De modo geral, a teoria política islâmica especifica três características básicas para um governo islâmico: os líderes devem ser eleitos ou aceitos pelo povo, sujeitos à Sharia, lei islâmica e suas várias interpretações, e comprometidos com a prática da “shura”, termo árabe que significa “consulta” ou “assembleia”.

Atualmente, a expressão da política islâmica é diferente em diferentes países de maioria muçulmana, pois as interpretações da Sharia variam de país para país. O uso da Sharia é mais abrangente em países nos quais ela forma a base para as leis estaduais, contudo, na maioria dos países muçulmanos, do século XXI, há mistos legislativos de leis coloniais ocidentais, pós-coloniais e alguns resquícios de influência islâmica.

A base democrática do Islã

Os conceitos de liberalismo e participação democrática já estavam presentes no mundo islâmico medieval. O Califado Rashidun do século VII, é percebido como um dos primeiros exemplos de um estado democrático, devido a sucessão eletiva de seus líderes e ênfase no voto popular.

Entretanto, a teoria política islâmica possui bases anteriores ao período pós morte do Profeta, em 632, onde surgiu o califado, e pode ser exemplificada na experiência pré-profética de Muhammad, em um evento conhecido como Hilf al-Fudul.

Anos antes da revelação corânica, através do Anjo Gabriel, em 610, nos tempos do paganismo pré-islâmico, um certo acontecimento tomou lugar na Arábia. Os coraixitas, tribo árabe pagã que governava Meca, estavam envolvidos em conflitos intermitentes.

O conflito era devido a um assassinato mal resolvido, que acabou resultando numa guerra conhecida como “Harb al-Fijar”, ou “Guerra Sacrílega”, por ter acontecido em um período considerado sagrado, de não agressão pelos árabes.

Seu efeito foi o crescente descontentamento com a forma de justiça empregada na Arábia. Muitos líderes coraixitas viajaram para a Síria, onde encontraram justiça relativa, prevalecida nas áreas árabes de vassalagem romana, onde conflitos internos não se resolviam por vias de guerra civil.

Após a Guerra Sacrílega, os coraixitas perceberam que a deterioração de seu estado e a perda do prestígio de Meca na Arábia eram o resultado de sua incapacidade de resolver desentendimentos, criando divisão interna.

Então, mediante a isso, no período pós-guerra, as tribos árabes vencedoras decidiram criar um pacto conhecido como Hilf al-Fudul, ou “Liga dos Vitoriosos”, no qual seriam estabelecidas medidas de justiça entre os árabes pagãos, para tratar da proteção de indivíduos como um todo, sem distinção de aliança tribal, procurando evitar guerras desnecessárias.

Um dos signatários deste pacto pré-islâmico fora o próprio Muhammad, ainda jovem na época, sobre o qual disse:

Isso foi mais amado para mim do que uma manada de camelos vermelhos (extremamente valiosos). Se eu fosse chamado (para integrá-lo) agora na época do Islã, eu responderia.

O legado deste pacto deixou impressões duradouras na formação da teoria política islâmica, pois estabelecia que mesmo leis criadas ou derivadas de não-muçulmanos, neste caso, os árabes pagãos, se obedecessem princípios universais de justiça, poderiam ser adotadas e assimiladas por muçulmanos.

Depois da revelação corânica e migração do Profeta Muhammad, juntamente com alguns dos primeiros muçulmanos, para a cidade-oásis de Yaçrib, doravante conhecida como Medina, em 622, um novo acordo político teve lugar, desta vez entre muçulmanos e não-muçulmanos.

Muhammad foi eleito como árbitro supremo da cidade, por ser um estrangeiro neutro, para resolver contendas entre os árabes muçulmanos e pagãos, bem como com os judeus que habitavam o lugar.

