenal, trazendo novas informações:

Espada de uma mão-e-meia do Arsenal de Alexandria, de tipologia XIIIb.

 

“A inscrição na lâmina, em escrita arábica Nashki, nos informa que ela foi depositada no Salão das Vitórias em 1367 (A.H. 769). Isto sugere que ela pode ter sido um espólio de um ataque abortivo sobre o Cairo em 1365, por Pierre de Lusignan, o rei titular de Jerusalém, assentado no Chipre. No entanto, assim como muitas dessas espadas europeias depositadas no arsenal mameluco de Alexandria, ela pode ter sido simplesmente um presente.” (European Swords in the Collection of Istambul, 1985)

Assim, poderíamos pensar no Arsenal de Alexandria como uma espécie de “vitrine vitoriosa” com troféus de guerra capturados de combatentes cristãos ou, quem sabe, existiria tanto um Salão das Vitórias independente ou que fosse apenas parte do Arsenal em si. Devido ao desconhecimento moderno destas estruturas, que já não existem, contudo, dificultam uma constatação certeira.

Tipo XVIIIc do arsenal de Alexandria

Por fim, talvez um último detalhe curioso poderia ser destacado com relação ao item 29.150.143 do Metropolitan Museum. uma espada longa do tipo XVIIIc: este tipo de espada, de lâmina larga e fina, teve pouca popularidade na Europa Ocidental em si, sendo o exemplar de Alexandria um dos poucos e mais importantes exemplares deste estilo. A razão para a pouca popularidade do estilo foi intuitivamente descoberta nos testes de desempenho do youtuber Skallagrim, que usa uma réplica baseada no exemplar alexandrino: a lâmina fina e larga têm um excelente poder de corte, mas por conta disso é mais frágil que os modelos ocidentais mais populares. Em combate, o gume seria mais problemático caso se chocasse muito com escudos ou armaduras metálicas, que na altura do século XV seriam bem populares entre infantaria pesada e cavalaria.

Todavia, é justamente por ser uma arma menos adequada para o combate continental europeu que faz sentido ela ter parado no Chipre, onde os cavaleiros ocidentais enfrentariam inimigos muçulmanos em grande parte sem armadura, aplicando melhor seu modelo.

Espada longa, c. 1370, provavelmente de fabricação italiana, advinda do Arsenal de Alexandria

Tipo XIX do arsenal de Alexandria