Abu Zayd Abdul Raḥman ibn Muḥammad ibn Khaldun al-Ḥaḍrami (1332-1406), também conhecido somente por Ibn Khaldun, foi um grande polímata árabe-muçulmano. Ibn Khaldun foi um cientista social e historiador, estudando também as modernas áreas da sociologia, economia e demografia, sendo um grande erudito dessas áreas antes que as mesmas surgissem com essas nomenclaturas.

A vida desse grande nome da história islâmica é fartamente documentada, isso devido ao fato de que ibn Khaldun escreveu uma autobiografia chamada “at-Tarif bi-ibn Khaldun wa-Riḥlatih Gharban wa-Sharqan”, que significa “Apresentando Ibn Khaldun e sua Jornada pelo Ocidente e Oriente”.

Ibn Khaldun nasceu em Tunes (Tunísia) no ano 1332, ou 732 conforme o calendário islâmico. Oriundo de uma família andaluza de classe alta, ele era descendente de um dos dicípulos diretos do Profeta, Hujr ibn Adi. A família de Ibn Khaldun havia se mudado de Al-Andaluz para Tunes quase um século antes de seu nascimento, após a queda de Sevilha na Reconquista de 1248.

Ibn Khaldun viria a receber uma educação tradicional, típica para pessoas de sua classe, aprendendo assim primeiramente com seu pai, que por sua vez era uma pessoa erudita. Memorizou o Alcorão, aprendeu gramática, jurisprudência islâmica, os hadiths, retórica, poesia e até filologia. Ibn Khaldun atingiu uma certa proficiência em cada uma dessas áreas ao ponto de receber autorização para ensina-las (ijazah), chegando até mesmo a citar o nome dos sábios com quem ele estudou em sua autobiografia. Ibn Khaldun continuaria seus estudos, vindo a estudar matemática, filosofia e lógica juntamente com seu professor Ali-Abili de Tlemcen. Estudou principalmente as obras de Averróis, Avicena, al-Razi e al-Tusi.

Aos 17 anos perderia seus pais em decorrência da Peste Negra, que atingiu Tunes por volta de 1347-1348. Já por volta dos 20 anos ele seguiria a tradição da família, indo para a carreira política, primeiramente na posição de Katib al-Alamah, que consistia em escrever em boa caligrafia as notas introdutórias dos documentos oficiais de governo.

Foi por volta dessa época, talvez um pouco antes, que Ibn Khaldun escreveu sua primeira obra chamada Lubahu I-Muhassal, um comentário a respeito da teologia de Fakhr al-Din al-Razi, sob a supervisão de seu professor al-Abili.

Entretanto, Ibn Khaldun estava descontente com sua profissão como Katib al-Alamah, que apesar de uma profissão respeitada, era irrelevante politicamente. Assim, mudou-se para Fez juntamente com seu professor al-Abili, onde seria indicado pelo Sultão Abu Inas Fares I para ser o escritor das proclamações reais, mas Ibn Khaldun conspirou contra o governante, que resultou para ele cerca de quase 2 anos de prisão, em 1357. Porém, Abu Inas viria a falecer, e o  vizir al-Hasan ibn Umar libertou Ibn Khaldun, restituindo-lhe para seus cargos antes da prisão. Mais uma vez, ele iria conspirar contra o governante, dessa vez contra o sucessor de Abu Inas, Abu Salem Ibrahim III, porém com a ajuda do tio do novo governante, também chamado Abu Salem, que havia sido exilado.

Ibn Khaldun recebeu uma posição ministerial após a ascensão de Abu Salem ao poder, porém ainda não estava contente, e foi quando decidiu se mudar para Granada. Ele sabia que poderia ter chances em Granada, uma vez que um havia ajudado anteriormente o sultão de lá, Muhammad V da Dinastia Nacérida, a retomar seu poder na corte após ser exilado1. Chegando lá, Muhammad lhe incumbiu de uma missão diplomática, tendo de ir até o rei de Castela, Pedro, o Cruel, para firmar um acordo de paz entre Granada e Castela. Ibn Khaldun obteve sucesso na missão que foi dada, ao ponto inclusive do rei de Castela lhe oferecer uma estadia em sua corte, prometendo inclusive restituir as posses que era da família de Ibn Khaldun antes da Reconquista de Sevilha, porém tudo isso foi recusado.

