Quando se fala em Idade Média, é comum associar esse período a trevas (“Idade das Trevas”): repressão intelectual, religiosa e tudo mais de negativo que alguém pode vir a pensar. Isso ocorre principalmente por uma análise eurocêntrica do período medieval, que estuda especialmente a Europa cristã.

Entretanto, o período medieval compreende cerca de mil anos, ou seja, é impossível fazer um reducionismo de “idade das trevas” ou algo do gênero mesmo para um ponto geográfico específico – como o caso da Europa cristã. Dessa maneira, muitos historiadores vieram a chamar de “Idade das Trevas” apenas um curto período de tempo do medievo, isto é, o que sucedeu à queda do Império Romano. Os motivos para esse nome são vários, que não serão dissertados aqui, mas que englobam desde um declínio econômico, cultural, demográfico etc., que vieram à tona após a queda de Roma.

Porém, como dito acima, o período medieval compreende cerca de mil anos, e até mesmo para a Europa cristã foi um período muito diversificado em vários momentos. Da mesma maneira que houveram períodos de estagnação, houveram também grandes avanços que vieram a moldar (positivamente) as sociedades que hoje ocupam o mesmo espaço geográfico que a outrora Cristandade.

Não obstante, o Medievo se estende ainda para outras civilizações, como a chinesa, islâmica e assim por diante. Apesar de uma civilização poder ser considerada “cristã” ou “islâmica”, nem todos os seus habitantes professavam da mesma fé. Esse é o caso da figura lendária do judaísmo medieval, Maimônides.

Vida e Obra de Maimônides

Rabbi Moshe ben Maimon, ou em sua versão árabe, Abu ʿImran Musa bin Maimun bin ʿUbaidallah al-Qurtabi, ou simplesmente Maimônides como é mais conhecido, nasceu em 1135-11381 durante o domínio Almorávida na então Espanha Islâmica.

Infelizmente para o historiador, os judeus do medievo não escreviam biografias ou autobiografias, e documentos contendo detalhes de sua vida pessoal (como acontecimentos) são escassos. Mas, felizmente, Maimônides é o autor judeu que mais sabemos a respeito nos dias de hoje, e isso se deve principalmente aos próprios escritos do sábio judeu, como por exemplo suas cartas e livros (DAVIDSON, 2005).

Dentre essas informações que encontramos sobre ele, temos por exemplo um escrito muito famoso que traça sua própria linhagem, dizendo:

Moisés, filho de Maimon o juiz rabínico [dayyan], o filho de José o Sábio [ou: rabino (hakam)], filho de Isaac o juiz rabínico, filho de José o juiz rabínico, filho de Obadia o juiz rabínico, filho de Salomão o rabino, filho de Obadia o juiz rabínico (DAVIDSON, 2005, p. 4).

Seu pai, Maimon Ben Joseph, como atestado acima, era um dayyan, isto é, um juiz.2 Foi com ele que Maimônides iniciou seus estudos da Torá. Porém, cerca de 10 anos depois do nascimento de Maimônides (a depender da data que atribuímos a quando ele nasceu), os Almorávidas perderam seu domínio em Córdoba para os Almoadas em 1148, que assim como os predecessores, eram oriundos do Norte da África, mais especificamente da Berbéria.

Diante do jugo Almoada, muitos judeus se viram forçados a ir embora de Córdoba, uma vez que o status de dhimmi (i.e., protegido) foi abolido pelos novos governantes em algumas partes de seu domínio. Isso significa dizer que a qualidade conferida aos judeus pela lei islâmica não mais foi observada. David J. Wassertein (2012), ao falar de outro contexto, mas que pode muito bem ser aplicado aqui:

Isso não deve ser mal interpretado: ser um cidadão de segunda classe [i.e., um dhimmi] era uma coisa muito melhor do que não ser cidadão. Para a maioria desses judeus, a cidadania de segunda classe representou um grande avanço. Na Espanha visigótica, por exemplo, pouco antes da conquista muçulmana em 711, os judeus viram seus filhos serem removidos e convertidos à força ao cristianismo, e eles próprios foram escravizados.

