Como bem observa o historiador Philip Jenkins em seu recomendadíssimo livro “Guerras Santas’’, o fator fundamental que selou o fatídico destino do Império Bizantino seja no Oriente Médio, no Egito ou Norte da África, foram as facções religiosas que surgiam após meia dúzia de concílios doutrinários, através dos quais você poderia dormir ortodoxo e acordar herege com a mesma facilidade com a qual seus ancestrais se tornaram cristãos nos séculos anteriores. Este clima de instabilidade politica, perseguição religiosa e tentativa a cada nova geração de bispos e patriarcas de unificar a consciência cristã de uma vasta gama de igrejas utilizando-se da força do aparato estatal em toda nova interpretação da natureza de Cristo, criou uma insatisfação geral com o governo de Constantinopla, visto ele mesmo como herege por muitas denominações cristãs locais que, até dois concílios atrás eram ‘’ortodoxas’’, mas agora, anátemas.

A solução de sobrevivência encontrada por muitas comunidades cristãs levantinas, egípcias, mesopotâmicas e africanas no conturbado século VII que viu o inicio da Guerra Árabe-Bizantina começando em 629, foi aliar-se com o nascente poder pragmático dos muçulmanos sob o Califado Rashidun. Pois, ainda que fosse de interesse muçulmano conquistar terras bizantinas após os ghassandias matarem o embaixador do próprio Profeta, não era de seu interesse unificar a consciência da população mundial ou extinguir as demais religiões. Allah já falava a Muhammad dizendo: "Porém, se teu Senhor tivesse querido, aqueles que estão na terra teriam acreditado unanimemente. Poderias tu compelir os humanos a que fossem fiéis?'' (Alcorão 10:99) e "Dize-lhes: A verdade emana do vosso Senhor; assim, pois, que creia quem desejar, e descreia quem quiser.'' (Alcorão 18:29).

O Islã não se via como dependente da falência das demais religiões ou de evasão de fronteiras físicas para seu sucesso espiritual. Basicamente você concordava que tinha que pagar uma taxa anual, bem menor que aos bizantinos, ao califa em Medina, e poderia acreditar que Jesus era o que você quisesse, ter seus assuntos julgados pelo patriarca de sua preferencia, e ainda evitar conscrição militar. Na mentalidade da época, era como se mudar do Brasil para a Suíça no que realmente importava para o homem do século VII: religião.

Algumas alianças com patriarcas cristãos depostos pelos bizantinos foram bem explicitas, como a de Amr Ibn al-As com o copta Benjamim I, ou a de Sofrônio que foi receber o califa Omar Ibn Khattab em pessoa durante sua entrada em Jerusalém, porém outras, pelo próprio nível de paranoia bizantina com patriarcas chamando por califas, foram menos factuais, porém não menos acusatórias.

Quando Martinho I foi eleito papa em Roma, que hoje é canonizado e celebrado tanto na Igreja Católica Romana quanto na Igreja Ortodoxa, Constantinopla ainda era o centro do mundo cristão, e se impunha com mãos de ferro sobre as demais sés, Roma inclusa. Martinho se consagrou sem esperar pela ratificação imperial da eleição, e um de seus primeiros atos oficiais foi convocar o Concílio de Latrão de 649 para lidar com os monotelitas da escola de Eutiques, que a Igreja romana considerava heréticos, declarando os aderentes do credo como anátemas. Nada demais - ‘’nossa, que surpresa, um papa chamou alguém de herege, tô chocado! - se não fosse o fato desta escola teológica específica, o monotelismo, ser a qual não só aderia, como patrocinava, o imperador bizantino da época, Constante II (em termos atuais, seria um ministro tentar criar um separatismo estadual antirrepublicano).

O papa Martinho foi muito enérgico ao publicar os decretos do Concílio de Latrão em uma encíclica, e Constante respondeu ordenando a seu exarca na Itália que prendesse o papa caso ele persistisse e o enviasse como prisioneiro á Constantinopla, e não somente, como também acusou Martinho I de ter enviado, como tantos outros patriarcas cristãos da época, cartas de apelo aos califas rashiduns em busca de proteção religiosa anti-bizantina, algo que para o católico moderno pode parecer loucura, mas que na época era bastante plausível, tanto que o bispo de Roma acabou sendo preso e morrendo no exílio não só por pregar contra o monotelismo, como também por supostamente convidar a entrada islâmica na Itália. Obviamente não é conhecida, até dado momento, nenhuma carta expressa em árabe ou latim que Martinho tenha enviado à Uthman Ibn Affan além da acusação do imperador Constante, porém, um édito imperial pedindo a prisão de um papa católico da época é uma prova de que não seria nenhum absurdo histórico se realmente houvesse, nos levando a reanalisar e raciocinar sobre o que há de real na história das relações islamo-cristãs para além da narrativa de choque de civilizações.

Bibliografia:

-Emmanouela Grypeou; Mark (Mark N.) Swanson; David Richard Thomas (2006). The Encounter of Eastern Christianity With Early Islam. BRILL. p. 79

-Walter E. Kaegi (4 Nov 2010). Muslim Expansion and Byzantine Collapse in North Africa. Cambridge University Press. p. 89.

- Jenkins, Philip (2013) "Guerras Santas: Como 4 patriarcas, 3 rainhas e 2 imperadores decidiram em os cristãos acreditarian pelos próximos 1.500 anos"

-Brian A. Catlos, Kingdoms of Faith: A New History of Islamic Spain