Geraldo Sem Pavor: A incrivel aventura do El Cid português
Autor: David P. González 08/12/2020Texto de: David P. González
Os séculos medievais (XI-XIII) foram uma época de oportunidades para guerreiros ambiciosos, habilidosos e ousados. Como Rodrigo Díaz de Vivar, Geraldo Sem Pavor foi um aventureiro de fronteira daquele mundo mestiço e híbrido que foi a Península Ibérica na segunda metade do século XII, quando desenvolveu sua vertiginosa atividade guerreira.
As circunstâncias de parte desse período possibilitaram empreendimentos individuais de conquista, pois foi um tempo de expansão da civilização cristã e feudal, de ocupações e colonizações, de movimentos de fronteira, de surgimento de novos domínios, principados e reinos conquistados pela espada de povos não-cristãos. Normandos nas Ilhas Britânicas, sul da Itália e Sicília; Leoneses, castelhanos, aragoneses, catalães contra muçulmanos na Península Ibérica; Cavaleiros europeus no Oriente Próximo, no contexto das Cruzadas; os guerreiros alemães avançando para o leste no chamado Drang nach Osten são as principais cenas da grande expansão cristã que a Europa testemunhou naqueles séculos de formação.
A expansiva dinâmica feudal e a fragmentação de poderes facilitaram, em grande medida, o sucesso de comandantes aventureiros como Robert Giscard e seu irmão Roger de Hauteville, Rodrigo El Campeador ou Conde Bohemundo de Taranto, cada um atuando em contextos onde o poder foi desintegrado, disputado entre diferentes atores na briga. Este fenômeno começará a ser mais estranho a partir de meados do século XII, momento em que as monarquias feudais europeias vão se consolidando gradativamente, fortalecendo-se, graças, entre outras razões, à criação e fomento de ordens militares, concebidas como instrumentos reais para controlar grandes territórios e atuam, junto com os próprios reis, nesta expansão dos reinos cristãos. Templários e Hospitalários em diferentes partes da Europa e do Oriente Médio, Santiaguistas, Calatravos e Alcantarinos na Península Ibérica. Os cavaleiros teutônicos no contexto alemão viriam a impedir, ou melhor, tornar impossíveis, empreendimentos pessoais de conquista, como aqueles liderados pelos conquistadores mencionados anteriormente. Essas ordens militares, que combinavam ideais típicos da cavalaria com outros característicos dos monges, em grande parte ocasionariam o fim de um modelo de conquista majestosa e aventureira.
Mas até que as monarquias estivessem em posição de monopolizar o processo expansivo e até que as ordens militares fossem fortes o suficiente para atuar como agentes territoriais eficazes dos reis, esses senhores independentes tiveram suas janelas de oportunidade. Este fenómeno é especialmente visível na Península Ibérica do século XII, onde os reis foram reforçando as suas relações feudais com a nobreza, integrando também as ordens militares no empreendimento global da guerra santa contra os infiéis. No final daquele século XII era praticamente impossível para um cavaleiro comandante, como o Cid Campeador décadas atrás, ter a opção de conquistar um principado próprio, não sujeito a uma monarquia cada vez mais consolidada como instituição. O tempo dos aventureiros guerreiros conquistadores deu lugar ao dos reis, fortemente apoiado pela aristocracia guerreira, pelos frades das ordens militares e pelas milícias dos conselhos de fronteira.
Uma dessas janelas de oportunidade mencionadas foi aberta, aproximadamente a partir de 1162, a um senhor português chamado Geraldo Sem Pavor (Geraldo Sem Medo), que mais tarde será chamado por alguns historiadores portugueses de “El Cid português”. As realizações do cavaleiro comandante português podem ser comparadas às de Rodrigo Díaz? Aquele comandante aventureiro mereceria o apelido de “Cid”? Em parte sim e em parte não. Em parte, sim, porque o seu projeto pessoal e o modus operandi guerreiro que desenvolve guardam muitas semelhanças com algumas das ações e ambições do Cid castelhano. Em parte não, porque não terminou a sua obra, e por isso, entre outras razões, não geraria uma literatura heroica da magnitude, amplitude e profundidade daquela desenvolvida em torno da figura do Cid Campeador.