Muitos judeus também sofreram conversões forçadas ao Islã3 no período Almoada. Abraham ibn Daud, um cronista judeu espanhol escrevendo quase duas décadas depois da conquista almoada, constata que com a chegada desses novos governantes “anos de calamidade, decretos malignos e perseguições religiosas [shemad] se abateram sobre Israel” (DAVIDSON, 2005, p. 11).

Porém, ao invés de ficarem em Córdoba sem a condição de protegidos que lhes é de direito pela shariah, a família de Maimônides optou pelo exílio. Anos mais tarde o próprio sábio judeu escreveria a respeito dessas perseguições dos Almoadas em sua Epístola ao Iêmen em 1170:

na Terra do Iêmen (…) foi decretada a perseguição religiosa [shernad] contra Israel e forçaram [os habitantes de] todos os lugares onde ele exercia a soberania a deixar sua religião, como os Africanos fizeram na terra do Ocidente (Ibd, p. 12).

A família de Maimônides foi para a costa norte africana, vindo a chegar no Egito e lá se estabelecendo (BAUER, 2013). Antes disso, passaria pelo sul da Espanha e viria a morar em Fez no Marrocos. Isso tudo levou cerca de 10 anos, período esse (1166-1168) que aproveitou para escrever sua famosa obra comentando o Mishnah, o registro escrito das tradições orais judaicas.

Ainda antes de se estabelecer no Egito, Maimônides peregrinaria em Israel, e aí sim iria para a terra dos faraós morar em Fustat, até então sob domínio do Califado Fatímida, e por sinal a primeira capital islâmica egípcia.

Entretanto, apesar de uma figura muito bem documentada, existem ainda muitas lacunas a respeito de sua vida, como por exemplo os locais que ele residiu antes de chegar ao Egito, juntamente com as respectivas datas dos acontecimentos de sua vida; com quem estudou e o que (obras, autores, etc.), cargos que ocupou e assim por diante. Algumas das informações que hoje possuímos são resultados de conjecturas por parte de alguns estudiosos do século XX, conforme ainda atesta novamente Davidson (2005).

De acordo com o The Jewish Magazine (2012), os judeus haviam sido proibidos de entrar em Jerusalém desde que a Terra Santa havia se tornado um bastião Cruzado em 1096:

Durante séculos, Jerusalém foi uma cidade muçulmana, mas novamente assumiu um caráter cristão durante a ocupação dos cruzados. As tradições cristãs foram renovadas e igrejas e mosteiros reconstruídos. Como acontecia na época bizantina, os judeus foram novamente proibidos de entrar na cidade, quanto mais morar lá. O Monte do Templo, depois de se tornar o centro da vida religiosa e civil na Jerusalém cruzada, foi declarado um local proibido para todos os não-cristãos.

Entretanto, ainda segundo a mesma fonte, alguns judeus foram permitidos a ir até o Monte ocasionalmente pelos governantes cruzados. Dentre esses judeus podemos encontrar o próprio Maimônides. Primeiramente ele desembarcou em Acre, onde permaneceu por cerca de 6 meses com a comunidade judaica local; realizou suas peregrinações na região da Galileia e em seguida foi para Jerusalém, partindo de Acre no dia 19 de outubro de 1165.

Posteriormente, Maimônides desempenhou um papel de grande importância no resgate de alguns judeus que haviam sido tomados como cativos por Amalrico I de Jerusalém após o cerco de Bilbeis entre 1166-1167. Diante dessa situação caótica, o sábio de Córdoba enviou algumas cartas para as lideranças judaicas do Egito, aconselhando-os a juntar uma quantia em dinheiro para o seu resgate. As comunidades do Sul do Egito atenderam ao chamado de Maimônides e o dinheiro foi reunido, encarregando dois juízes de irem até a Palestina negociar com os líderes Cruzados, terminando positivamente para a comunidade judaica, que tiveram sua liberdade restituída.

