Quando se fala em países muçulmanos, a primeira ideia que a maioria das pessoas tem em mente são os países árabes do Oriente Médio. Muito embora essa concepção não esteja errada, os países historicamente muçulmanos não se limitam somente ao Oriente Médio ou aos povos árabes.

Continentes como a Ásia receberam grandes influências islâmicas, sendo alguns locais majoritariamente muçulmanos até os dias de hoje, como a Indonésia. Localizado no sudeste asiático, a Indonésia possui cerca de 86,7% de sua população de 273,5 milhões de pessoas composta por fiéis muçulmanos, sendo o maior país islâmico do mundo atualmente.

 

A Indonésia antes do Islã

Como é sabido, o Islã chegou na Indonésia e criou raízes no sudeste asiático como um todo, porém outras religiões já haviam ingressado na região antes, possuindo raízes mais profundas e antigas do que a recém chegada religião proveniente das Arábias. Quais eram essas religiões e como era a Indonésia em seu período de jahiliya? [1]

Antes da ascensão do Islã na Indonésia, as religiões predominantes eram o budismo e o hinduísmo, sendo esse último manifestado principalmente na tradição shivaísta. A história do budismo na Indonésia já é antiga, mas a presença hindu ainda o precede.

O hinduísmo chegou na Indonésia de uma maneira semelhante a qual o Islã chegaria séculos depois. Contando com sua presença nas ilhas do sudeste asiático desde o século primeiro, o hinduísmo atracou na Indonésia através de mercadores, viajantes, sábios e líderes religiosos. As duas principais teorias para a chegada do hinduísmo na Indonésia incluem que os comerciantes marítimos do sul da Índia trouxeram o hinduísmo com eles, e a segunda é que a realeza indonésia adotou a religião e a cultura indiana, sendo eles os primeiros a abraçarem a nova fé, sendo posteriormente seguidos pelas massas. As ilhas indonésias adotaram as religiões hindu e budista, fundindo-as com a religião folclórica nativa pré-existente e as crenças animistas locais.

Quanto ao budismo, a aparição da religião de Buda na Indonésia se deve principalmente à própria presença hindu. A história do budismo na Indonésia está intimamente relacionada à história do hinduísmo, uma vez que vários impérios influenciados pela cultura indiana foram estabelecidos no mesmo período. A chegada do budismo ao arquipélago indonésio começou com a atividade comercial, a partir do início do século I, por meio da Rota da Seda entre a Indonésia e a Índia.

Muito embora o Islã seja a religião majoritária na Indonésia, o hinduísmo e o budismo também são reconhecidos pelo governo indonésio como religiões oficiais do país.

 

A chegada do Islã na Indonésia

Apesar de ser o país com a maior população islâmica do mundo hoje em dia, a chegada do Islã na Indonésia não é uma exatidão histórica, sendo objeto de debate entre os especialistas. Assim, é incerto se o Islã chegou ao país asiático no século IX diretamente da Arábia ou se só apareceu nas ilhas indonésias por volta dos séculos XII e XIII através de mercadores sufis vindos da Índia ou do próprio Oriente Médio.

De qualquer maneira, assim como em diversos outros locais do globo, a expansão do Islã foi lenta e gradual após a sua chegada, demorando séculos desde o surgimento dos primeiros muçulmanos até se tornar um país majoritariamente islâmico.

Os primeiros relatos do arquipélago indonésio datam do califado abássida. De acordo com esses escritos, o arquipélago era famoso entre os marinheiros muçulmanos principalmente devido à sua abundância de especiarias, como noz-moscada, cravo e muitas outras. Dessa maneira, antes mesmo do Islã se estabelecer como religião local na Indonésia os mercadores muçulmanos já faziam suas viagens comerciais para a região, sendo muito provável que muçulmanos de outros países asiáticos (China, Índia etc.) ou árabes se estabeleceram em uma dessas viagens e se mesclaram com as comunidades nativas, dando início à expansão da fé islâmica nas ilhas. [2]

Apesar de ser um dos temas mais significativos na história da Indonésia, a evidência histórica é fragmentária e geralmente pouco informativa, de modo que o conhecimento da chegada do Islã ao país se torna bastante limitado. As evidências primárias, pelo menos dos estágios iniciais do processo de islamização, são lápides e relatos de alguns viajantes, mas estes só demostram que os muçulmanos estavam em um determinado lugar em um determinado momento. Faltaria, portanto, detalhes mais minuciosos a respeito da expansão islâmica, como personagens, datas, relatos de conversões e como a islamização influenciou os hábitos, costumes e cultura dos povos nativos da Indonésia.

Desde a época do terceiro califa do Islã, Uthman (644-656), emissários e mercadores muçulmanos eram enviados à China, sendo muito provável que tenham passado pelas rotas marítimas da Indonésia. A evidência mais confiável da propagação inicial do Islã na Indonésia vem de inscrições em lápides e um número limitado de relatos de viajantes. A primeira lápide com inscrições legíveis é datada do ano 475 do calendário islâmico, ou 1082 no calendário gregoriano. Contudo, se trata de uma inscrição de um viajante muçulmano que não era oriundo da Indonésia. A primeira evidência de muçulmanos indonésios, contudo, provém do norte de Sumatra.

