Quando se retrata a figura dos “Piratas da Berbéria”, assim chamados os temidos corsários que de suas bases norte-africanas assolavam as costas das nações europeias geralmente em busca de cativos, estes são apresentados como o melhor paliativo para o escravagismo transatlântico.

A argumentação funciona mais ou menos assim: “europeus podem ter escravizado milhares de africanos, mas quantos piratas berberiscos não conduziam razias nas costas de países europeus?”. Entretanto, além de ignorar que desde a Idade Média nações cristãs europeias conduziam razias à costa norte-africana em busca de escravos, não sendo jamais uma ação de mão única, nesse caso, sempre partindo dos muçulmanos, os tais piratas da berbérica famosos no século XVI e XVII eram eles mesmos europeus de diversas nacionalidades, e tal como o termo “mouro” ou “sarraceno”, o termo “pirata da Berbéria” pouco dizia sobre sua origem nacional ou étnica, quando muito religiosa.

Em sua maioria, estes indivíduos eram ex-corsários que após captura ou deserção na costa magrebina, convertiam-se ao Islã e passavam a assediar os países que antes haviam combatido em nome de seus antigos reis, porém agora, sob novas bandeiras. Um dos casos mais famosos de tais indivíduos é o de Murat Reis, que com este nome poderia muito bem ser um turco a serviço do Império Otomano, só que, na verdade, era um dos muitos holandeses entrincheirados no Marrocos, e que ali no coração do Magrebe, fundou uma República.

Início da vida e Carreira

Jan Janszoon van Haerlem nasceu em Haarlem na Holanda em 1575, então uma província governada pela monarquia dos Habsburgos. A Guerra dos Oitenta Anos entre os rebeldes holandeses e o Império Espanhol sob o reinado de Filipe II que havia começado sete anos antes de seu nascimento durou toda a sua vida.

Em torno do ano 1600, ele começou a atuar como corsário navegando a partir de seu porto natal de Haarlem, trabalhando para o estado com cartas de corso para assediar os navios espanhóis durante a Guerra dos Oitenta Anos. Janszoon ultrapassou os limites de suas cartas e encontrou o caminho para os estados portuários semi-independentes da Costa da Berbéria no norte da África, de onde podia atacar navios de todos os estados estrangeiros: quando atacava um navio espanhol, ele navegava com bandeira holandesa; quando atacava qualquer outro, ele fingia ser um capitão otomano e navegava com a meia-lua vermelha dos turcos ou a bandeira de qualquer um dos vários outros principados do Mediterrâneo. Durante este período, ele abandonou sua família holandesa e seu casamento com Soutgen Cave que havia durado desde 1595, e com quem teve dois filhos, Edward e Lysbeth.

Um retrato de Jan Janszoon van Haerlem, aqui o líder pirata aparece vestido “a turca”, de turbante, cafetã, longa barba e portanto um arco-composto.

Em uma de suas empreitadas, Janszoon acabou sendo capturado em 1618 em Lanzarote (uma das Ilhas Canárias) por corsários da Berbéria e levado para Argel como cativo. Lá, ele “virou turco”, como os europeus da época descreviam a conversão de piratas cristãos ao Islã. Após sua conversão, Janszoon tornou-se um muçulmano devoto, e tentava a conversão de muitos dos cativos cristãos capturados. Os turcos otomanos mantinham uma medida precária de influência em nome de seu sultão na região do Magrebe, que era basicamente independente, encorajando abertamente os mouriscos espanhóis para ali expulsos da Espanha a atacarem através da pirataria contra as potências europeias, que em contra partida operavam contra os otomanos através de seus próprios piratas, fosse no mediterrâneo, no Golfo Pérsico, ou até mesmo no Índico.

Após a conversão de Janszoon ao islamismo e aos modos de seus captores, ele se juntou à frota do famoso corsário Sulayman Rais, que também era outro pirata holandês convertido ao Islã, cujo nome real era Ivan Dirkie de Veenboer, juntamente com Zymen Danseker, mais um holandês com a mesma história. Naquela altura, a regência de Argel havia concluído acordos de paz com várias nações europeias, e não era mais um porto adequado para vender navios capturados ou sua carga.