Apesar desses aparentes sucessos em sua vida, poucos anos depois de sua peregrinação ao Templo do Monte uma tragédia inesquecível viria a ocorrer: a morte de seu irmão mais novo, David bem Maimon.

Em uma carta encontrada no depósito (genizah) da sinagoga de Ben Ezra em Fustat (Egito), podemos ver a dor que Maimônides sofreu após a trágica perda de seu irmão quando seu navio afundou quando o mesmo partia para a Índia a negócios:

O maior infortúnio que se abateu sobre mim durante toda a minha vida – pior do que qualquer outra coisa – foi a morte do santo, que sua memória seja abençoada, que se afogou no mar da Índia, carregando muito dinheiro que pertencia a mim, a ele e a outros, deixando comigo uma filha pequena e uma viúva. No dia em que recebi essa notícia terrível, adoeci e permaneci na cama por cerca de um ano, sofrendo com feridas, febre e depressão, e quase desisti. Cerca de oito anos se passaram, mas ainda estou de luto e não consigo aceitar consolo. E como devo me consolar? Ele cresceu na minha frente, era meu irmão [e] era meu aluno (GOITEIN, 1974, p. 203).

Apesar dessa perda sem precedentes em sua vida, Maimônides passaria a desempenhar um papel importante na comunidade judaica do Egito, mais especificamente em Fustat. Lá, agiu como o líder juiz-chefe da corte judaica da cidade, porém alguns estudiosos especulam que por volta do ano de 1171 Maimônides viria a receber o cargo de nagid da comunidade judaica no Egito (DAVIDSON, 2005).

O termo nagid significa “príncipe” ou “líder” na língua hebraica, designando o papel de liderança nas comunidades sefarditas durante o período medieval. De acordo com o rabino italiano do século XV, Obadiah da Bertinoro, o cargo de nagid no contexto egípcio implicava uma liderança sobre todos os judeus sob o domínio do Rei do Egito, ou em suas palavras:

O Judeu Nagid que reside no Cairo é nomeado sobre todos os judeus que estão sob o domínio do Rei do Egito; ele tem todo o poder de um rei e pode punir e prender aqueles que agem em oposição aos seus decretos; ele nomeia os Dayyanim (juízes) em cada comunidade (BERTINORO, apud ADLER, 1930, p. 229)

As vezes os nagids eram chamados de “cabeça dos judeus” (ra’is al-Yahud), título concedido pelos governantes muçulmanos; e por vezes gozavam de ambos os títulos. Acontece que Maimônides ocupou esse cargo por pouco tempo, sendo substituído em 1173 por Sar Shalom ben Moses. Todavia, a liderança de Shar Shalom foi conturbada, uma vez que o mesmo foi acusado de má administração fiscal, sendo excomungado por Maimônides.

Até a queda da dinastia Fatímida em 1171, Sar Shalom possuía o cargo de nagid, mas em 1173 já no domínio Aiúbida, foi substituído por Maimônides. Dois anos depois como dito acima, Sar Shalom ben Moses retomaria seu posto, mas seria marcado pelos conflitos com o sábio de Córdoba, até que perdesse o cargo novamente em 1195.

Devido a seu período como nagid, Maimônides conseguiu grande prestígio no Egito. Assim como muitos judeus antes e depois dele, Maimônides tinha amplo conhecimento de medicina, recebendo seu treinamento ainda quando em Córdoba e se aperfeiçoando ainda mais posteriormente no Marrocos.

Graças à boa reputação que adquiriu enquanto servia à comunidade judaica, foi nomeado como médico da corte do grão-vizir al-Qadi al-Fadil. Posteriormente viria a ser o médico do próprio Saladino, o lendário sultão. Maimônides foi o médico pessoal do famoso herói muçulmano das cruzadas.