Marco Polo, voltando da China para casa em 1292, relatou pelo menos uma cidade muçulmana na Indonésia. Já a primeira evidência de uma dinastia muçulmana é uma lápide datada de 696 do calendário islâmico (1297 no gregoriano) do sultão Malik al-Saleh, o governante muçulmano do Sultanato de Samudera Pasai, com mais lápides indicando a continuação do domínio islâmico na região.

As influências islâmicas na Indonésia não vieram somente dos viajantes árabes em direção ao extremo oriente, mas também os que faziam um itinerário oposto: da China às arábias, pois como citado anteriormente, as relações dos muçulmanos com a China começaram muito cedo na história do Islã, ainda no mesmo século do surgimento da religião. Assim, uma das figuras mais importantes para o Islã na Indonésia foi justamente um muçulmano chinês, o grande explorador e expedicionário Zheng He, que merece um artigo próprio sobre sua biografia.

De acordo com relatos muçulmanos chineses tradicionais, a história do Islã na China começou quando alguns Ṣahaba (companheiros de Muhammad), Sad ibn Abi Waqqas (594-674), Jafar ibn Abi Talib e Jahsh pregaram em 616/17 na China. Sad ibn Abi Waqqas iria novamente para a China em 650-651 depois que o califa Uthman lhe pediu para liderar uma embaixada ao país, sendo recebido calorosamente pelo imperador chinês.

Apesar dessa influência na China desde o surgimento do Islã e dos primeiros governos muçulmanos, a maior influência chinesa no sudeste asiático só surgiria quase mil anos depois dos primeiros contatos árabes. Zheng He (1371–1433 ou 1435), originalmente chamado Ma He, foi um eunuco da corte Hui, marinheiro, explorador, diplomata e almirante durante o início da dinastia Ming da China. Zheng comandou viagens expedicionárias ao Sudeste Asiático, Sul da Ásia, Ásia Ocidental e África Oriental de 1405 a 1433 [3]. Segundo as lendas, seus navios carregavam centenas de marinheiros em quatro conveses e eram quase o dobro do comprimento de qualquer navio de madeira já registrado. Para fins ilustrativos, estima-se que um de seus navios possuía cerca de 121 metros de comprimento, enquanto o de Cristóvão Colombo possuía somente 25 metros.

Dentre suas expedições ao sudeste asiático, Zheng He atracou na Indonésia, sendo creditado por ter fundado as comunidades islâmicas chinesas em Sumatra, nas costas de Java, na península malaia e também nas Filipinas. A influência de Zheng He nessas regiões foi tão expressiva que o viajante se tornou objeto de culto das comunidades locais, sendo uma figura de vital importância para o desenvolvimento do Islã na Indonésia, principalmente no que tange à escola de jurisprudência sunita Hanafi, apesar da Indonésia ser majoritariamente adepta da escola Shafi. A presença da escola Shafi, que mais tarde dominaria a Indonésia, foi relatada por Ibn Battuta em 1346. Em seu diário de viagem, Ibn Battuta escreveu que o governante de Samudera Pasai era um muçulmano muito zeloso com seus deveres religiosos e que seguia a escola de pensamento do Imam al-Shafi com costumes semelhantes aos que ele tinha visto na Índia.

Apesar da grande influência de Zheng He, o Islã não teve como seu único propagador a figura do almirante chinês. Na verdade, a propagação do Islã foi inicialmente impulsionada pelo aumento das ligações comerciais fora do arquipélago. Os comerciantes e a realeza dos principais reinos foram geralmente os primeiros a se converter ao Islã.

Embora se saiba que a propagação do Islã tenha começado no oeste do arquipélago, a evidência fragmentária não sugere uma onda contínua de conversão através de áreas adjacentes, em vez disso, sugere que o processo foi complicado e lento. No entanto, uma mudança radical ocorreu quando o império hindu Majapahit em Java caiu para o sultanato Demak, já islamizado, como pode ser visto através da adoção do termo sultanato. Em 1527, o governante muçulmano renomeou a recém-conquistado Sunda Kelapa como Jayakarta, que acabou se tornando Jacarta, a atual capital da Indonésia. A assimilação ao Islã acelerou rapidamente com essa importante conquista.

Apesar da conquista de Jacarta ter sido um marco importante para o Islã no país, a religião islâmica se propagou essencialmente por meios que não envolviam expedições militares, principalmente através do comércio e pela influência de pregadores sufis. Como dito ao longo do texto, é provável que o Islã tenha chego na Indonésia ainda nos séculos iniciais da religião, principalmente pelas rotas que levavam os mercadores árabes até a China no século IX. No entanto, não foi até o final do século XIII que a propagação do Islã começou a um ritmo mais acelerado. A princípio, o Islã foi introduzido por meio de comerciantes árabes muçulmanos e, em seguida, a atividade missionária por estudiosos. Foi ainda auxiliado pela conversão de governantes locais e também das elites.