A Península Ibérica em meados do século XII. A ascensão e expansão dos almoadas
O século XII peninsular foi marcado por uma série de mudanças políticas que condicionaram as relações entre cristãos e muçulmanos. No ano de 1109, o imperador Afonso VI faleceu, deixando o trono para sua filha Urraca. Esse fato motivaria uma sangrenta guerra civil que abalou os reinos de Leão e Castela por um par de décadas, com a intervenção política e militar do rei aragonês Afonso I, o Batalhador, nos assuntos leoneses e castelhanos. Entretanto, os almorávidas, vindos do Magrebe, consolidavam o seu poder em al-Andaluz, lutando intensamente contra os reinos cristãos na fronteira, situados no Tejo e no Ebro. Os últimos anos do reinado de Afonso VII, coroado “imperador” no ano de 1135, assumiu uma certa estabilidade interna, o que permitiu aos territórios castelhanos e leoneses até então retirados retomar uma dinâmica ofensiva contra alguns almorávidas que, a partir de aproximadamente 1145, começarão a apresentar alguns sintomas de declínio.
A principal causa do fim dos almorávidas deve ser procurada, mais uma vez, no Norte da África. Ali, nos arredores de Sus, região localizada no sudoeste do Marrocos, um personagem chamado Ibn Tumart começou a pregar por volta de 1120 uma nova doutrina islâmica mais rigorosa, crítica ao relaxamento moral e religioso que os almorávidas haviam alcançado. Partindo de uma comunidade de fiéis, que o batizou de mahdi (“guiado por Deus”), ele começou a pregar uma interpretação nova e mais rígida do Alcorão, ganhando mais e mais fiéis a cada dia. O movimento almoada nasceu. Na sua morte, ele foi sucedido no imamato por Abd al-Mumin, uma figura importante que contribuiu com consistência militar para o que havia começado como um movimento puramente religioso. No auge de 1145, os almorávidas foram completamente derrotados no Norte da África. Esse novo império e califado almoada logo se voltaria para a Península Ibérica, estendendo-se também à Tunísia, Argélia e Líbia.
A gênese, expansão e consolidação do império almoada foi semelhante, em alguns pontos, ao que fora o movimento almorávida, passando de uma corrente religiosa inspirada por um intelectual, a um império militar com um poderoso impulso expansivo e baseado em a ideia e prática da guerra santa. Nesta dinâmica expansiva, os almoadas saltaram para a Península Ibérica em 1146, iniciando desde então lutas entre almorávidas e almoadas em al-Andaluz. Um ano depois, Alfonso VII, o Imperador, lançou um empreendimento cruzado que contou com o apoio naval das frotas genovesas e pisanos, e que resultou na curta conquista de Almería. A partir daí o estabelecimento almoada será imparável, embora surjam importantes focos de resistência almorávida, especialmente nas regiões de Granada e Múrcia, onde líderes como Ibn Hamusk e, especialmente, Ibn Mardanish, o Rei dos Lobos, resistirão ao impulso almorávida graças, entre outras coisas, o apoio recebido de nobres e cavaleiros castelhanos, navarros, aragoneses e catalães.
Em 1157 morreu Afonso VII, que conseguiu unificar e dar força ao reino de Leão-Castela. Mas antes de morrer, ela decidiu dividir seus reinos entre seus dois filhos homens. Ele deu a Fernando o reino de Leão, Sancho o de Castela. No ano seguinte, os dois irmãos se encontraram na cidade leonesa de Sahagún para negociar as linhas de expansão contra os muçulmanos que ambos os reinos executariam a partir de agora. A Via de la Plata seria o limite, estabelecido no tratado de Sahagún, que separaria León de Castela, e também as áreas de futura conquista de ambos os reinos. As disputas entre os dois reinos cristãos logo começariam, especialmente após a morte prematura de Sancho de Castilla (Sancho II). Duas poderosas casas nobres, Lara e Castro, realizarão duras disputas pelo poder nestes reinos mais uma vez divididos, lutando para controlar um novo rei castelhano ainda muito jovem, Afonso, o oitavo de seu nome, que décadas depois chefiará um exército de cruzados que derrotará os almoadas em Navas de Tolosa.