Ibn Abi Usaybi’a, um médico muçulmano, escreveu décadas após a morte de Maimônides que o médico judeu possuía pacientes de grande importância, como sultão Saladino e seu filho mais velho “Rei [ou: Príncipe] al-Afdal”. Porém, algo intrigante é que o próprio Maimônides não cita em suas cartas enviadas ao seu discípulo Joseph ben Judah de Ceuta seus “pacientes importantes”, como o qadi e grão-vizir (al-Fadil) ou ainda Saladino e seu filho mais velho, al-Afdal Nur al-Din Ali. Isso pode ter uma explicação no fato de que na época dessas cartas os membros da realeza egípcia ainda não estavam sob seus cuidados, ou ainda por conta dos personagens citados não terem ido pessoalmente se tratar com o médico judeu, mas sim através de mensageiros enviados até ele.

Contudo, em uma carta endereçada para Samuel ibn Tibbon, Maimônides descreve a sua rotina com o objetivo de desencorajar seu interlocutor a sair da França e ir até o Egito para discutir questões filosóficas com ele.4 Nesses escritos para Samuel, Maimônides afirma que todo dia pela manhã ele viajaria de Fustat até o Cairo para atender o rei (malik). A questão é, quem foi esse rei que Maimônides se referiu em sua carta? A carta é de 1199, e Saladino morreu em 1193, e o filho que sucedeu Saladino morreu um ano antes da carta ser escrita (1198). Maimônides poderia aqui estar muito bem se referindo a al-Afdal, mas alguns estudiosos argumentam que o que foi enviado para ibn Tibbon como sendo uma só carta era, na verdade, uma espécie de “compilado” de escritos que foram produzidos em épocas distintas. Ou seja, diante disso, o rei a qual Maimônides poderia estar se referindo pode muito bem ter sido o próprio sultão Saladino, a quem o médico judeu pode ter viajado diariamente para ir cuidar de sua saúde e de sua família.5 Em uma das versões da carta escrita por Maimônides pode-se ler:

Meus deveres para com o sultão são muito pesados. Devo visitá-lo todos os dias, de manhã cedo, e quando ele ou algum de seus filhos ou concubinas estiverem indispostos, não posso deixar o Cairo mas sim ficar a maior parte do dia no palácio. Também acontece com frequência que um ou dois dos oficiais adoecem e devo cuidar de seu tratamento. Por isso, via de regra, todos os dias bem cedo vou ao Cairo e, mesmo que nada de anormal por lá aconteça, só volto a Fustat à tarde. Então estou faminto, mas encontro as antecâmaras repletas de pessoas, tanto judeus como gentios, nobres e pessoas comuns, juízes e policiais, amigos e inimigos – uma multidão mista que aguarda o meu retorno.

Desmonto de meu animal, lavo as mãos, vou até meus pacientes e rogo-lhes que me acompanhem enquanto faço um lanche leve, a única refeição que faço em vinte e quatro horas. Depois, vou atender meus pacientes e redigir receitas e instruções para suas doenças. Os pacientes entram e saem até o anoitecer e, às vezes, mesmo que a Torá seja minha fé, até duas horas ou mais à noite. Eu converso com eles e prescrevo para eles, mesmo quando estou deitado de puro cansaço. Quando a noite cai, fico tão exausto que mal consigo falar (ROSNER, 2002).6

Independentemente de quem seja o rei, príncipe ou sultão que somos informados na carta acima, algo é evidente em toda a vida médica de Maimônides: sua forma humana e atenciosa de tratar seus pacientes. Em suas obras sobre o tema, podemos ver um foco na medicina preventiva, porém não deixava em nada a desejar quando o assunto era tratar as doenças que já acometiam o corpo, quando não mais podia evita-las. Assim, Maimônides prescrevia um tratamento completo, isto é, algo que englobava tanto o cuidado com o corpo quanto com a mente.

