O Islã é uma religião que hoje possui quase 2 bilhões de fiéis pelo mundo inteiro. Esse número é, sem dúvidas, altamente expressivo, porém não podemos esquecer que a história da religião islâmica acompanha a humanidade há mais de 1400 anos. Nesse período, muito ocorreu na história dessa religião, tanto positiva quanto negativamente. Esses acontecimentos, contudo, sempre foram fomentados, criados e produzidos por pessoas com diferentes graus de influência nessa história milenar e riquíssima que o Islã possui. Dentre esses indivíduos que moldaram a história islâmica e modificaram seu futuro, encontramos Muhammad Ibn Abdul Wahhab, um dos principais nomes do Islã contemporâneo.

Nascido na atual Arábia Saudita do século XVIII (1703), Ibn Abdul Wahhab provinha de uma família de juristas islâmicos, sendo seu pai, Sulayman Ibn. Muhammad, um jurisconsulto da escola de jurisprudência Hanbali, enquanto seu avô, Abdul Wahhab, havia sido um juiz também da mesma escola. Como era de se esperar, seus primeiros aprendizados dentro da religião vieram diretamente de seu pai, que lhe ensinou o Alcorão e o básico da jurisprudência Hanbali e de teologia islâmica.

Ibn Abdul Wahhab nasceu na vila de Uyayna no clã dos Banu Tamim, em Najd, região central do que hoje é a Arábia Saudita. O local em que Ibn Abdul Wahhab nasceu não possuía um histórico de boa formação islâmica, sendo esse um dos motivos pelo qual a sua educação nas ciências da religião havia sido muito modesta em sua juventude. Mais tarde sairia da região de Najd, o que para alguns foi motivado pela sua indignação à prática de veneração aos santos, onipresente em todo o mundo islâmico, inclusive em regiões como a humilde Najd. Assim, motivado pela sua indignação [1] com a veneração aos santos, posteriormente viajaria para outras localidades para ver se essa prática era de fato universal.

Deixando Uyayna, Ibn Abdul Wahhab peregrinaria à Meca, onde novamente iria divergir das opiniões dos estudiosos da religião. Após Meca, iria para outra cidade sagrada do Islã, Medina. Foi em Medina que sua vida tomaria um rumo diferente de outrora, pois seria ali que viria a conhecer Abdallah ibn Ibrahim al-Najdi, partidário dos pensamentos de Ibn Taymiyyah, pensador medieval muito controverso dentro do mundo islâmico e considerado heterodoxo e até mesmo herege em alguns pontos.

Ibn Abdul Wahhab  seria ainda introduzido por Abdallah ibn Ibrahim à Mohammad Hayya al-Sindhi da ordem sufi Naqshbandi, sendo recomendado como estudante. Depois de Medina, Ibn Abdul Wahhab iria para Basra no Iraque, e de lá voltaria para sua terra natal.

Novamente em Uyanya, Ibn Abdul Wahhab conseguiria atrair próximo de si alguns seguidores, inclusive o próprio governante local, Uthman ibn Muammar. A aliança formada entre Ibn Muammar e Ibn Abdul Wahhab foi importante por vários motivos. Primeiro, ela prenunciava a aliança posterior entre Muhammad Ibn Saud e Ibn Abdul Wahhab que levaria à fundação do primeiro estado saudita, que permanece intacto hoje como o terceiro estado saudita. Essa foi uma tática adotada por muitos outros reformadores do século XVIII em todo o mundo muçulmano. A formação de uma aliança político-religiosa não era exclusiva de Ibn Abdul Wahhab e seus seguidores.

Em segundo lugar, essa aliança deixou clara a base religiosa para o movimento político que cresceu a partir dos ensinamentos religiosos de Ibn Abdul Wahhab e que, por fim, ficou conhecido como wahabismo. O importante nessa visão religiosa, conforme foi traduzida na esfera política, é que o líder deve proclamar e aderir ao princípio do tawhid. Ou seja, todo poder terreno deve necessariamente partir do reconhecimento da unicidade de Deus como ela foi entendida por Ibn Abdul Wahhab, indo de contra ao Islã majoritário, tanto sunita quanto xiita, estabelecido até então.

A terceira questão importante a respeito deste período é o fato de que três atos que passaram a simbolizar o movimento wahhabi ocorreram durante ele. Esses atos foram o corte de uma árvore sagrada, a destruição de um túmulo [2] e o apedrejamento de uma mulher adúltera. Todos esses atos refletiram a aplicação prática da mensagem de Ibn Abdul Wahhab sobre o tawhid. Esses atos também passaram a ser considerados a marca registrada do movimento wahhabi e de exemplos proeminentes do tipo de extremismo gerado pelos ensinamentos de Ibn Abdul Wahhab na posteridade. Eles não apenas tornaram Muhammad Ibn Abdul Wahhab famoso em sua época, mas também tornaram ele e o movimento de seus seguidores infames ao longo dos séculos e em todo o mundo até os dias de hoje.