Enquanto isso, na península ocidental, o conde Afonso Henriques tomava medidas para transformar o condado de Portugal em um verdadeiro reino. Em 1139 ele derrotou os almorávidas na batalha de Ourique, após o que seus homens o saudaram como um verdadeiro rei. De fato, Afonso Henriques, filho do conde Enrique de Borgonha e da condessa Teresa, filha de Afonso VI, atuaria a partir de agora, e mais do que até então, como um rei de fato, e portanto seria considerado por seus súditos, um verdadeiro rei. A nova divisão entre Leão e Castela, e as disputas entre os dois reinos, dariam impulso a um reino de Portugal que não seria oficialmente reconhecido pelo Papa Alexandre III até o ano de 1179, através da bula Manifestus Probatum. Anteriormente, em 1143, Afonso Henriques havia se submetido à vassalagem do imperador leonês Afonso VII, que desde então o reconheceu como Rei de Portugal.
Tensões portuguesas com o reino de Leão. Geraldo Sem Pavor entra em cena
Em 1163 Abdal Mumin, o primeiro califa almoada, faleceu e será sucedido por seu filho Yusuf I (Abu Yacub Yúsuf), que até então ocupava o cargo de governador de Sevilha, e por isso conhecia bem os assuntos peninsulares. Essa ascensão ao califado de Yusuf I coincidirá com o surgimento do personagem de que trataremos aqui, Geraldo, denominado em sua época Sem Pavor, e muito mais tarde o “El Cid português”. E é que começamos a ter notícias das ações de Geraldo por volta de 1165, sete anos depois de os reis de Leão e Castela terem comprovado a divisão da expansão contra os muçulmanos no tratado de Sahagún acima mencionado. Aquele tratado entre Fernando II e Sancho II não contemplava Portugal, aliás, os territórios deste incipiente reino, ainda não reconhecido pelo Papa, também foram incluídos na divisão, correspondente àquela área de expansão, “até Lisboa”, ao reino de Leon. Isso irritaria profundamente Alfonso Henriques, já que o tratado de Sahagún ameaçava seriamente a consolidação de Portugal como reino e sua futura expansão contra os muçulmanos. É por isso que Henriques vai mover uma peça chamada Geraldo, uma vez que teve os Templários portugueses empenhados na luta contra os almoadas nas fronteiras do Tejo, no Alentejo. No ano de 1147 Afonso I conquistou a importante praça de Lisboa, graças à ajuda internacional das cruzadas, no âmbito da chamada Segunda Cruzada, e a partir desse momento a fronteira portuguesa contra os muçulmanos tinha sido fixada na linha do Tejo. Mas no auge de 1165 é possível que o monarca português se preocupasse mais com outra fronteira, aquela que marcava os limites de seus territórios com o vizinho reino de Leão.
Aquele ano de 1165 foi importante de várias maneiras. Tentando reduzir as tensões fronteiriças entre Leão e Portugal, o casamento da Infanta Urraca, filha de Afonso Henriques, com Fernando II de Leão foi sustentado. Mas tal casamento não diminuiria muito as tensões entre os dois reinos. Empurrados por uma aristocracia ambiciosa, os dois monarcas, agora sogro e genro, passaram a atuar na faixa territorial que separava os dois reinos. Entre 1166 e 1168 Afonso Henriques atacou o reino de Leão na Galiza, ocupando algumas praças leonenses. Naqueles mesmos anos, Fernando II repovoou e fortificou Ciudad Rodrigo, muito perto da fronteira, e arrebatou aos almoadas as praças de Alcântara e Alburquerque, colocando Leão como cunha em territórios de expansão natural portuguesa. O rio Minho funcionou como uma fronteira natural entre os dois reinos ao norte, enquanto as fronteiras leste-oeste foram definidas por uma linha de importantes populações leonesas e posições de norte a sul: Zamora, Ledesma, Ciudad Rodrigo, Coria, Alcantara e Alburquerque.
A conquista leonesa de pontos como Alcántara e Alburquerque também foi possível em virtude de outro fator que nos ajuda a entender melhor a atuação de Geraldo Sem Pavor durante os anos de 1165 a 1169, que detalharemos a seguir. E é que neste intervalo a presença almoada no chamado Garb al-Andalus, as terras ocidentais de al-Andaluz, era escassa, frágil e fraca. Naquela época, o poder califal almoada concentrava-se nas lutas com o rebelde Ibn Mardanish, o rei Lobo, no Sharq al-Andalus, ou setor oriental de al-Andaluz, que tinha o epicentro de seu domínio em torno de Murcia. Isso explica porque o poder califal almoada concentrou suas forças militares e sua atenção nessa área preocupante, pois o rei Lobo chegou a ameaçar se expandir por Granada e Córdoba, onde ocorreram duras lutas entre os almoadas e os últimos resquícios do poder almorávida, encarnado por senhores locais anti-almoada.