Muito embora não saibamos com exatidão o que Maimônides leu em alguns momentos de sua vida, suas obras médicas demonstram claramente uma leitura dos antigos médicos Gregos e Persas. Indo mais além, tinha leitura também nas obras de seus contemporâneos medievais, e isso não é em vão: Maimônides conviveu a sua vida toda na presença muçulmana, e os muçulmanos foram as figuras mais proeminentes e prolíficas da medicina medieval.

Maimônides viria a descrever várias doenças em seus tratados médicos, como hepatite, diabete, asma, pneumonia etc. O mais interessante e que demonstra o gênio desse grande sábio é que, muito embora a medicina tenha avançado muito desses quase mil anos que se passaram entre a época de Maimônides até a nossa, sua obra possui uma qualidade e nível de precisão que em muitos momentos não deixa a desejar em nada às obras modernas sobre os mesmos temas.

Apesar de ter uma rotina extremamente atarefada, Maimônides foi um escritor muito prolífico. Somente na área de medicina ele escreveu 10 obras. Como recém mencionado, o médico judeu possuía estudo nas obras clássicas sobre medicina, e como não podia ser diferente, Galeno era um desses autores que Maimônides havia estudado em algum período de sua vida. Em sua obra “Extratos da Arte da Cura de Galeno”, Maimônides realizou um compilado daquilo que ele considerou mais importante nas obras do médico do segundo século d.C.

O termo “compilado” não faz jus à tarefa hercúlea realizada por Maimônides, pois Galeno também havia sido um autor com dezenas de obras escritas para acrescentar em seu currículo, escrevendo cerca de 100 livros sobre assuntos médicos. Dessa maneira, foram necessários dois volumes apenas para catalogar e referenciar todos eles no compilado de Maimônides, que primeiramente servia para o uso de seus estudantes de medicina (Rosner, 2002). O extrato da obra de Galeno escrito por Maimônides foi originalmente escrito no idioma árabe, a lingua franca da medicina medieval.

Sua segunda obra sobre medicina foi um comentário aos Aforismos de Hipócrates, o famoso pai da medicina. Assim como seus contemporâneos muçulmanos, Maimônides não se contentou em apenas estudar e comentar as obras dos autores da antiguidade e do período clássico, mas fez análises críticas ao que lia, sendo suas observações importantes para o desenvolvimento da medicina como um tudo, assim como ocorreu com autores como Ibn Sina (Avicena), al-Kindi e tantos outros.

Em seu Comentário sobre os Aforismos, Maimônides critica tanto Hipócrates quanto Galeno, isso é claro, naquilo que o médico judeu divergia com os demais. Em uma passagem marcante trazida por Rosner (2002), há a afirmação de Hipócrates dizendo que “um menino nasce do ovário direito e a menina do esquerdo”, em que Maimônides reage dizendo “Alguém teria de ser ou um profeta ou um gênio para saber disso”.

A sua terceira obra, que é a sua maior em extensão e provavelmente a de maior importância foi o seu “Aforismos Médicos de Moisés”, que continha 1500 aforismos a respeito dos mais variados assuntos e áreas da medicina e dividido em 25 capítulos (CERDA, 2009). Dentre os temas que tratou em seus Aforismos podemos encontrar: anatomia, fisiologia, ginecologia, higiene, dieta, medicamentos, cirurgia e muitos outros assuntos distintos, que iam desde curiosidades médicas até laxantes (ROSNER, 2002).

Maimônides viria a escrever muitas outras obras na área da medicina, como o também famoso Regimen Sanitatis, escrito para o sultão al-Malik al-Afdal, filho de Saladino. O sultão sofria de depressão e tinha maus hábitos alimentares, indo se queixar com Maimônides sobre sua situação. Como o médico judeu era também médico da corte, prontamente lhe deu prescrições referentes a medicamentos, dieta, higiene e afins. Nessa obra contém aquilo que foi mencionado anteriormente: a atenção dada por Maimônides em ter um corpo são e uma mente sã, sendo um dos primeiros escritos a respeito de medicina psicossomática.

