Os chamados “mitos de origem” não são nenhuma novidade para aqueles que estudam história ou antropologia: origens míticas de um povo ou uma nação são tão antigos quanto os próprios conceitos de “povo” e “nação”. Os antigos romanos traçavam sua linhagem do mítico herói (e refugiado de guerra) troiano Enéias, que, após a queda da famosa cidade, teria estabelecido sua descendência no Lácio (região central da Itália) junto aos povos itálicos da região, segundo é narrado na Ilíada; os japoneses, por sua vez, traçam sua linhagem de um povo místico e divino – os yamato - que teria imigrado junto ao seu Imperador-deus para o arquipélago do Japão; os povos Kayap’or (ou caiapós), habitantes da Amazônia nos estados do Pará e Mato Grosso, traçam sua ascendência de seres divinos vindos do céu.

Esses mitos originários são parte integrante e até mesmo essencial da formulação identitária de povos antigos, mas engana-se aquele que pensa que sejam algo restrito aos povos da antiguidade. No decorrer do século XIX e alavancar do XX, houve uma explosão de ideias decorrentes do Iluminismo e da Filosofia que fizeram surgir o que hoje é o fenômeno político, social e ideológico do Nacionalismo. Nesse efervescer de ideias que visavam a ultra-valorização da “Nação”, especialmente enquanto uma unidade que perpassava os escopos linguísticos, religiosos e étnicos, a busca dos povos europeus por ancestrais lendários levaram a teorias dignas de um episódio de “Deu a Louca na História” (programa de comédia da rede britânica BBC).

Entre o século XIX e o XX, particularmente na Grã-Bretanha, diversas teorias foram formuladas para dar ao miscigenado povo anglo-britânico – uma mistura de anglos, saxões, celtas, jutos, romanos e nórdicos – uma origem “digna” de seu império ultramarino, à época o maior do mundo. Um desses povos escolhidos por alguns ‘teóricos’ foram os fenícios, um povo talassocráticos e dedicado ao comércio marítimo no mediterrâneo que, nesse processo de exploração marítima, fundaram diversas colônias por todo o mediterrâneo, a mais famosa dela sendo Cartago – cidade que por muito tempo foi a arquinimiga de Roma.

Engana-se, também, aquele que pensa que esse boom nacionalista restringiu-se somente à Europa: no Oriente médio, que, após a Primeira Guerra Mundial, foi arrancado do Império Otomano e picotado pelo Acordo de Sykes-Picott (1916), viu-se a formação de diversos pequenos estados artificiais que até hoje persistem. Um desses estados foi o “État du Grand Liban”, ou o Estado do Grande Líbano (atual Líbano), um protetorado francês arrancado do Levante e criado especialmente para favorecer os cristãos maronitas, que à época eram maioria naquela região costeira do Levante. Esse “Grande Líbano” foi criado a partir de uma maquinação secreta entre a elite maronita, a Igreja Católica (a quem a Igreja Maronita é subordinada) e a França, que visava expandir o vilayet (província) otomana para habitarem num projeto-nação onde fossem maioria. Em 1919, então, um grupo de cristãos locais – homens de negócios francófonos, clérigos e intelectuais – reconheceram uma oportunidade de expandir este enclave montanhoso em um novo estado do “Grande Líbano”. Esses “libanistas” enfatizavam a simbiose natural entre a montanha e a costa: para eles, o novo país proposto já havia sido uma realidade, precisava apenas de uma história distinta para justificar sua autonomia política, e a encontraram nos fenícios.

Retratando os fenícios como defensores da livre iniciativa, muito parecidos com eles, os libanistas argumentaram que essas antigas raízes fenícias deram aos libaneses uma identidade ocidental, focada no Mediterrâneo, muito diferente da cultura muçulmana da região síria mais ampla, que eles viam como desagradável e incivilizado. Era fundamental para sua ideologia que eles não fossem árabes: 'Não há camelos no Líbano', como ainda diz o slogan.