Em geral, os comerciantes locais e a realeza dos principais reinos foram os primeiros a adotar a nova religião. A propagação do Islã entre a classe dominante acelerou mais ainda quando os comerciantes muçulmanos se casaram com as mulheres nativas, com alguns dos comerciantes mais ricos se casando com as famílias dominantes da elite indonésia e estendendo a esfera de influência da religião. Com isso o povo indonésio começou a adotar o Islã gradualmente, emulando de certa forma as atitudes das classes mais abastadas da sociedade da época que cada vez mais contava com adeptos muçulmanos, assim como fora com as religiões anteriores ao Islã, que inicialmente presenciaram a conversão das elites e em seguida pela maior parte da população. No final do século XIII, o Islã havia se estabelecido no norte de Sumatra; no século XIV no nordeste da Malásia, Brunei, sul das Filipinas e entre alguns cortesãos de Java Oriental; no XV em Malaca e outras áreas da Península Malaia, tornando inevitável a islamização total da Indonésia.

 

A religiosidade da Indonésia moderna

Como exposto, o Islã não foi a primeira religião a fincar raízes na Indonésia: antes dele, religiões locais já existiam, e religiões organizadas como o hinduísmo e budismo se assentaram séculos antes dos muçulmanos no arquipélago. Contudo, por ser um país muito diversificado religiosamente, o sincretismo foi quase como uma consequência inevitável para o povo indonésio.

Atualmente o governo da Indonésia reconhece seis religiões como sendo oficiais do país: Islã, Catolicismo, Protestantismo, Hinduísmo, Budismo e Confucionismo. Apesar de ser um país demograficamente bem religioso, o estado indonésio é secular e sua constituição é um amálgama de tradições religiosas distintas:

É um estado secular, porém o ateísmo é proibido. Seus cidadãos, oficialmente, precisam seguir uma dessas seis religiões. Sua constituição é fundamentada nos ideais da doutrina filosófico-nacionalista Pancasila (um amálgama de tradições indígenas, hindus, islâmicas e cristãs).

[...]

Na Indonésia ainda existem inúmeras tradições religiosas autóctones que são pré-islâmicas e pré-hindus (muitas sincretizadas hoje em dia). Mas, no censo da Indonésia, seus seguidores só podem se declarar ou muçulmanos, ou cristãos, ou budistas, hindus ou confucionistas (existem cerca de 245 tradições religiosas não oficiais na Indonésia) (SOUZA, n.d.).

Assim, apesar da Indonésia ser um país majoritariamente islâmico, o que vemos não é um país totalmente islâmico, e nem puramente islâmico, mas sim extremamente diversificado até mesmo dentro de uma tradição religiosa específica, sem contar na imensa variedade que o país possui sob uma perspectiva macro.

 

NOTAS

[1] Jahiliya é um termo árabe que significa literalmente “ignorância”. É frequentemente utilizado para fazer referência à condição dos árabes antes do advento do Islã. Jahiliya aqui é utilizado como um “marco temporal” para designar o período anterior à chegada do Islã na Indonésia, onde os povos das ilhas do sudeste asiático eram ignorantes a respeito da revelação dada à Muhammad. É, portanto, o período “pré-islâmico”.

[2] Algo muito comum na história da expansão da fé islâmica é o fato de que alguns muçulmanos se estabeleceram em certas localidades, e com sua presença, carisma, piedade religiosa e outras características acabaram atraindo os povos nativos para a sua religião, uma vez que eram figuras admiráveis e até mesmo curiosas. Por vezes, isso estava também associado ao fato de que o Islã era uma religião mais sofisticada se comparada com as crenças locais, isso tudo sem abandonar a simplicidade de seus principais “dogmas” de fé que são de fácil compreensão para um leigo em seus aspectos mais superficiais. O Islã, portanto, representou em certos cantos do globo (como em algumas áreas do continente africano) um avanço civilizacional, tornando aquela região parte de uma comunidade global e mais sofisticada.

[3] Existem teorias, inclusive, que afirmam que Zheng He chegou nas Américas, isso antes dos primeiros europeus.

BIBLIOGRAFIA

ARNOLD, Thomas Walker. The Preaching of Islam. Palala Press, 2018.

DRAKELEY, Steven. The History of Indonesia. Greenwood Publishing Group, 2005.

FEDERSPIEL, Howard M. Sultans, Shamans and Saints: Islam and Muslims in Southeast Asia. 2007.

RICKLEFS, M.C. A history of modern Indonesia since c. 1200. Red Globe Press, 2008.

SEN, Tan Tan. Cheng Ho and Islam in Southeast Asia. ISEAS Publishing, 2009.