Contudo, Ibn Abdul Wahhab seria expulso de Uyanya após Sulaiman ibn Muhammad ibn Ghurayr, um grande chefe local, dar um ultimato em Ibn Muammar para expulsar ou matar o pregador extremista, prevendo toda carnificina que suas ideias trariam. Assim, temendo por prejuízos financeiros, Ibn Muammar expulsaria Muhammad Ibn Abdul Wahhab de Uyanya.

Após sua expulsão, Ibn Abdul Wahhab teria sido convidado a se estabelecer em Diriyah por Muhammad ibn Saud. Seria com ibn Saud que Ibn Abdul Wahhab teria sua maior aliança. O acordo foi firmado com um juramento mútuo de lealdade (bayah) em 1744. Ibn Abdul Wahhab seria o responsável pelos assuntos religiosos e Ibn Saud, pelas questões políticas e militares. Este acordo tornou-se um "pacto de apoio mútuo" e de divisão de poderes entre a família Saudita e os seguidores de Ibn Abdul Wahhab, perdurando há mais de 300 anos e sendo o “alimento” ideológico do Estado Saudita.

Esse acordo entre os dois marcaria o surgimento do primeiro Estado Saudita, o Emirado de Diriyah. Assim, Ibn Abdul Wahhab ofereceria à ibn Saud uma missão religiosa, sendo esse o ímpeto ideológico necessário para que o Estado se expandisse. Assim viriam a conquistar Najd e as forças de Al Saud expandiram a influência Wahhabi para a maior parte do território da atual Arábia Saudita, erradicando várias práticas populares que consideravam semelhantes ao politeísmo e propagando as doutrinas do wahabismo.

O pensamento de Ibn Abdul Wahhab

Que Muhammad ibn Abdal Wahhab ibn Abdal Wahhab foi um autor de extrema influência, isso é incontestável. Sua influência no Islã contemporâneo é imensa, e por conta disso, se faz necessário expor e compreender o que o mesmo defendia e propunha. Contudo, não é uma tarefa fácil, uma vez que o Islã é uma religião extremamente rica e com inúmeros detalhes intrincados. Assim, para melhor ilustrar sua influência, separamos algumas das principais opiniões de Ibn Abdul Wahhab que podem inclusive ser vistas hoje em dia em alguns de seus seguidores.

Ibn Abdul Wahhab e o Tawhid

Que a doutrina do Tawhid, ou da unicidade de Deus, é algo essencial e central dentro do Islã, isso é inegável. A sua importância e centralidade não se dá apenas no “Islã Wahhabi”, mas em todas as vertentes islâmicas, sejam elas Sunitas, Xiitas ou de “terceira via”. Para Muhammad Ibn Abdul Wahhab, porém, essa doutrina fundamental do Islam não estava sendo frisada o suficiente pelos seus contemporâneos, motivo pelo qual escreveu o seu mais famoso tratado teológico, o Kitab at-Tawhid, ou O Livro da Unicidade [de Deus].

Nessa obra, seu Magnum opus, ele citaria inúmeras passagens corânicas e dos livros de ahadith para provar o seu ponto a respeito da unicidade de Deus e os demais aspectos interligados com essa doutrina, que segundo ele era mal compreendida pelos muçulmanos do mundo inteiro até então, que se encontravam numa espécie de ‘’paganismo’’.

Conforme Delong-Bas (2004), a doutrina que mais diferencia o Islã das demais religiões é a estrita aderência a um monoteísmo absoluto, aqui denominado de tawhid. Tal doutrina se encontra na própria proclamação de fé islâmica, a shahada, onde o muçulmano afirma que não há qualquer divindade além de Deus. Como consequência do descumprimento de algo tão básico e essencial da fé islâmica, portas poderiam ser abertas para a dúvida ou até mesmo críticas por parte de outros fiéis sobre a autenticidade da crença do “muçulmano” que não vive de acordo com os ditames da doutrina do tawhid.

Foi por essa razão que os movimentos reformistas e reavivadores do século XVIII insistiram firmemente que um “retorno” ao monoteísmo era o primeiro passo necessário para reformar o Islã. Isso significaria livrar-se de crenças e práticas estranhas e supersticiosas. O Wahhabismo compartilhava dessa preocupação e objetivo comuns, tornando-se famoso por sua adesão estrita ao tawhid (DELONG-BAS, 2004, p. 9) [3].