Foi a partir daí que nasceu no Líbano a ideologia do “Fenicianismo”, que é, em suma, uma tentativa dos cristãos da região de destacarem-se dos seus vizinhos árabes muçulmanos (e druzos, uma religião que se separou do Islã no século X da Era Comum), fincando as fundações do moderno Estado do Líbano na antiga “Fenícia” e apresentando-se como descendentes diretos dos fenícios, ao contrário dos “árabes” muçulmanos e druzos. Os defensores da continuidade fenícia entre os cristãos maronitas (que são os únicos a realmente aderirem significativamente a esse pensamento) apontam que existia uma identidade fenícia concisa e delimitada que, convertendo-se ao cristianismo por volta dos séculos IV, V e VI E.C, permaneceram tranquilos falando seu dialeto do Aramaico Ocidental (falado hoje em apenas três vilas da cadeia de montanhas do Antilíbano, com sua ancestral clássica usada como língua litúrgica pela Igreja Maronita) até a chegada dos conquistadores árabes no século VII.

Milicianos cristãos maronitas no Monte Líbano, no final do século XIX.

“Não somos árabes, fomos forçados a ser” diz um outro slogan comum entre muitos cristãos libaneses. Ela é a máxima do fenicianismo: a língua e os costumes árabes não seriam, verdadeiramente, “libaneses” – ao menos, não dos libaneses cristãos –, tendo sido então uma introdução forçosa dos conquistadores islâmicos na região. Entre os partidos políticos que professam o fenicismo está o Partido Kataeb (ou “Falanges Libanesas”), um partido cristão nacionalista libanês de inspiração fascista e membro da “Aliança do 14 de Março” (uma coalizão anti-Síria, da época que as tropas sírias ocuparam a maior parte do Líbano nas últimas décadas do século XX). Apesar de ser “oficialmente secular”, seu eleitorado é principalmente cristão e maronita, com seus milicianos tendo inclusive perpetrado massacres contra populações islâmicas durante a Guerra Civil Libanesa (1975 – 1990), nos Massacres de Shabra e Shattila, Karantina e Tel el-Zaatar. Outros partidos políticos que professam o fenício incluem o Partido Liberal Nacional e as Forças Libanesas, todos com representação na Assembleia Nacional.

Essas ideias, no entanto, não se limitavam aos intelectuais cristãos libaneses: existia na virada do século XIX e início do XX uma verdade conspiração entre idealistas cristãos de um “Levante sem árabes” e as potências coloniais europeias – em particular os franceses –, que viam como os realizadores de seus devaneios nacionalistas. “Os sírios desejam, antes de tudo, a vitória dos exércitos franceses, não apenas porque eles lutam pelo motivo mais nobre [e] pelo mais justa causa, mas também porque o futuro do seu país depende da vitória francesa.” Disse o intelectual libanês Nadra Moutran, um melquita de Zahle.

Muitos cristãos sírios também tinham sua própria versão do “fenicianismo”, o sirianismo, que, na sua principal vertente, esposava uma história, nação e coletividade populacional “síria” separada do mundo e povos árabes; muitos dos teóricos sirianistas, inclusive, esboçavam um grau de sirianismo nos seus escritos, embora discordassem na principal meta dos fenicianistas nacionalistas libaneses: um “Grande Líbano independente”. Para escritores como Georges Samné, um cristão ortodoxo de Damasco, apesar de haver uma ligação de ascendência direta dos fenícios, deveriam eles fazerem parte da nação da “Grande Síria”. Por outro lado, o já citado Moutran, apesar da “nação síria” separada dos árabes ser uma realidade, a “nação libanesa” deveria ser autônoma – se não independente, mesmo – em si, para que o “espírito empreendedor” dos antigos fenícios pudesse prosperar, livro tanto da prisão do interior árido quanto das tribos muçulmanas.