Tudo isso levou ao fato de que, naqueles anos, o Garb al-Andalus era um espaço desestruturado, uma área ampla onde havia um vácuo evidente de poder sólido. Esta ausência de autoridade foi aproveitada por Geraldo Sem Pavor para levar a cabo uma rápida sucessão de conquistas de diferentes posições almoadas fortificadas, localizadas no Antentejo português e na “Mesopotâmia” Extremadura, espaço entre os rios Tejo e Guadiana na atual região da Extremadura. Esta captura vertiginosa de fortalezas foi possibilitada pela ausência de um poder sólido almoada. Mas também graças à astúcia, audácia e coragem de seu protagonista, Geraldo Sem Pavor, cujas atuações conhecemos da crônica do pró-almoada e do historiador contemporâneo: Ibn Sahib al-Sala. E é que a obra deste autor é a principal fonte, e quase a única, para conhecer em detalhe as ações do misterioso cavaleiro comandante português.
“O cão Giraldo” e operações especiais ou de comando
Como é possível que um guerreiro praticamente desconhecido conquistasse em apenas quatro anos, entre 1165 e 1169, e nesta ordem, castelos e fortalezas como Trujillo, Évora, Cáceres, Montánchez, Serpa, Jurumeña, Santa Cruz de la Sierra, Monfrague e Alconchel? Ibn Sahib al-Sala ilustra essa habilidade, descrevendo a tática usada por Geraldo para obter o controle de posições fortificadas. Essa tática seria baseada na surpresa, noturnidade, furtividade, ousadia e um ótimo treinamento de seus homens para desenvolver performances que podem ser consideradas autênticas operações de comando:
“O cachorro Giraldo caminhou em noites chuvosas e muito escuras, com vento forte e neve, em direção às cidades. Ele havia preparado seus instrumentos de escadas de madeira muito compridas, que ultrapassavam os muros das cidades, e aplicou essas escalas na lateral de uma torre e as escalou pessoalmente, o primeiro, até o topo da torre e levou a sentinela e ele. Ele disse: “Grite como é seu costume”, para que as pessoas não descobrissem. Quando a escalada de seu miserável grupo até o topo da muralha da cidade foi completada, eles gritaram em suas línguas com um grande grito execrável, entraram na cidade e lutaram contra aqueles que encontraram e a roubaram, e apreenderam todos os que foram encontrados fazendo-os cativos e prisioneiros”.
Desta forma, Geraldo Sem Pavor criou em quatro anos um senhorio virtual em terra de ninguém, numa zona fronteiriça onde o poder almoada era muito fraco e onde não chegava a influência de Leão, Castela e Portugal, reinos que então eles lutavam entre si e eram afetados por alguns problemas internos. Geraldo aproveitou sua janela de oportunidade para dominar, do alto de suas serras e cordilheiras, um vasto território por onde suas esquadras de cavalaria se moveriam rapidamente, vivendo de saques baseados em ataques lançados contra populações rurais e agrícolas.
Geraldo Sem Pavor havia surgido, sido comprovado e operado porque o rei português, Afonso Henriques, lhe dera o poder em uma área sem poder. Teria começado a atuar nesses territórios porque o monarca português lhe havia concedido o comando e uma certa independência, uma autonomia de critérios que o comandante guerreiro soube aproveitar em quatro anos. Teria o rei português prometido a posse e governo das terras que pudesse conquistar naquele espaço? O rei teria assegurado ao comandante que o faria conde ou tenente daquele território? Não sabemos a que acordos eles fizeram, mas podemos intuir que Geraldo foi incentivado por Afonso, e que lhe daria ampla margem de autonomia de ação e critérios, mesmo apontando os pontos, ou não, que ele deveria controlar com seus guerreiros. O cronista áulico almoada, Ibn Sahib al-Sala, nos ilumina novamente:
“Afonso, filho de Enrique, o traidor galego, senhor de Coimbra, testemunhou a bravura deste cão, Geraldo, e nomeou-o para trair as cidades e castelos, que o apontou com os seus homens, e lhe deu poder sobre os muçulmanos nas fronteiras com seus terrores ”.