Ali Janszoon obteve grandes lucros invadindo ilhas do Mediterrâneo, como as Ilhas Baleares, Córsega, Sardenha e a costa sul da Sicília. Ele costumava vender a maior parte de suas mercadorias em Tunis, onde fez amizade com o Dey. Navegando no mar Jónico, ele lutou contra os venezianos perto das costas de Creta e Chipre com uma tripulação de corsários composta por holandeses, moriscos espanhóis, árabes, turcos e janízaros balcânicos.

Depois que Sulayman Rais foi morto por uma bala de canhão em 1619, Janszoon mudou-se para o antigo porto de Salé no Marrocos e começou a operar a partir dele como um corsário berbere, ainda que sem uma única gota de sangue tuaregue, árabe ou amazigh.

A Proclamação da República

Ilustração de Salé, capitial da famosa república pirata nos anos 1600.

Em 1619, o porto de Salé no Marrocos começou a tornar-se independente do sultanato saadiano, dando inicio a República de Salé. Lá, com a chegada em levas de 10.000 muçulmanos espanhóis de Hornachos expulsos por ordem de Felipe II, piratas das mais diversas etnias formaram um governo independente.

A República de Salé consistia do governo de entre 12 e 14 notáveis, que elegeram em 1624 Janszoon como seu presidente e grão-almirante. Ele adotou o nome de Murat Reis, pelo qual passou a ser conhecido. A frota de Salé totalizava cerca de dezoito navios, todos pequenos devido à entrada muito rasa de seu porto na desembocadura do rio Bou Regreg, porém não menos letais. Ali, renegados europeus, muçulmanos espanhóis, berberes, judeus, cristãos europeus convertidos ao Islã, fosse qual fosse sua origem, se quisesse viver da pirataria, Salé era o lugar.

Depois de um cerco mal sucedido da cidade, o sultão do Marrocos Zidan Abu Maali reconheceu sua semi-autonomia, nomeando Janszoon como governador de forma cerimonial, e os cidadãos concordaram em pagar  10% de seu butim de saque ao sultão saadiano.

Bandeira da República de Salé, ostentando a cor verde e uma abstração artística da Zulfiqar, espada que concedida pelo Profeta Muhammad ao seu primo-genro Ali.

Sob a liderança de Janszoon, os negócios em Salé prosperaram. As principais fontes de renda dessa república continuavam sendo a pirataria e seus ofícios, transportando e negociando os butins de navios inimigos. Os historiadores notaram a inteligência e bravura de Janszoon, que foram expressas em sua capacidade de liderança. Diante da necessidade de um assessor, ele contratou um compatriota da Holanda, Mathys van Bostel Oosterlinck, que atuaria como seu vice-almirante.

É dito que em seus anos como presidente de Salé ele se casou com Margarita, uma muçulmana mourisca espanhola de Cartagena. Eles tiveram quatro filhos juntos: Abraham, Anthony, Phillip e Cornelis. Especula-se que Janszoon também tenha se casado mais uma terceira vez, com a filha do sultão Moulay Ziden em 1624. Seu filho com Margarita de nome Anthony Janszoon van Salee (1607–1676) tornaria-se um personagem importante na colonização norte-americana.

Em  1627, Jan deixou seu posto de presidente em Salé devido a crises políticas, se mudando para Argel com sua família. No mesmo ano, capturou a ilha de Lundy no Canal de Bristol, usando-a como base de operações por cinco anos. No mesmo ano, conduziu uma incursão a Islândia sendo guiado por um nativo dinamarquês, onde atacou a vila de Grindavík, tomando mercadorias e alguns poucos cativos. Outra tentativa foi feita na mesma época de atacar Bessastaðir, contudo a posição das embarcações de Jan em relação aos canhões do porto tornaram a empreitada bastante perigosa, fazendo os piratas desistirem. Na memoria islandesa estes eventos são conhecidos coletivamente como Tyrkjaránið ou “Sequestros Turcos”, que apesar de serem “vassalos otomanos”, o que aqueles piratas batavos-espanhóis menos eram é turcos.

Relatos de islandeses escravizados que passavam algum tempo nos navios corsários alegaram que as condições para mulheres e crianças eram normais, na medida em que eram permitidos a movimentação por todo a embarcação, recebendo alimentação extra. O caso de uma mulher que deu à luz a bordo de um dos navios da frota de Jan mostra que estes cativos eram tratados com dignidade, recebendo privacidade e roupas dos piratas.