Desse modo, fica mais que claro que as supostas “origens fenícias” têm um apelo forte para a classe média cristã, inclusive com certo apoio político, pois além de lhes concederem a tão sonhada distinção para com seus vizinhos muçulmanos, também apresentam os fenícios como comerciantes – e o imigrante libanês (como os que vieram em massa para o Brasil), como uma espécie de “aventureiro fenício moderno”, indo fundar colônias no além-mar; enquanto isso, essas pretensões para a população muçulmana apenas encobriu as ambições imperialistas francesas, com a intenção de subverter o pan-arabismo e o Islã; isto, desde os primórdios da ocupação francesa na região, quando a ideologia já germinava e havia, entre os cristãos do Monte Líbano, não apenas uma animosidade anti-otomana, mas uma animosidade anti-árabe e até mesmo anti-islâmica. Seria tudo isto, todavia, realmente verdade, ou será apenas mais uma tentativa de formular um “mito originário”, sem pé nem cabeça? Iremos ver que a resposta é a segunda opção, e para isso iremos apresentar duas evidências: uma de natureza histórica e uma de natureza genética.

 

A evidência histórica

O renomado historiador libanês Fawwaz Traboulsi vê o fenicianismo como uma ferramenta que servia apenas aos interesses econômicos e políticos das elites maronitas. Não apenas isso, mas hoje em dia é consenso histórico na Academia mundial que os fenícios nunca existiram como uma comunidade autoconsciente, muito menos como uma nação ou algum tipo de unidade minimamente coerente, como queriam os libanistas e querem os fenicianistas. Muito pelo contrário: foram um caldeirão das diferentes comunidades, etnias  até mesmo religiões da região - principalmente populações indígenas canaanitas, mas também de outros povos que passaram a habitar as cidades-estado e os locais sob sua influência.

“Fenício” era apenas um rótulo genérico inventado por antigos autores gregos para a grande massa de hábeis (e ferozes) marinheiros levantinos que dominaram o comércio do Mar Mediterrâneo por eras, após, principalmente, a queda de Creta como potência marítima. Não há nenhuma instância conhecida de um fenício que se autodenomine “fenício”, isto é, enquanto um membro de uma coletividade em comum, ou qualquer outro termo coletivo. Em suas inscrições, eles se descrevem em termos de suas famílias e cidades individuais. Eles também não parecem ter uma cultura comum.

De fato, a realidade é que os fenícios eram o exato contrário de uma  coesa: cada cidade-estado era influenciada, para mais ou para menos, por uma grande metrópole de seu tempo ou por um a metrópole com quem mantivesse intensas relações comerciais. A cultura de Byblos, por exemplo, era muito influenciada pelo Egito, com seus governantes e nobres adotando não apenas costumes e indumentárias egípcias, mas até mesmo deuses egípcios para adorar; a cidade de Arados, por sua vez, assemelhava-se aos Sírios num geral e seus vizinhos: Ugaritas e Mesopotâmicos; já a arquitetura de Sidon inspirou-se na Grécia e na Pérsia, juntamente de seus habitantes; Tiro, por sua vez, era ao que nos parece ser a mais “canaanita” das cidades-estado, com sua cultura sendo primariamente deste mesmo grupo cultural, apesar de manter fortes laços com Jerusalém e Samaria.

O sarcófago do rei Ahiram de Byblos é apenas uma peça que exemplifica a influência egípcia na cidade.

A evidência genética:

Estudos genéticos mostraram que não há diferenças genéticas significativas entre libaneses muçulmanos e não-muçulmanos, os testes genéticos (feitos em 926 libaneses de diferentes origens religiosas) mostraram que o haplogrupo Y J*(xJ2) foi mais frequente no suposto região de origem muçulmana (Península Arábica) do que no Líbano, e também foi mais frequente em libaneses muçulmanos do que em libaneses não-muçulmanos. Por outro lado, o haplogrupo R1b foi mais frequente na suposta região de origem cristã (Europa Ocidental) do que no Líbano e também foi mais frequente em cristãos libaneses do que em não-cristãos libaneses. O haplótipo R1b STR mais comum em cristãos libaneses era altamente específico para a Europa Ocidental e era improvável que tivesse atingido sua frequência atual em cristãos libaneses sem algum tipo de mistura étnica.

