Navegando pela internet ou mesmo convivendo com a comunidade muçulmana no Brasil, muito provavelmente você já deve ter ouvido o axioma: ‘’Falar Maomé é um insulto ao Profeta’’, ou variações do mesmo intentando mais intelectualidade, como “Foi uma forma de associar o nome do Profeta ao demônio Bafomé’’, ‘’Não se deve traduzir nomes’’ etc...Esta questão tornou-se tão fundamental no discurso islâmico nacional, tão repetida e divulgada como uma espécie de lenda urbana, que basicamente ninguém para para se perguntar qual a origem dela, tratando-a como uma ‘’verdade inquestionável’’, e levando-a a ferro e fogo, provocando até mesmo indignação entre muçulmano quando este nome é associado ao Profeta por pessoas que não seguem a religião. Mas final, de onde vem a palavra “Maomé’’? É uma tradução do nome do Profeta? Foi criado para insulta-lo ou associar ele à um demônio? Bem, são estas questões que tratarei aqui neste artigo.

Turquificação da palavra

Etimologicamente, o nome do Profeta do Islã, Muhammad, significa "aquele que é louvado’’, mas segundo alguns conspiracionistas, a forma ‘’Maomé’’ ao se referir a ele seria uma distorção voluntária com a intenção de atribuir-lhe o significado oposto no árabe, soando como ‘’mâ humida”, que significa ‘’o não louvado.’’ No entanto, esta hipótese não é crível porque o nome do Profeta varia de um idioma para o outro, e esta ‘’sonoridade’’ semelhante a ‘’ma humida’’ simplesmente some de uma língua para outra. Temos Mahoma na Espanha, Mahomet na França, Magumetu em Córsega, Maometto na Itália, apenas para citar alguns.

Se essa tese fosse verdadeira, ela se limitaria à Portugal, Espanha e França, e aos poucos países de influência latina que usam essa terminologia, ou cuja pronuncia se assemelha a ‘’ma humida’’, e ainda teria que ser contrastada com o fato de que ‘’Maomé’’ é somente a forma atual mais conhecida de falar o nome do Profeta em nosso idoma, visto que no passado, Mafamede, Mafoma e Mafadame também eram comuns. Portanto, não faz sentido que seja uma conspiração internacional de não muçulmanos para zombar do nome do Profeta com ‘’ma humida’’  ou ‘’o não louvado’’, pois em cada língua o nome sofre uma variação parcial ou totalmente diferente (ex, em que Magumetu é parecido com Mahomet?).

Outra variante teórica é que a pronúncia ‘’Maomé’’ vem do turco otomano ‘’Mehmet’’, o que também não plausível. É verdade que os povos turcos muito tardiamente adaptaram o nome de Muhammad em Mehmet, passando primeiro por Mehemmet. Mehmet é, portanto, o diminutivo de Mehemmet e se refere ao Profeta. Mas se os turcos substituíram o “d” por um “t”, é essencialmente por razões ligadas à estrutura da língua turca. Na verdade, existem pouquíssimas palavras que terminam com a letra “d” no turco contemporâneo. As 24 existentes, a maioria deles sendo nomes de lugares estrangeiros, como Riyad ou Madrid, anglicismos como barkod ou antigas palavras turcas como şad.

Na cultura turca, uma tradição popular diz que o nome Mehmet foi inventado na era otomana para não manchar o nome original do Profeta. Pois se alguém com este nome se tornasse um pecador costumaz, diriam ‘’Muhammad fez isso e aquilo’’, sendo o nome do Profeta associado a alguém ruim. Outras tradições populares explicam que seu significado seria “Muhammadinho”, um diminutivo, sempre com a ideia de reverência ao nome do Profeta em sua originalidade, deixando-o só para ele. Mas há exemplos de que a natureza do ‘’Mehmet’’ é tardia.

Para descobrir se os antigos turcos usavam esse termo, tendo-se originado nas bases de seu idioma, devemos voltar à obra de referência sobre as línguas turcas e os usos do turco antigo, o Dîvânu Lugâti't-Türk (literalmente "Coletânea de Línguas Turcas"). Escrito no século XII pelo estudioso Mahmud de Kashgar, este trabalho é uma verdadeira mina de ouro em questões linguísticas. Único em seu tipo, ele nos informa de todas as deformações linguísticas das várias línguas turcas na época do apogeu seljúcida. No entanto, Mehmet não aparece nele.

Portanto, não é entre os turcos que se deve procurar a origem do ‘’Maomé’’ e suas variantes, uma vez que os oguzes ainda ocupavam o Mar de Aral, e o avô de Osman I, fundador do Império Otomano, nem sequer tinha nascido, e Maomé variantes já era usado no Ocidente para se referir ao Profeta.