Ainda em Granada, Ibn Khaldun teria problemas com o vizir de Muhammad V, Ibn al-Khatib. A desavença parece ter surgido devido à proximidade de ibn Khaldun com o sultão, inclusive pelo fato de Khaldun tentar transforma-lo em um intelectual, um governante sábio, algo que al-Khatib viu como infrutífero e também perigoso para a paz do reino. É curioso notar que al-Khatib de certa forma tinha razão, pois Muhammad V acusou al-Khatib de possuir visões heterodoxas sobre a filosofia, ordenando que o mesmo fosse morto. Apesar da intercessão de ibn Khaldun pelo seu rival, Ibn al-Khatib ainda foi condenado.

De acordo com Mohammad A. Enan (2007), ibn Khaldun receberia um convite de seu amigo Abu Abdallah, que havia recuperado seu trono em Bugia na Argélia. Assim, ibn Khaldun pediu permissão do sultão de Granada e partiu para o Norte da África.

Ibn Khaldun chegou em Bugia quando tinha 32 anos, sendo agraciado com uma importante posição, uma espécie de tesoureiro (hajib). Entretanto sua carreira duraria pouco ali, pois o emir pelo qual prestava os serviços foi deposto e morto em um golpe de estado. Após isso, Ibn Khaldun se mudou para Baskra (Argélia), onde continuaria oferecendo seus serviços para algum emir ou sultão que pedisse relacionado às tribos locais. Mudando de lealdade conforme era necessário, ibn Khaldun foi finalmente para Constantina (Argélia), onde começaria a escrever sua famosa obra ”al-Muqqadimah” ou “a Introdução”.

Entretanto, Ibn Khaldun precisava de obras para poder referenciar sua Muqqadimah, sendo que elas não estavam disponíveis no local em que vivia. Por conta disso, aproveitou a oportunidade da conquista da Tunísia pelo sultão Abu i-Abbas para viajar à Tunes, cidade essa que ele não pisava havia 27 anos.

Mais tarde ele deixaria de estar nas graças de Abu i-Abbas, pois não havia incluído em sua obra o tradicional panegírico ao sultão. Portanto, sob o pretexto de realizar o Hajj2, Ibn Khaldun fugiu para o Egito. Lá, em 1384 se tornaria professor da Madraça de Qamhiyyah, assim como o grande Qadi da escola de jurisprudência Maliki, proeminente nessa região do Norte da África. Devido às suas tentativas de reforma, acabou tendo de renunciar o posto um ano mais tarde.

Ainda em 1384, ele teve de enfrentar uma grande tragédia em sua vida, pois o navio que levava sua mulher e filhos havia afundado na costa de Alexandria. Diante disso, decidiu que agora deveria realizar a peregrinação à Meca. Depois de seu retorno passaria principalmente exercendo funções intelectuais, passando seus últimos 5 anos de vida no Cairo terminando sua autobiografia e sua obra sobre história mundial, servindo também como professor e juiz.

É interessante ainda notar que poucos anos antes de sua morte (1406), Ibn Khaldun acabou interagindo com a lendária figura de Timur. Em 1400, Ibn Khaldun foi convencido pelo sultão mameluco al-Nasir a viajar para Damasco, onde ele negociaria com o conquistador da Ásia Central, Timur ibn Taragay Barlas, conhecido no Ocidente como Tamerlão. A missão de Khaldun era convencer o conquistador a poupar Damasco, mas infelizmente foi um fracasso: Timur saqueou a cidade e em seguida foi para Bagdá. No ano seguinte ele derrota os Otomanos em Ancara, chegando até mesmo a capturar o sultão Beyazid e fazendo-o como prisioneiro.

Suas Obras

Ibn Khaldun foi um grande erudito, e por conta disso acabou escrevendo obras marcantes para a história, não somente para a história islâmica.