Mas para transformar um senhorio virtual em verdadeiramente consolidado, Geraldo precisava ser dono da única cidade importante naquele vasto espaço: Badajoz. E é que Badajoz era então a única e verdadeira cidade existente no vasto território dominado por Geraldo desde as suas diversas posições, e era aí onde a presença almoada era mais sólida. Eram muitos quilômetros que separavam Badajoz de Sevilha, cidade bem conhecida de Yusuf I, que acabaria por a converter na capital almoada da Península Ibérica. Badajoz estava isolada, solitária, porque o poder do califa almoada estava concentrado em outras guerras. Geraldo aproveitou a situação para lançar-se à cidade de Badajoz, utilizando uma base de operações que recentemente havia arrebatado seus adversários: Jurumeña.
O leão ameaçado reage. A embaixada de Sevilha de Fernando Rodríguez de Castro el Castellano
Dessa posição, Jurumeña, situada nas falésias a jusante do Guadiana, Geraldo Sem Pavor espremeu com as suas incursões os arredores de Badajoz, preparando o terreno para sitiar a cidade. Enquanto isso, Fernando II de Leão passava por problemas e precisava mais do que nunca de alianças, pelos atritos fronteiriços com Portugal, pelos conflitos com Castela e, principalmente, pelas conquistas de Geraldo na sua linha natural de expansão para o sul. E é que esta expansão territorial leonesa contra os muçulmanos, e com ela a própria sobrevivência do reino, ficaria seriamente comprometida se Afonso Henriques consolidasse sua presença na atual Extremadura através do feudo amigo de Geraldo. O único aliado que restou a Fernando II foi o califa almoada, por isso mandou a Sevilha, sede do poder califal, quem foi possivelmente o seu homem mais poderoso e valioso, Fernando Rodríguez de Castro, “o Castelhano”, um dos magnatas cristãos mais proeminentes do momento. Fernando Rodríguez era um nobre ambicioso. De origem castelhana, tinha-se confrontado com os reis de Leão e de Castela, e com a casa nobre que governava o poder real castelhano, a casa de Lara, os tutores e protetores do menino Afonso VIII.
Rodríguez de Castro ficou alguns meses em Sevilha, defendendo os interesses do rei Fernando e, talvez até mais, os seus. Geraldo, entretanto, atormentava e pressionava Badajoz com suas cavalgadas e “seus terrores”. Há pouco menos de cem anos, outro ilustre castelhano, Rodrigo Díaz, o Campeador, desfrutou da hospitalidade muçulmana em Sevilha por alguns meses. Rodrigo viera para lá em 1079 enviado por seu rei, Afonso VI, para recolher os párias que o rei da taifa na época devia ao poderoso soberano castelhano-leonês. Fernando Rodríguez procurou naquela vez solidificar uma aliança com o califa almoada Yusuf I. Ibn Sahib al-Sala relata que “o líder cristão Fernando”, “senhor de Trujillo” (ainda não era senhor de Trujillo, mas era quando o cronista escreveu a sua crônica), “famoso entre os cristãos por sua linhagem e coragem … chegou a Sevilha (junho-julho de 1168) … com o desejo de se tornar um servo do Amir al-Muminin … deixando a companhia dos infiéis”. Ele ficou cinco meses em Sevilha com sua mesada, rodeado de luxos e presentes. Lá, afirma o cronista, “seu coração se amoleceu com grandes dons, até que quase se islamizou e prometeu a Deus ser um fiel conselheiro do poder almoada com o melhor serviço, e se submeteu e prometeu que não racionaria o país almoada e seria para eles seu apoio e aliado dos muçulmanos”, e saiu cheio de doações e homenagens. O melhor “presente” que receberia Fernando Rodríguez de Sevilha seria um acordo de ajuda militar mútua, pacto que no futuro será proveitoso para o rei Fernando II e para o próprio magnata castelhano.