Mahomet, Mahumet, Mahometus ... a origem de tudo é latina

A origem do nome ‘’Maomé’’ é na verdade o resultado de uma latinização, e não tradução, do termo árabe ‘’Muhammad’’, fenômeno comum a qualquer idioma. É simplesmente a forma como outras línguas de influência latina receberam o nome do Profeta pela primeira vez. No século XII, quando o teólogo católico Roberto de Ketton fez a primeira tradução do Alcorão para o latim, o Lex Mahumet pseudoprophete ou ‘’Lei de Muhammad o pseudoprofeta’’, ele transcreveu o nome do Profeta do árabe para o latim como Mahumet, por ser a forma como o nome lhe soava ao ouvido. Era algo bem comum na Europa medieval. ‘’Amir ul Mu’minim’’, o título de califa, virava o ‘’miramamolin’’, Abu Abdullah virava ‘’Boabdil’’ e Imad al-Dawla virava ‘’ Mitadolus’’. Você até hoje faz isso quando chama o sandwich do inglês de sanduíche, ou o as- sukar que veio do árabe de açúcar. Não é nada mal intencionado ou uma conspiração religiosa. é simplesmente como idiomas funcionam e se desenvolvem; Um detalhe interessante é que Ketton foi ajudado em sua tradução por um muçulmano que também chamava de Mahumet, mas cujo nome era Muhammad. Mas esta não era a única variação do nome do Profeta na época: também encontramos os termos latinos Mahometus, Machometus e mais tarde Mahometes. Todos foram absorvidos pelas línguas da Europa católica e se tornaram populares pós contato com a tradução de Ketton e livros do gênero.

Mas e a tese de Baphomet (Bafomé)?

Para desvendar esta, precisamos voltar às Cruzadas. No século XI, os francos e seus aliados descobriram o Oriente Médio medieval, mas pelas únicas referencias disponíveis em seu idioma para aquela terra serem as bíblicas, eles acreditavam que ainda eram habitadas por moabitas, cananeus, filisteus etc... antigos povos pagãos adoradores de ídolos. Essa era até mesmo a crença do ‘’erudito’’ papa Urbano II que proclamou as cruzadas. Não se havia uma ideia de quem eram os muçulmanos ou qual era sua religião ou no que acreditavam. Na cabeça dos católicos europeus, todos ali ainda adoravam os deuses mencionados no Velho Testamento. E daí memo que Muhammad vai virar o ídolo Baphomet.

Durante o cerco de Antioquia na Primeira Cruzada, o auxiliar de Godofredo de Buillon, Anselmo II de Ostrevent, descreveu a seguinte situação:

“Ao amanhecer, eles invocaram Baphomet em voz alta; e nós oramos silenciosamente ao nosso Deus em nossos corações, então nós atacamos e eles foram expulsos dos muros da cidade ”

Anselmo II de Ostrevent, Godefridi Bullonii epistolae et diplomata, 1098

Mediante este trecho de uma testemunha ocular dos primeiros encontros entre cruzados e muçulmanos, os historiadores deduziram então que os cruzados ao ouvirem o nome do Profeta sendo proclamado dos minaretes das mesquitas de Antioquia pela manhã, sofreram do mesmo mal de ouvido latino de Roberto de Ketton, e ouviram ‘’Muhammad’’ como ‘’Maometh’’, que virou Baphomet, ou Bafomé em nosso idioma português, e, como pensavam ser aquele povo os idolatras mencionados na Bíblia, o ‘’Maometh’’ seria seu ídolo. A tese foi elaborada mais profundamente no Dictionary of gods, goddesses and demons, Le Seuil, 2016.

De fato, um escrito do século XII confirma que, naquela época, na mente ocidental, Baphomet (Bafomé) e Muhammad eram considerados a mesma pessoa, e seria o ídolo adorado pelos muçulmanos. Mas entenda, eles não sabiam que Muhammad era um profeta, e então criaram ‘’Baphomet’’ para chamar ele de demônio, e sim acreditavam que os muçulmanos em si eram como idolatras bíblicos do passado, e ‘’Baphomet’’ que ouviam ser gritado dos minaretes, seu deus, era, portanto, um falso deus, e não um demônio já existente ou uma escolha consciente de nome para insultar. Caso o nome do Profeta fosse José, também chamá-lo-iam de demônio, adaptariam o nome, e diriam que os muçulmanos ‘’adoravam o demônio José’’. A adaptação do nome era inevitável, e não foi criada porque queriam demonizar, e sim apesar disso.