O seu magnum opus é sem dúvida a obra al-Muqqadimah. Nesse livro, ele registra a visão da época em que vivia a respeito daquilo que se chama “história universal”. A obra Muqqadimah é considerada por alguns especialistas como a primeira a tratar sobre filosofia da história3, ciências sociais4, de sociologia5, demografia6, historiografia7, história cultural8 e economia.  Não somente, mas a obra de Khaldun tratava também sobre teologia islâmica, teoria política e até mesmo de ciências naturais, como biologia e química. Por vezes sua obra também é tida como uma precursora daquilo que ficou conhecido como “Darwinismo social” e também do próprio Darwinismo.10

Indo mais além, ibn Khaldun chega a fazer críticas aos erros normalmente cometidos pelos historiadores de sua época, assim como sobre as dificuldades que esperam um historiador ao exercer seu trabalho. Assim, Khaldun lista sete pontos principais:

“Todos os registros, por sua própria natureza, estão sujeitos a erros …

  1. … Partidarismo por um credo ou opinião …
  2. … Excesso de confiança em suas fontes …
  3. … A falta de compreensão do que se pretende …
  4. … Uma crença errada na verdade …
  5. … A incapacidade de colocar um evento em seu contexto real
  6. … O desejo comum de ganhar o favor dos altos escalões, elogiando-os, espalhando sua fama …
  7. … O mais importante é o desconhecimento das leis que regem a transformação da sociedade humana.”

A obra de Ibn Khaldun vai muito mais além, introduzindo também o método científico para as ciências sociais, pois era crítico do que chamava de “superstição ociosa e aceitação de dados históricos sem críticas”.

A Muqaddimah é muito mais extensa do que aqui foi exposto, mas certamente dá para ter uma base da genialidade de ibn Khaldun com os escritos acima. Além disso, Khaldun escreveu também outras pequenas obras, como a já mencionada Lubahu I-Muhassal comentando a teologia de al-Razi, escrevendo também uma obra sobre o Sufismo chamada Shifau I-Sail.

Ibn Khaldun morreria em 1406, deixando um legado imenso para trás, sendo considerado um dos precursores de ciências importantíssimas hoje em dia, ao ponto inclusive de sua teoria econômica ser comparada com a de John Maynard Keynes, um dos economistas mais influentes de todos os tempos.

Notas:

[1] A Dinastia Nacérida foi a última a governar a Espanha Islâmica, reinando entre 1230-1492, quando caiu Granada na Reconquista perpetrada pelos Reis Católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela;

[2] Peregrinação à Meca;

[3] AKHTAR (1997);

[4] AHMED (2002);

[5] MOWLANA (2001) e ALATAS (2006);

[6] Ibid. MOWLANA (2001);

[7] GATES (1967);

[8] ABDALLA (2007);

[9] OWEISS (1988) e BOULAKIA (1971);

Bibliografia:

STONE, Caroline. Ibn Khaldun and the Rise and Fall of Empires. AramCo World. 2006.

HOZIEN, Muhammad. Ibn Khaldun: His Life and Work. Muslim Heritage. 2010.

MOSS, Laurence S. Joseph A. Schumpeter: Historian of Economics: Perspectives on the History of Economic Thought. Routledge. 1996.

SPENGLER, Joseph J. Spengler (1964). “Economic Thought of Islam: Ibn Khaldun“, Comparative Studies in Society and History, 6(3), pp. 268-306. 1964.

BOULAKIA, Jean David C. “Ibn Khaldûn: A Fourteenth-Century Economist“. Journal of Political Economy. 1971.

AKHTAR, S. W. “The Islamic Concept of Knowledge“, Al-Tawhid: A Quarterly Journal of Islamic Thought & Culture. 1997.

AHMED, Akbar. “Ibn Khaldun’s Understanding of Civilizations and the Dilemmas of Islam and the West Today“. Middle East Journal 56 (1). 2002.

MOWLANA, Hamid. “Information in the Arab World“. Cooperation South Journal 1. 2001.

GATES, Warren E. “The Spread of Ibn Khaldun’s Ideas on Climate and Culture”. University of Pennsylvania Press, Journal of the History of Ideas, 28 (3). 1967.

ABDALLA, Mohamad. “Ibn Khaldun on the Fate of Islamic Science after the 11th Century”. Islam & Science 5 (1), p. 61-70. 2007.

OWEISS, I. M. Oweiss. “Ibn Khaldun, the Father of Economics“. Arab Civilization: Challenges and Responses. New York University Press. 1988.