Indo mais além, Maimônides escreveu livros e mais livros a respeito de sua fé: o judaísmo. Nesses escritos, Maimônides se preocupou tanto com a fé quanto as leis judaicas, indo desde aquilo que ficou conhecido como “13 princípios da fé [judaica]” até a composição de um código legal judaico.

Em seu Mishneh Torah, ou seja, seu comentário às leis religiosas judaicas (halakha), Maimônides pretendia fornecer uma compilação de grande abrangência sobre a Lei Oral, de maneira que uma pessoa que dominasse primeiro a Torá Escrita e depois o Mishneh Torah não precisasse de mais nenhum outro livro.

A Mishneh Torah foi o primeiro código de leis judaico sistemático baseado na Mishnah (também chamada de “Torá Oral”). Neste texto, Maimônides articulou suas próprias discordâncias ocasionais com as interpretações do Talmude, mas ele afirmou consistentemente que o ensino talmúdico, apesar de tudo, era prescrito para os judeus. Desta forma, Maimônides demonstrou uma liberdade para interpretar enquanto, ao mesmo tempo, aceitava a regra da lei talmúdica bem estabelecida (KARESH; HURVITZ, 2006).

O Mishneh Torah consiste em 14 livros, que são divididos em sessões, capítulos e parágrafos, cada um tratando de algum assunto específico, como a ordem das orações, circuncisão, observância do Sabbath, casamento (e divórcio), roubo, uma pessoa ferir a outra e assim por diante.

Maimônides foi mais além, escrevendo também sobre filosofia e teologia. Na primeira área, sua obra mais famosa é sem dúvida o seu Guia para os Perplexos, que também foi originalmente escrito em árabe sob o título de Dalalat al-ḥaʾirin:

Mas sua influência duradoura em todo o mundo deve-se a um livro que escreveu em árabe no final da vida, o Guia para Perplexos. O objetivo era reconciliar as aparentes contradições entre filosofia e religião, que perturbavam os crentes instruídos. O ensino bíblico e o aprendizado filosófico se complementam, afirmou ele; o verdadeiro conhecimento da filosofia é necessário para que se tenha um entendimento completo da Bíblia. Onde os dois parecem se contradizer, as dificuldades podem ser resolvidas por uma interpretação alegórica do texto sagrado (KENNY, 2005, p. 51).

Segundo Oliver Leaman (2006), de acordo com Maimônides, não devemos ver os milagres como eventos que são contrários à natureza e projetados para nos forçar a reconhecer o poder e a vontade de Deus. O problema com milagres como esse é que eles nos forçariam a ficar do lado de Deus por motivos de prudência, e isso dificilmente pode ser o que Deus deseja que façamos. De qualquer forma, se o curso da natureza fosse totalmente perturbado por Deus sempre que isso pudesse ser eficaz, logo perderíamos a fé na necessidade e regularidade naturais. Então Maimônides pensa que os milagres na Torá não podem provar nada; o que eles fazem é confirmar o que podemos resolver de qualquer maneira. Na verdade, os dois primeiros dos chamados Dez Mandamentos não precisam de forma alguma ser adquiridos através de uma profecia, já que podemos chegar até eles de maneira inteiramente racional.

Essa visão mais racionalista de Maimônides viria a influenciar posteriormente grandes pensadores da Cristandade medieval, como São Tomás de Aquino, Alberto Magno e Duns Escoto. Entretanto, suas fontes são principalmente os pensadores árabes, juntamente com os escritos de Aristóteles.

Maimônides sem dúvida alguma foi um grande leitor e admirador da filosofia aristotélica, dos gregos em geral e da filosofia islâmica. Assim, equiparou o Deus de Abraão ao Ente Necessário da filosofia. Indo adiante, defendia que não é possível haver contradições entre as verdades reveladas por Deus e as descobertas realizadas pelo ser humano através do uso da razão nas áreas científicas e filosóficas.

Maimônides também admirava os comentaristas neoplatônicos, o que o levou a certos pensamentos que não foram reaproveitados pelos escolásticos da Cristandade.