No poema em língua occitana intitulado Senhors, per los nostres peccatz, escrito pelo trovador occitano  Gavaudan, Baphomet é o ídolo dos muçulmanos, portanto, um demônio.

Este poema não é o único a descrever os muçulmanos como seguidores ou adoradores de Baphomet. Austorc d'Orlac, um trovador do século XIII de Velay, escreveu um poema lamentando a morte de Luís IX durante sua expedição contra o reino hafsida em Túnis. E nele também descreve os muçulmanos como adoradores de Baphomet (Bafomé).

Como tal, Henri-Pascal de Rochegude escreveu em 1819 em seu “Essai d'un glossaire occitanien, pour servir à l’intelligence des poésies des trovadores” que Baphomet era Mahomet (adaptação francesa de Muhammad), ou o nome dado pelos francos na idade média ao Profeta do Islã. Ele também indica que o termo Bafomairia era usado, entre outros, para designar as mesquitas ou o país dos muçulmanos.

É interessante notar que a referência a Baphomet aparece novamente na Europa após as acusações contra os templários, já no fim das Cruzadas. A poderosa ordem, que controlava uma parte importante da economia dos cruzados, foi acusada pelo papado e pelo rei da França de se envolver em heresias, incluindo a adoração a Baphomet, ou seja, se converter ao Islã. Segundo o historiador François Raynouard, Baphomet era uma latinização de Muhammad, que não era considerado o ‘’profeta’’, e sim o ‘’deus’’ muçulmano, tal qual Jesus é para os católicos. Basicamente uma projeção teológica. Ele também observa que a Inquisição tendia a acusar os Cavaleiros Templários de serem próximos demais dos sarracenos, que eram, como vimos acima, considerados adoradores de Baphomet (Muhammad). Mais detalhes estão disponíveis em "Revue des deux mondes: recueil de la politique, de l’administration et des moeurs", publicado em 1837.

Durante os séculos XII e XIII, os círculos acadêmicos europeus começaram a se interessar pelo conhecimento cientifico dos muçulmanos e seus livros árabes, e foi finalmente ai que o termo Mahumet e Baphomet, que são ambas latinizações de Muhammad, perduraram gerando então o nosso ‘’Maomé’’ e todas as outras variantes.

Mas pesar de Portugal e Espanha já viver em contato com os muçulmanos por séculos antes da Primeira Cruzada ou dos movimentos de tradução para o latim no século XII, estes idiomas ainda não possuíam antes disso um patronato literário robusto, e portanto começaram a escrever mais profusamente sobre o Profeta quando as adaptações francófilas do latim haviam se tornado mais populares.

Mas o Profeta não foi o único muçulmano latinizado, e muçulmano também amavam deixar nome mais fáceis para suas línguas

O Profeta do Islã não é o único personagem da civilização islâmica a ter seu nome latinizado no Ocidente. Tomemos por exemplo o grande matemático al-Khawârizmî (m.  750) a quem devemos álgebra (do árabe al-jabr). Ele é conhecido no Ocidente medieval como Algoritmi. O eminente médico Ibn Sina (m. 1037) é Avicena. Quanto ao pai da cirurgia moderna, o grande cientista andaluz Abu al-Qâsim al-Zahrâwî (falecido em 1013), é conhecido como Abulcasis.

Embora possa parecer um insulto intencional, essas adaptações do árabe não são, estritamente falando, intencionais. Devem-se principalmente à transliteração de caracteres árabes para o latim. De fato, ao longo do século XII, um movimento sem precedentes de tradução do conhecimento árabe foi implementado na Espanha e no sul da Itália (incluindo a Sicília). Em centros de tradução, que muitas vezes incluíam o trabalho de um cristão, um judeu e um muçulmano num memo livro, as obras de cientistas do mundo muçulmano foram traduzidas do árabe para o latim. Esse exercício sem precedentes é característico do que os historiadores chamam de ‘’Renascimento do século XII’’. Foi a primeira vez na história que a linguagem do Alcorão foi transcrita para caracteres latinos. Foi também nessa época que Roberto de Ketton traduziu o Alcorão.

O caráter inédito desta obra, as letras árabes não tendo equivalente em caracteres latinos, mas também a subjetividade dos tradutores, são muitos fatores que explicam essas deformações de nomes.