Batalha em Badajoz
Entre os meses de março e abril do ano 1169, Geraldo conseguiu dominar a maior parte de Badajoz. Os almoadas resistiram apenas na cidadela, sitiada pelo comandante português. Geraldo concedeu uma trégua condicional aos sitiados, um período de não agressão para os cercados buscarem ajuda no exterior, com a promessa de entregar a cidadela se passado o prazo o socorro não fosse recebido. Fernando II recebeu pedidos de ajuda dos almoadas sitiados e partiu com as suas tropas para Badajoz, acampando nas proximidades. O rei português Afonso Henriques também tinha ido a Badajoz para apoiar militarmente o seu comandante no cerco. Os defensores almoadas conseguiram abrir, secretamente, uma brecha nas muralhas de Badajoz, através da qual um grupo conseguiu chegar secretamente a uma das portas da muralha exterior e abri-la para a passagem das tropas leonesas. Naquela época, Geraldo e os portugueses haviam conseguido dominar o espaço entre o primeiro recinto amuralhado e a própria cidadela, onde resistia a guarnição almoada. Quando as tropas leonesas conseguiram penetrar no espaço português, travou-se uma dura batalha, que teve consequências desastrosas para os portugueses:
“… e eles lutaram dentro da cidade com os cristãos, e os almóadas sitiados ajudaram os companheiros de Ferdinand … Os companheiros de Ferdinand, o pegajoso, lutaram com os muçulmanos contra o exército de Ibn al-Rink, até que Deus os derrotou … ”
O rei português foi obrigado a fugir às pressas e, na sua retirada, sofreu um forte golpe na perna com uma das grades que serviam para trancar o portão da muralha por onde fugia. Inconsciente com o impacto, Afonso Henriques foi capturado por seus inimigos. Geraldo também foi capturado pelos leoneses durante o confronto. O monarca português havia sido derrotado pelo próprio genro, com a ajuda dos almoadas, e em troca de sua liberdade teve que entregar a Fernando II as posições fronteiriças de Limia e Torón. Geraldo conseguiu recuperar a liberdade em troca de ceder todas as suas conquistas aos leoneses. O grande beneficiado acabou sendo Fernando Rodríguez de Castro, que dali em diante seria o dono de todo aquele feudo virtual que Geraldo conseguiu estabelecer. Rodríguez de Castro se estabeleceria em Trujillo, centro de seu poder, e doravante será chamado de “senhor de Trujillo”. Fernando II deixou a situação como estava. De acordo com o fato de Badajoz ter permanecido nas mãos almoadas, pensando que no futuro seria mais legítimo para ele conquistar a cidade dos muçulmanos do que dos cristãos, retirou-se para o seu reino. Seu sogro, Afonso Henriques, estava tão gravemente ferido naquele dia, com uma perna fatalmente fraturada, que nunca mais poderá cavalgar direito. A partir daí terá de ser o seu filho, o Infante Sancho, comandante-chefe dos exércitos portugueses.
Fortificação de Badajoz e novas tentativas de Geraldo Sem Pavor (1170-1173)
Califa Yusuf compreendeu que esteve muito perto de perder a importante praça de Badajoz. É por isso que nomeia um novo governador da cidade, Abu Yahya, a quem ele confia para adotar medidas para fortalecer essa posição-chave, garantir o abastecimento de água dentro da cidadela e guarnecê-la com guerreiros. Um cerco como o sofrido poderá repetir-se num futuro não muito distante, e os adversários poderão voltar a ser os portugueses comandados por Geraldo e apoiados pelo seu rei ou, quem sabe, pelo reino de León. Abu Yahya foi rápido em obedecer às ordens de seu califa:
“O poder altíssimo mandou-o cavar um poço, dentro da cidadela da cidade de Badajoz, para onde levaria a água do rio, impedindo-o do que se temia de ataques e cercos. Ele foi até lá com uma famosa e numerosa tropa de almoadas e soldados andaluzes, e se instalou nela e consolou seus habitantes de sua tristeza anterior, e se esforçou para cavar o poço com mineiros e trabalhadores, e é conhecido pelo povo por a Kuraya (“a Coracha”), e conduziu a água até ela, e a cidadela foi fortificada e almas e segurança foram confiadas a ela”.