Os homens caputrados eram colocados no porão dos navios, e tinham suas correntes removidas quando longe da costa. Apesar das alegações populares sobre o tratamento de cativos, os relatos dos islandeses não falam de quaisquer estupros ou torturas.

Tendo navegado por dois meses e com pouco para apresentar daquela pobre parte do norte da Europa, Janszoon voltou-se para a ajuda de um cativo tomado na viagem, um certo católico romano chamado John Hackett, para obter informações sobre onde poderia ser feito um ataque lucrativo. John sugeriu então que o ataque poderia ser dirígio à Irlanda católica, então sob pressão da ocupação britânica protestante, mas especificamente na cidade de Baltimore.

Os moradores protestantes ingleses de Baltimore, uma pequena cidade em West Cork, viviam em conflito com os católicos irlandeses nativos, devido a estes terem se estabelecido em terras tomadas do clã O’Driscoll. Após preparação, Hackett guiou Janszoon e seus piratas à cidade, que foi atacada em 20 de junho de 1631. Poucos bens foram tomados, mas uma soma de 108 cativos protestantes ingleses que seriam vendidos no norte de África tinham feito a viagem valer a pena. A pedido de Hackett, os católicos não foram molestados. Mas a alegria da vingança de John contra os protestantes não durou muito. Este foi posteriormente capturado pelos ingleses e enforcado.

Janszoon atuava para garantir a libertação de cativos holandeses de outros piratas e impedir que eles fossem vendidos como escravos. Conhecedor de várias línguas, enquanto em Argel ele contribuiu para o estabelecimento do Tratado Franco-Marroquino de 1631 entre o rei francês Luís XIII e o sultão Abu Marwan Abd al-Malik II.

Antigo canhão posicionado nos muros de uma fortaleza no porto da antiga República de Salé.

Captura pelos Hospitalários e anos finais

Em 1635, navegando perto da costa da Tunísia, Jan Janszoon ”Murat Reis” estava em menor número e foi surpreendido por um ataque repentino. Ele e muitos de seus homens foram capturados pelos também piratas, porém católicos, Cavaleiros de Malta. Ele foi preso nas notórias masmorras escuras da ilha maltesa, onde cativos muçulmanos tomados pela Ordem de São João eram vendidos. Lá, sofreu imensas torturas e maus tratos, ficando com a saúde altamente debilitada. Após cinco anos no cativeiro em 1640, ele conseguiu escapar com dificuldades após um ataque maciço de corsários tunisianos enviados por seu amigo o Dey de Tunis. para resgatar escravos muçulmanos presos na ilha.

Depois do resgate, Janzsoon retornou a Salé no mesmo ano em 1640, e lá foi calorosamente recebido, nomeado governador da grande fortaleza de Oualidia, perto de Safi, tomando moradia no Castelo de Maladia. Em dezembro de 1640, um navio chegou com um novo cônsul holandês enviado ao Marrocos, que trazia consigo Lysbeth Janszoon van Haarlem, filha de Janszoon por sua esposa holandesa, para visitar seu pai. Quando Lysbeth chegou, encontrou seu pai sentado com muita pompa em um tapete, com almofadas de seda, e serviçais a sua volta, evocando a imagem de um sultão. Ela viu que Murat Reis havia se tornado um velho fraco. Lysbeth ficou com o pai até agosto de 1641, quando voltou à Holanda. Pouco se sabe sobre Janszoon a partir de então; ele provavelmente se aposentou finalmente da vida pública e da pirataria devido a debilidade da idade. A data exata de sua morte permanece desconhecida.

Bibliografia:

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-Wilson, Peter Lamborn (2001), Utopias piratas: mouros, hereges e renegados

– Stephen Snelders, The Devil’s Anarchy: The Sea Robberies of the Most Famous Pirate Claes G. Compaen & the Very Remarkable Travels of Jan Erasmus Reyning, Buccaneer

-Konstam, Angus (2008). Piracy: The Complete History. Osprey Publishing.

-Karg, Barb, Arjean Spaite. 2007. The everything pirates book.

-Vilhjálmur Þ. Gíslason, Bessastaðir: Þættir úr sögu höfuðbóls. Akureyri. 1947.

-Ólafur Egilsson, The Travels of Reverend Olafur Egilsson

-Ekin, Des (2006). The Stolen Village. OBrien.