Daí então, o Profeta elaborou a “Constituição de Medina”. Os pontos da constituição estabeleciam que todos, muçulmanos e não-muçulmanos, eram uma só nação. Que deveriam ter seus direitos e propriedades respeitados como iguais, não deveriam auxiliar seus inimigos mutuamente, resolver disputas por meios pacíficos, dentre outros tópicos.

Após a morte do Profeta, em 632, as deliberações dos Califados, mais notavelmente o Califado Rashidun, composto por seus seguidores imediatos, não foram democráticas no sentido moderno.

Ainda assim, o poder decisório estava com um conselho de notáveis ​​e confiáveis ​​companheiros de Muhammad e representantes de diferentes tribos, sendo que a maioria deles fora selecionados ou eleitos dentro de suas tribos, de forma que todos eram ouvidos e representados na tomada de decisões através da Shura.

Pode ser visto de forma semelhante ao modo como o primeiro-ministro é escolhido em muitas nações. No início do califado islâmico, o chefe de Estado, o califa, tinha uma posição baseada na noção de um sucessor da autoridade política de Muhammad, que, segundo os sunitas, foi idealmente eleito por um conselho, como foi o caso da eleição de Abu Bakr, Omar, Osman e Ali como califas.

Depois dos Califas Rashidun, os quatro anteriormente citados, os califados tiveram um grau muito menor de participação democrática com o surgimento de sultanatos e monarquias hereditárias, e a entrada de influências imperiais persas e romanas no mundo islâmico.

Porém, os governantes muçulmanos muitas vezes realizavam consultas públicas com o povo em seus assuntos, geralmente possuindo muitos ministros e vizires.

O poder legislativo do califa ou, mais tarde, do sultão, sempre foi restringido pela classe acadêmica, o ulemás, grupo considerado como o guardião da lei. Desde que a lei viesse dos estudiosos do direito, isso impedia o califa de ditar leis de forma arbitrária.

As leis foram decididas com base no ijma (consenso) da Ummah (comunidade), que passou a ser mais frequentemente representada pelos estudiosos do direito, sendo seu conceito religioso abrangente a todos os muçulmanos.

Para se qualificar como jurista, era necessário obter um doutorado conhecido como ijazat attadris wa ‘l-ifttd, que em português significa “licença para ensinar e emitir opiniões legais”, de uma madrassa. De muitas maneiras, a lei islâmica clássica funcionava como uma lei constitucional.

A pluralidade religiosa nos califados

O pluralismo religioso democrático também existia na lei islâmica clássica, já que as leis e tribunais religiosos de outras religiões, incluindo o cristianismo, o judaísmo e o hinduísmo, eram geralmente acomodadas dentro do quadro legal islâmico, como visto no antigo califado Rashidun, Al-Andalus, Índia Islâmica e o sistema otomano, onde cada segmento judeu ou cristão tinha autonomia legislativa e representação política junto ao sultão.

O antigo filósofo muçulmano, Al-Farabi (c. 872–950), em uma de suas obras mais notáveis, Al-Madina al-Fadila, teorizou um estado islâmico ideal que ele comparou à República de Platão. Al-Farabi partiu da visão platônica de que ele considerava o estado ideal a ser governado pelo profeta, em vez do rei filósofo imaginado por Platão.

Al-Farabi argumentou que o estado ideal era a cidade-estado de Medina, quando era governada por Muhammad, pois estava em comunhão direta com Deus, cuja lei lhe fora revelada. Na ausência do profeta, Al-Farabi considerou a democracia como a mais próxima do estado ideal, considerando a ordem republicana do califado Rashidun como um exemplo no início da história muçulmana.

No entanto, ele também sustentou que foi da democracia que emergiram estados imperfeitos, observando como a ordem republicana dos primeiros califas islâmicos foi, mais tarde, substituída por uma forma de governo que se assemelha a uma monarquia sob as dinastias omíada e abássida.

Visto dessa perspectiva histórica, a democracia, tal como concebida no Ocidente moderno, está infinitamente mais próxima do conceito de liberdade islâmico do que do grego antigo.