Geraldo Sem Pavor não demorou um ano para retomar as hostilidades contra Badajoz. Desta vez, ele desenvolverá uma estratégia inversa à anterior. Se anos atrás tinha conquistado várias praças para depois focar em Badajoz, desta vez iria desde o início até à pérola central daquele colar, à cidade mais importante de todo aquele território. Os lugares que antes havia conquistado estavam agora nas mãos de Fernández de Castro, que teria tentado impedir que fossem novamente assaltados e tomados pelo comandante português. Geraldo escolheu como principal base de operações a posição de Lobón, situada a cerca de 40 quilómetros de Badajoz, seguindo o curso do Guadiana para leste. De lá, ele lançou cavalgadas contra a vizinhança de seu objetivo, para drenar seus recursos, impedir o abastecimento e, assim, preparar o terreno para um cerco subsequente. O atrito não demorou a ser sentido em Badajoz, de tal forma que foi necessário que o governador almoada tentasse neutralizar os ataques lançados por Geraldo Sem Pavor. O governador Yahya, em certa ocasião, lançou-se contra as tropas de Geraldo, que fingiram fugir e conduziram os almóadas a uma emboscada na qual foram derrotados. O irmão do cronista Ibn Sahib al-Sala, que estava naquele jogo, foi preso e só pôde recuperar a liberdade pagando a elevada cifra de 300 dinares. Não é de estranhar que o historiador almoada manifeste tanto ódio pelo guerreiro português.
Badajoz já sentia os efeitos da escassez e da fome. Geraldo tentou com suas cavalgadas que nenhum suprimento chegasse ao povo de Badajoz. Ibn Sahib al-Sala relata claramente esta situação de urgência, para dizer que “a fragilidade da cidade de Badajoz aumentou devido à falta de comida ali, devido ao assédio do maldito estrangeiro, Geraldo, contra ela com ataques, e interceptação de entrada nele de disposições ”. Por isso as autoridades almoadas foram obrigadas a abastecer Badajoz a partir de Sevilha, com o envio de um comboio de “cinco mil mulas carregadas de alimentos, forragem e armas”. Geraldo pôs-se a caminho para interceptar aquela procissão e para isso emboscou com seus homens em uma posição estratégica e acidentada perto da atual cidade de El Valle de Matamoros, a 66 quilômetros de Badajoz, a caminho de Sevilha. Nessa armadilha Geraldo Sem Pavor dispersou o contingente almoada, apreendeu os suprimentos. O governador Yahya morreu naquele acidente. É possível que o nome da atual cidade venha do massacre de muçulmanos (“mouros”) perpetrado por Geraldo e seus homens nas proximidades da cidade. Esses eventos ocorreram em maio de 1170, um ano depois que Geraldo e Afonso Henriques foram derrotados por leoneses e almoadas em Badajoz.
Durante os meses seguintes, o assédio de Geraldo a Badajoz continuou, até que o poder almoada reagiu novamente. Para isso, as tropas almoadas estabeleceram como objetivo as duas principais posições de onde o comandante português assediava a cidade, Jurumeña e Lobón, ao mesmo tempo que enviava novos comboios de suprimentos. Jurumeña foi conquistada pelos almoadas no outono de 1170 e Lobón um ano depois.
O fim de Geraldo Sem Pavor
Os últimos anos de Geraldo Sem Pavor são bastante sombrios. É muito pouco, quase nada, o que sabemos dessa época. Sabemos que em algum momento ele foi derrotado pelos almoadas, talvez em 1173 ou 1174, e possivelmente capturado por eles em alguma ação. Nós o encontramos novamente agindo como um mercenário a serviço dos almoadas no Marrocos, onde ele teria sido deportado após sua prisão. Na região do Vale do Sus, onde Ibn Tumart iniciou o movimento almoada décadas antes, ele recebeu terras em troca de lutar contra os levantes anti-almoada que estavam ocorrendo naquela região. Não se sabe porque, mas por volta de 1176 ele foi condenado à morte e decapitado. Um cronista cristão posterior, familiarizado com a situação internacional no final do século XII e início do século XIII, assegura que Geraldo, “empobrecido e desprovido de qualquer ajuda, refugiou-se junto aos sarracenos, aos quais havia infligido muitos danos, e por causa do que foi decapitado em terras marroquinas com um pretexto trivial ”. Especula-se a possibilidade de que, daquele novo destino marroquino, Geraldo pudesse entrar em contato com seu rei, para propor um plano de invasão àquelas terras férteis do vale do Sus, ou que foi Afonso Henriques quem contatou seu ex-vassalo, para que viesse a preparar um desembarque português de lá. Quando o plano de Geraldo foi descoberto, ele teria sido executado. Os últimos dias de Geraldo, como seus primeiros anos de vida, suas origens sociais, sua origem geográfica, suas relações com Afonso Henriques… são questões que permanecem na névoa e no mistério.