Muito embora Delong-Bas (2004) considere que não houvesse nada de militante ou violento no cerne dos movimentos reformistas islâmicos do século XVIII, mas sim um resgate aos fundamentos da religião (Alcorão e Hadith) contra desenvolvimentos ao longo dos séculos e que os reformistas consideravam problemáticos, para Commins (2006), Ibn Abdul Wahhab procurou esclarecer a doutrina da Unicidade de Deus em seu Kitab at-Tawhid, defendendo que caso a crença no tawhid enfraquecesse ou até mesmo falhasse, então a vida e a propriedade dessa pessoa poderiam se tornar propensas a ataques, ou em termos árabes ‘’sangue halal’’: o muçulmano que não seguisse sua cartilha, podia ser morto e pilhado. [4] [5]

Como dito anteriormente, uma preocupação inicial de Muhammad al-Wahhab foi justamente a questão da veneração aos santos dentro do Islã, que para ele era um ato maior de idolatria, um gravíssimo aviltamento ao tawhid.

Ele insistia que invocar e fazer promessas a homens santos, de fato, constituía idolatria maior e que era apropriado considerar como infiéis qualquer um que não visse essas práticas como sendo idolatria (COMMINS, 2006, p. 24).

Ainda segundo Commins (2006), Ibn Abdul Wahhab defendia que sua posição já havia sido sustentada por outros pensadores da escola Hanbali antes dele, mais precisamente Ibn Taymiyyah e Ibn Qayyim al-Jawziyya. Não obstante, afirmava ainda que mesmo se esses autores não tivessem defendido que a veneração aos santos [6] e suas relíquias era idolatria, o ato continuaria sendo. Consequentemente, ele acusava os muçulmanos que praticavam esses atos como sendo apóstatas (prática conhecida como takfir) e idólatras (mushrikin). Uma vez que as práticas condenadas por Muhammad al-Wahhab eram consideradas como ortodoxas pela maioria dos sábios sunitas, desnecessário dizer que o reformista considerava praticamente todo o mundo islâmico e a maioria dos sábios em sua história como sendo apóstatas ou idólatras.

Ibn Abdul Wahhab e o Sufismo

Dentre os aspectos que Muhammad ibn Abdal Wahhab se diferencia de muitos de seus seguidores velados da modernidade é sua visão a respeito do Sufismo, ou a espiritualidade islâmica. Não é raro encontrar pelos círculos islâmicos grandemente influenciado pelos seus pensamentos pessoas considerando o Sufismo e as práticas sufis como sendo algo “desviado”, idólatra e assim por diante. Essa, porém, não era a visão de Muhammad Ibn AbduL Wahhab, que tinha simpatia pelo sufismo e o considerava de grande importância dentro das ciências islâmicas.

Para ele, o seu problema com o sufismo era com certas práticas sufis que ele considerava como exageros, como a veneração aos santos. Como visto anteriormente, sua posição era minoritária e heterodoxa, mas não o fez odiar o Sufismo como um todo igual muitos herdeiros de seu legado intelectual fazem hoje. Em verdade, nem Ibn Taymiyyah e nem al-Qayyim condenavam o sufismo, mas sim o tipo de prática já citada no presente texto. O próprio Ibn Taymiyyah fez parte da tariqa Qadiriyya, enquanto Muhammad Ibn Abdul Wahhab foi aluno de Muhammad Hayyat ibn Ibrahim al-Sindhi, membro da tariqa sufi Naqshbandi.

Como as ideias de Ibn Abdul Wahhab 4 foram recebidas

Muito embora tenha exercido grande influência em sua época, angariado uma quantia significativa de seguidores e até formado um Estado que perdura até hoje, Ibn Abdul Wahhab não foi bem recebido ideologicamente por seus pares.  Vários foram os estudiosos e ulemás muçulmanos que negaram e condenaram o wahabismo, pois segundo os mesmos, Ibn Abdul Wahhab desconsiderava a história islâmica, os fundamentos mais básicos do que constituía idolatria no Islã, bem como os princípios doutrinários da religião. Indo mais além, Ibn Adbul Wahhab chegou a ser considerado inclusive um “herege khajirita” por muitos de seus primeiros críticos. O próprio mufti de Meca, Ahmad ibn al-Zayni Dahlan, escreveria um tratado contra as doutrinas del, afirmando que o reformador não aderia à escola Hanbali e o chamando-o de ignorante.

Não obstante, tanto o pai quanto o irmão de Muhammad Ibn Abdul Wahhab discordariam das posições do mesmo. Sulayman ibn Abdul al-Wahhab, irmão de Muhammad Ibn Abdul Wahhab, escreveria um tratado para refutá-lo, chegando a chamar o irmão de fanático, intolerante e ignorante. Seu pai e seu irmão consideravam sua doutrina e a maneira como ele pretendia impô-la na Arábia extrema e intolerante.