Foi adepto ainda da teologia apofática, um pensamento muito popular para vários teólogos cristãos. Para Aquino, de acordo com a própria Enciclopédia Católica:

Deus não é absolutamente incognoscível e, no entanto, é verdade que não podemos defini-lo adequadamente. Mas podemos concebê-lo e nomeá-lo de “forma analógica”. As perfeições manifestadas pelas criaturas estão em Deus, não apenas nominalmente (equivoce), mas real e positivamente, visto que Ele é sua fonte. Porém, eles não estão Nele como estão na criatura, com uma mera diferença de grau, nem mesmo com uma mera diferença específica ou genérica (univoce), pois não há conceito comum incluindo o finito e o Infinito. Eles estão realmente Nele de uma maneira supereminente (eminenter) que é totalmente incomensurável com seu modo de ser nas criaturas. Podemos conceber e expressar essas perfeições apenas por uma analogia; não por uma analogia de proporção, pois essa analogia repousa em uma participação em um conceito comum e, como já foi dito, não há elemento comum ao finito e ao Infinito; mas por uma analogia de proporcionalidade (SAUVAGE, 1907, [n.p]).

Maimônides viria ainda a abordar o problema da teodiceia, ou seja, o problema do mal. Ele era adepto do pensamento de que o bem supera o mal em uma escala geral no universo. O sábio pensava que caso alguém observasse a existência apenas em termos humanos, concluiria que o mal domina sobre o bem; porém, caso o observador direcionasse para o universo de maneira geral, veria o bem em maior número do que o mal. Ele acreditava ainda que havia três tipos diferente de mal no mundo: aquele causado pela natureza, aquele que o ser humano causa contra terceiros, e o que o ser humano causa contra si mesmo.

Maimônides argumentava que Deus não criou o mal, e que o mal é a ausência do bem, ou seja, o mal existe onde o bem está ausente. Assim, tudo o que é bom é criação divina, enquanto tudo o que é ruim não é criação divina.

O grande sábio judeu ainda escreveria outras obras, e teria outras ideias memoráveis, mas que devido ao seu altíssimo calibre e extensão são impossíveis de comentar com a qualidade que Maimônides merece em tão poucas linhas.

Maimônides viria a morrer em 12 de dezembro de 1204 em Fustat no Egito, local onde passou uma parte significativa de sua vida e escreveu muitas de suas obras. Deixando para trás um legado que atravessou barreiras religiosas, temporais e geográficas, Maimônides é lembrado tanto por judeus, cristãos e muçulmanos como um dos maiores pensadores de todos os tempos, uma verdadeira referência para todos aqueles que professam as três fés abraâmicas e também para os que não professam, mas que possuem amor pelo conhecimento e admiração pelos grandes intelectuais da história.

Notas

[1] Há divergências entre os especialistas, mas o ano de 1135 parece ser aceito pela maioria. Outras datas como 1131 e 1132 já foram sugeridas também.

[2] Um dayyan é aquele que atua num Beth din, uma corte rabínica dentro do Judaísmo.

[3] Mais outro desrespeito aos ensinamentos islâmicos praticado pelos Almoadas. Dessa vez, rasgando o preceito contido no próprio Alcorão de que “não há compulsão na religião” (La ikrah fi aldin), contido na Surah al Baqarah, ayat 256 [2:256]

[4] Samuel estava prestes a começar uma tradução da obra Guia dos Perplexos de Maimônides (Moreh Nevuchim, em hebraico), livro esse que será brevemente abordado mais adiante no texto.

[5] Isso é uma das várias especulações acadêmicas que cercam a vida de Maimônides. Mas assim como quase tudo na Academia, o que foi dito é passível de críticas e discordâncias, e de fato é. Ver a obra de Davidson (2005, p. 70) para se inteirar mais no debate acerca das cartas endereçadas para Samuel ibn Tibbon.

[6] Outra versão, como dito na nota acima, pode ser conferida na obra de Davidson (2005) na página 70.

Bibliografia

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