O Islã sustenta que todos os seres humanos são socialmente iguais e devem, portanto, ter as mesmas oportunidades de desenvolvimento e auto expressão.

Por outro lado, o Islã faz com que os muçulmanos incumbam de subordinar suas decisões à orientação da Lei Divina revelada no Alcorão e exemplificada pelo Profeta: uma obrigação que impõe limites definidos ao direito da comunidade de legislar e nega à ”vontade do povo”, esse atributo de soberania que forma parte integrante do conceito ocidental de democracia.

No entanto, muito debate ocorre sobre o tema de quais tradições islâmicas são princípios fixos, e quais estão sujeitos à mudança democrática, ou outras formas de modificação em vista da mudança das circunstâncias. Alguns muçulmanos aludem a um estilo “islâmico” de democracia, que reconheceria tais distinções.

O limite da lealdade aos líderes

Outra questão sensível envolve o status de monarcas e outros líderes, o grau de lealdade que os muçulmanos devem a essas pessoas e o que fazer no caso de lealdades conflitantes, por exemplo, se um monarca discordar de um imã.

Respostas para essas questões podem ser encontradas no Kanun otomano, que governou do Norte da África, passando pelo Oriente Médio e Leste Europeu, por séculos.

O sistema de administração político-legal secular do Kanun otomano, se origina da dificuldade de tratar determinados assuntos, como impostos, administração, assuntos financeiros ou lei penal, somente pela Sharia e interpretação legal dos ulemás. Essa dificuldade levou os governantes otomanos a usarem o Kanun para complementar e, às vezes, suplantar a lei religiosa.

Também ofereceu uma maneira de superar os problemas apresentados pela medida em que a Shariah dependia da interpretação das fontes pelos ulemás, o que tornava problemática a padronização legal, com juristas diferentes produzindo pareceres diferentes para a mesma Shariah islâmica.

O Kanun otomano começou a ser codificado no final do século XV, após a conquista de Constantinopla, em 1453. A expansão do império levou a um desejo de centralizar as decisões, e o Kanun permitiu que o sultão se tornasse um governante mais influente, concedendo-lhe o poder que ele precisava para exercer sua autoridade, passando, quando possível, até sob o crivo dos ulemás.

Ele estava relacionado a questões financeiras e fiscais e, com base no costume (urf) de onde fosse aplicado, ele tentava conciliar práticas previamente existentes com as prioridades e necessidades do Estado otomano.

O sistema foi concedido a províncias individuais após sua conquista, normalmente mantendo a maior parte dos impostos e taxas existentes sob a regra anterior, e simplesmente as adaptando a um padrão otomano, não necessariamente passando por nenhuma imposição religiosa.

Em resumo, o legado político-administrativo islâmico possui princípios que aludem a democracia, e até mesmo largo espaço para leis seculares não necessariamente islâmicas.

De forma alguma ela estaria imitando o modelo ocidental pós-moderno, porém, produzindo a “democracia islâmica”, onde o povo é representado no governo idealmente eletivo, cidadãos não-muçulmanos são governados por suas leis e representantes, e mudanças são feitas através da Shura (conselho). Apesar da aplicabilidade destes princípios terem variado ao longo da história, eles são presentes na tradição islâmica.

Bibliografia:

  • Mahmoud Sadri and Ahmad Sadri (eds.) 2002 Reason, Freedom, and Democracy in Islam: Essential Writings of Abdolkarim Soroush, Oxford University Press
  • Khan L. Ali 2003 A Theory of Universal Democracy, Martinus Nijhoff Publishers
  • Assad, Muhammad (1980) The Principles of State and Government in Islam.Hamidullah, Muhammad. The First Written Constitution in the World: An Important Document of the Time of the Holy Prophet, 3rd. ed. 1975, Ashraf Press; Lahore, Pakistan.