Esta recusa no reconhecimento do modelo de monoteísmo proposto por ele, dificilmente enxergada por muçulmanos modernos que se veem imersos em sua cartilha, deve ser entendida no contexto de que Ibn Abdul Wahhab reinterpretava também o politeísmo.

Segundo ele, as passagens do Alcorão que condenam a idolatria falam de ‘’intercessores’’ entre Deus e os homens que os idolatras criavam, e que ‘’santos’’ para os quais muçulmanos se voltavam em busca de apoio espiritual eram a perfeita definição disso, enquanto no entendimento geral da religião até aquela altura, ou seja, por mais de mil anos, os intercessores condenados na escritura eram literalmente as divindades panteísticas: deusas, deuses e semideuses adorados pelos antigos árabes pagãos, e não fiéis mortos que auxiliavam em uma conexão espiritual. Pois, na crença islâmica tradicional, a devoção aos santos limita-se a crença de que estes podem interceder pelos suplicantes a medida em que Deus permite, porém sem poder algum atribuídos a eles, além do concedido por Deus. Mas para Ibn Abdul Wahhab, crer nisso e crer em Zeus e Poseidon era equivalente, o que foi um choque para os ulemás de sua época, que o consideravam um completo ignorante não só do monoteísmo como do politeísmo.

Muhammad Ibn Abdul Wahhab, após auxiliar nas conquistas do novo Estado Saudita, passaria a estudar e ensinar até sua morte em 1792. Deixaria quatro filhos que também seguiram os passos do pai, assim como inúmeros pupilos. O legado de Ibn Abdul Wahhab perdura até os dias de hoje, sendo talvez o pensador mais influente do Islã contemporâneo cuja influência tenha se tornado perceptível tanto no “mundo islâmico” quanto fora dele.  A casta de clérigos descendentes sanguíneos dele, a família ‘’al-Sheykh’’ ou ‘’o Mestre’’, segue até hoje ocupando os cargos religiosos mais importantes da Arábia Saudita, mantendo a aliança do fundador do Estado com o fundador da seita wahabita, bem como seus livros estão entre os principais no desenvolvimento teológico de grupos terroristas como ISIS e Boko Haram, que usam o conceito de neo-paganismo generalizado de takfir como prerrogativa religiosa para o assassinato em massa de muçulmanos, tanto sunitas quanto xiitas.

NOTAS

[1] O motivo pelo qual al-Wahhab saiu de Najd e foi para outra região estudar ainda é incerto, porém alguns especialistas especulam que a sua discordância com a veneração aos santos tenha sido o que o motivou a sair de sua terra natal.

[2] O túmulo que foi destruído era o de Zayd ibn al-Khattab, companheiro do profeta Muhammad e irmão de Omar ibn al-Khattab, segundo califa do Islam.

[3] No original: “It was for this reason that the revival and reform movements of the eighteenth century adamantly insisted that a “return” to monotheism was the necessary first step in reforming Islam. This meant getting rid of foreign and superstitious beliefs and practices. Wahhabism shared this common concern and goal, becoming famous for its strict adherence to tawhid”.

[4] Citando diretamente o trecho: “The key text in the Book of God’s Unity is actually Sheikh Muhammad’s explanation of monotheism (tawhid) and what exactly ‘There is no god but God’ means. In his view, if one’s denial of any associate with God should ever weaken or fail, then his life and property are liable to attack” (COMMINS, 2006, p. 24).

[5] Não sem um aviso prévio, naturalmente. Caso não houvesse o arrependimento, então estaria propenso aos ataques.

[6] Cumpre salientar que Muhammad al-Wahhab não negava a existência de santos e nem que os mesmos eram capazes de realizar milagres através da intervenção de Deus, mas condenava a veneração aos santos, suas relíquias, visitar seus túmulos e assim por diante.

 

REFERÊNCIAS

COMMINS, David. The Wahhabi Mission and Saudi Arabia. I.B. Tauris. 2006.

DELONG-BAS, Natana J. Wahhabi Islam: From Revival and Reform to Global Jihad. Oxford University Press. 2004.

CRAWFORD, Michael. Ibn ‘Abd al-Wahhab. Oneworld. 2014.

VALENTINE, Simon Ross. Force and Fanatism: Wahhabism in Saudi Arabia and Beyond. Hurst e Co. 2015.

DAVIS, Rohan. Western Imaginings: The Intellectual Contest to Define Wahhabism. The American University in Cairo Press. 2018.