Mais como tais, essas deformações são recíprocas. Muitos toponímicos e caracteres ocidentais viram seus nomes distorcidos depois de transcritos do latim para o árabe ou do latim para o turco (os turcos haviam adotado o alfabeto árabe). E pelas mesmas razões dos ocidentais mais tarde. Se analisarmos a vida do Profeta do Islã, o imperador romano Heráclio, que reinou de 610 a 641, é chamado pelos muçulmanos da época de Hiraql. Sua capital, Constantinopla, é chamada de al-Qunstantiniyya. Mais tarde, quando os omíadas cruzaram os Pirineus, eles alcançaram Ghaliyush (Gália), onde conquistaram Tulusha (Toulouse), bem como Qarqashûna (Carcassone), enfrentando al-ifrandj (os francos). Isso também foi verdade para os turcos que, quando assumiram o controle da Anatólia no século XI, renomearam Icônio para Konya ou Ankura para Ancara. Mais tarde, Petrum foi renomeado Bodrum enquanto Trepezous se tornou Trabzon.

Explicada a história, o que eu acho disso tudo?

Em minha opinião, esta herança das latinizações medievais estão aí há séculos demais para que mudem da noite para o dia, ou com muçulmanos franzindo o senho acompanhado de correções impertinentes dizendo que elas são intencionais como forma de insulto. Isso não é razoável. Embora reconheça que com a evolução das ciências linguísticas seja muito mais fácil para nós brasileiros falarmos um ‘’Muhammad’’ ao invés de ‘’Maomé’’ hoje, não precisamos inventar que as pessoas estão reproduzindo um insulto intencional quando falam este nome.

Ele em si não foi ‘’criado’’ como um insulto, e sim foi primeiro uma adaptação cultural totalmente natural que existia até quando não havia intenção de demonização, mas que passou a ser utilizada para um fim teológico contrario ao nosso. E tenham certeza, se Roberto ou os cruzados conseguissem falar ‘’Muhammad’’ perfeitamente em árabe clássico, este seria o nome do demônio, pois a crença precede o nome, e não o contrário. Baphomet como ouviam ‘’Muhammad’’ era o ídolo islâmico, e ainda que tivesse outro nome, seria latinizado e demonizado igualmente.

Outro ponto é que nós muçulmanos, principalmente aqui no Brasil, vivemos usando aportuguesamentos latinizados para nos referir a figuras que em nossa religião possuem outros nomes, mas sequer polemizamos isso. Eu não vejo histeria coletiva alguma por parte de muçulmano quando Issa é chamado de ‘’Jesus’’, Mussa de Moisés ou Ibrahim de Abraão. Todos entendem que ‘’é assim que as pessoas chamam aqui, podemos ensinar o mais correto depois, mas não precisa polemizar. É o referencial de nome que possuem.’’

Dito isto, concluo este breve texto dizendo que, o nome do meu profeta é Muhammad, ‘’o louvado’’, cuja pronuncia do nome per si traz paz ao coração. É um nome divinamente inspirado, e que deve ser repetido, se possível com um belo ‘’que a paz e as bençãos de Allah estejam sobre ele.’’ Maomé é uma adaptação comum, com um passado ligado a encontros, por vezes nefastos, entre cristãos e muçulmanos, e que deve aos poucos ser substituída, com a mesma paciência e relevância damos as pessoas que chamam Issa de ‘’Jesus’’, sem precisar inventar lendas urbanas.

O próprio Profeta era muito sábio a este respeito, e até mesmo quando queriam realmente zombar de seu nome, ele agia assim: Certa vez os politeístas de Meca queriam zombar do nome do Profeta, e colocaram-lhe o apelido de ‘’Mudhammam’’ ou ‘’o Venenoso’’. Ao saber disso, o profeta respondeu: , "Não é surpreendente como Allah me protege dos abusos e maldições dos coraixitas? Eles abusam de um tal de Mudhammam e amaldiçoam o Mudhammam, enquanto eu sou Muhammad (e não Mudhammam).  Sahih al-Bukhari 3533.

Com tanto conteúdo ruim associado a figura de um tal de ‘’Maomé’’ para difamar o Islã ai pela internet, creio que esta seja mais uma proteção de Allah ao sagrado nome de Muhammad.

Referencias

  • Translation of the Quran by Peter the Venerable and writings against the religion of the Mohammedans, available ici
  • Center National de la Ressource Textuelles et Lexicales, accessed April 2020
  • Dictionary of Middle French 1330-1500, accessed April 2020
  • The Anglo-Norman On-line Hub, accessed April 2020
  • Choice of the original poems of the troubadours. Biography of the troubadours and appendix to their poems printed in the previous volumes, François Raynouard, 1816
  • Dictionary of gods, goddesses and demons, Le Seuil, 2016
  • Essai d’un glossaire occitanien, pour servir à l’intelligence des poésies des troubadours“, Henry Pascal de Rochegude, 1819
  • Revue des deux mondes : recueil de la politique, de l’administration et des moeurs”, Paris, April 1837.