Portanto, fica claro que não apenas as imigrações árabes do período pré-arábico introduziram genes árabes – uma vez que a existência de árabes é atestada até mesmo em fontes gregas e romanas, com um Imperador Romano nativo da Síria, Filipe, sendo chamado de “o árabe” – na região, como também que a expansão islâmica a partir da mesma península a partir do século VII E.C introduziu linhagens típicas dessa área naqueles que posteriormente se tornaram muçulmanos libaneses, enquanto a atividade dos cruzados nos séculos XI a XIII E.C introduziu linhagens da Europa Ocidental nos cristãos libaneses, ainda que ambos os grupos tenham genes árabes: os cristãos apenas os têm com menor frequência, e ambos os grupos detém, todavia, linhagens nativas da região em igualdade.

A disposição da influência europeia nos cristãos da região é evidenciada na própria historiografia dos Estados Cruzados, o Outremer (além-mar), para onde nobres, cavaleiros e camponeses frequentemente imigravam e, não raramente, não apenas adotavam os costumes da região, como também casavam-se e tinham filhos com os cristãos locais. Essa comunidade prosperou principalmente na Palestina, mas também na região do Líbano, que permaneceu sob controle cruzado mesmo após a queda de Jerusalém para o Sultão Saladino em 1187, juntamente aos principais portos costeiros para a Europa, muitos dos quais no próprio Líbano. Quatro cruzadas chegaram ao Líbano - a primeira, a segunda, a terceira e a sexta - e as principais populações que contribuíram foram os franceses, alemães, ingleses e italianos, como pode ser visto no mapa a seguir.

Acima, um mapa que ilustra (com datas aproximadas) os movimentos migratórios em direção ao Líbano durante a Idade Média: aos árabes, seguiram-se os europeus e, tardiamente, os turcos-otomanos.

 

Nenhuma variação adicional foi explicada por fatores geográficos, de nenhuma área em específico do Líbano; isto é: as diferenças – que são mínimas – são realmente variadas a partir das afiliações religiosas, mas como pudemos ver, a únicas diferença substancial entre os grupos é que os cristãos maronitas apresentam uma elevada mistura genética – portanto, étnica – com europeus ocidentais, advindos dos movimentos cruzadistas da Idade Média, enquanto os muçulmanos e druzos apresentam um background mais nativo, mais tribal, não só da Arábia (como os maronitas também apresentam, não nos esqueçamos), mas também da própria área.

Fica claro, então, para nós, que as reivindicações cristãs libanesas – não apenas maronitas, mas principalmente desta comunidade – sobre uma “nação fenícia” ou uma continuidade étnica entre o que se tem por “fenícios” na antiguidade são apenas uma estrondosa fábula de fabricação nacionalista e feita com o apoio da Europa para também legitimar a partição colonial do Levante – assim como fizeram também os britânicos no Iraque, fazendo-os crer que eram babilônicos, e não árabes – é no mínimo um grande exagero, uma hipérbole que muito poucos ainda levam a sério.

Bibliografia

  • ZALLOUA, Pierre A., "Y-Chromosomal Diversity in Lebanon Is Structured by Recent Historical Events", The American Journal of Human Genetics 82, 873–882, April 2008]
  • FIRRO, Kais M. (2004). Lebanese Nationalism versus Arabism: From Bulus Nujaym to Michel Chiha. Middle Eastern Studies, 40(5), 1–27. ]
  • EL-HUSSEINI, Rola (2012). Pax Syriana: Elite Politics in Postwar Lebanon.
  • SALIBI, Kamal S. (1971) "The Lebanese Identity" - Journal of Contemporary History1, Nationalism and Separatism :76-86.