Pouco sabemos sobre este personagem enigmático, que soube consolidar o seu domínio nas terras da atual Extremadura e do Alentejo português. Se não fosse pela crônica de Ibn Sahib al-Sala, suas ações seriam praticamente desconhecidas para nós, embora outros traços de memória dele permaneçam. Onde a memória de Geraldo Sem Pavor mais se preservou é na bela cidade de Évora, conquistada por ele com a sua tática surpreendente e ousada. Esta cidade com tanta história preserva a memória de seu primeiro conquistador cristão em seu escudo heráldico, no qual o guerreiro é representado em atitude combativa, a cavalo, nas cabeças decapitadas de dois muçulmanos, um homem e uma mulher. Podemos encontrar também em Évora um canto que leva o seu nome, mesmo uma estátua que representa o guerreiro segurando a cabeça decepada de um muçulmano, alguns daqueles que teriam sido vítimas das suas ações bélicas e dos seus “terrores”.
Um El Cid português?
Embora Geraldo Sem Pavor não tenha gerado toda a torrente de literatura heroica e mitologias posteriores que Rodrigo Díaz deu origem, a verdade é que ambos os personagens guardam alguma semelhança. Ambos aproveitaram momentos e lugares onde não havia um poder bem definido e estabelecido, onde a autoridade se desintegrou. Ambos tentaram, com sucesso desigual, conquistar e consolidar seu próprio domínio com base em sua capacidade de comandar anfitriões e seu talento militar. Rodrigo completou a sua empresa graças à conquista de Valência, Geraldo chocou-se contra as paredes da cidadela de Badajoz, a maior da Europa, e foi vítima de uma aliança de almoadas e leoneses. Ambos exploraram a intensa e persistente razia para enfraquecer seus objetivos militares e manter seus exércitos. Ambos eram ousados e inteligentes, reunindo tradições e concepções cristãs e muçulmanas. Em suma, os dois eram homens de fronteira em um contexto de convulsão e guerra, em um mundo no qual o cristão e o muçulmano não se diferenciavam muito nesses contextos fronteiriços tumultuados e mutáveis.
BIBLIOGRAFIA
- AGUILAR SEBASTIÁN, Victoria: “Aportación de los árabes nómadas a la organización militar del ejército almohade”, en al-Qantara, XIV (1993), pp. 393-415.
- IBN SAHIB AL-SALA: al-Mann bil-Imama, estudio preliminar, traducción e índices de Ambrosio Huici Miranda, Valencia, Anubar, 1969.
- CRESSIER, Patrice, FIERRO, Maribel y MOLINA, Luis (eds.): Los almohades: problemas y perspectivas, 2 vols, Madrid, CSIC, 2005.
- Crónica latina de los reyes de Castilla, traducción de Luis Charlo Brea, Madrid, 1999.
- HUICI MIRANDA, Ambrosio: Historia Política del Imperio Almohade, edición facsímil, estudio preliminar de Emilio Molina López y Vicente Carlos Navarro Oltra, Granada, 2000.
- LAPIEDRA, Eva: “Giraldo Sem Pavor, Alfonso Enríquez y los almohades”, en Fernando Díaz Esteban (ed.), El reino taifa de Badajoz, Madrid, 1996, pp. 147-158.
- LOPES, David: “O Cid portugués: Geraldo Sempavor”, en Revista Portuguesa de História, 1 (1941), pp. 93-110.
- PORRINAS GONZÁLEZ, David: “La actuación de Giraldo Sempavor al mediar el siglo XII: un estudio comparativo”, en Julián Clemente Ramos y Juan Luis de la Montaña Conchiña (eds.), II Jornadas de Historia Medieval de Extremadura. Ponencias y Comunicaciones, Mérida, 2005, pp. 179-188.
- PEREIRA, Armando da Sousa: Geraldo Sem Pavor. Um guerreiro de fronteira entre cristaos e muçulmanos, c. 1162-1176, Oporto, 2008.
- VIGUERA MOLINS, María Jesús y otros: El retroceso territorial de al-Andalus. Almorávides y almohades, siglos XI al XIII, Historia de España Menéndez Pidal, Tomo VIII-III, Madrid, 1997.
Fonte: Desperta Ferro