A presença islâmica na Península Ibérica foi algo marcante, sendo seu legado visível até os dias de hoje. Entretanto, pouco mais de um século depois do início da conquista islâmica, ocorreu um episódio que ficou conhecido na história como “Mártires de Córdoba”.

Quando se fala dos Mártires de Córdoba, refere-se aos quase 50 cristãos que foram mortos pelas autoridades muçulmanas o califado omíada, que segundo relato da época era pelos motivos mais variados, mas em geral era relacionado ao fato de serem simplesmente cristãos ou apostatarem da fé islâmica para o cristianismo.

Muitos historiadores reconhecem a convivência em geral pacífica das três fés abraâmicas1 durante os governos islâmicos de al-Andalus2. Não somente, mas Córdoba foi um centro cultural e intelectual durante um período considerável na Europa, sendo que cristãos, judeus e muçulmanos trabalharam juntos em diversos momentos para o avanço cultural e intelectual. Entretanto, um episódio muito famoso que acaba indo de encontro ao apresentado acima foi a execução de quase 50 cristãos.

Os martírios teriam ocorrido entre 851-859, conforme relatado pela única fonte contemporânea: Eulógio de Córdoba, posteriormente canonizado. Segundo alguns especialistas, como é o caso de Wheatcroft (2003), a população islâmica de al-Andalus crescia exponencialmente durante os primeiros dois séculos da conquista muçulmana. Até então uma pequena comunidade isolada, constituída muitas vezes de imigrantes, casamentos inter-religiosos com a população local passaram a ocorrer, aumentando assim a taxa de nascimento de novos muçulmanos. Porém, a parte mais significativa do crescimento da religião islâmica na região não devido aos imigrantes do Norte da África ou os filhos que tiveram com os nativos ibéricos, mas sim os convertidos cristãos ao Islã.

Ainda conforme Wheatcroft, haviam conversões tanto de indivíduos isolados como de famílias inteiras, assim como possivelmente até mesmo de cidades e distritos, não havendo qualquer pressão ou conversões forçadas para que isso ocorresse, até porque havia um imposto pago para que cristãos se mantivessem cristãos (jizya), gerando um influxo de caixa para o estado, que não veria com interesse a conversão de tais individuos.

Apesar da permissibilidade de Cristãos e Judeus praticarem suas fés, os mesmos ainda sofriam algumas limitações, que por vezes também eram relativizadas pelos governantes muçulmanos. Naturalmente que muitos cristãos e judeus acabaram atingindo altos postos na sociedade ibero-islâmica do período medieval, mas alguns benefícios só poderiam ser obtidos através da conversão ao Islã, passando assim a integrar um corpo distinto, que por sua vez era o corpo que dominava as instituições governamentais à época.

As conversões no período medieval e no mundo antigo eram variáveis, muitas vezes massas imensas se convertiam para algum credo pelo fato de um rei ou imperador ter aderido àquela fé. Entretanto, apesar disso, muitos adeptos mais zelosos das religiões antigas de determinadas localidades recusaram-se a converter para a nova fé, gerando muitas vezes movimentos de oposição tanto aos apóstatas quando à nova religião. No caso dos Mártires de Córdoba foi, em geral, algo nesse sentido: um movimento de cristãos mais zelosos que acabaria por gerar aquilo que críticos literários chamam de topos, um incidente histórico que iria se expandir em proporções para assumir um caráter lendário e mítico.

Nesse sentido, o caso dos Mártires de Córdoba naturalmente servia para gerar oposição aos governantes da fé alienígena que ali se estabeleceram, tentando demonstrar uma oposição natural entre as fés e culturas distintas que ali dividiam espaço. Assim, com o passar do tempo, tais histórias dos martírios foram transmutando para um aspecto subliminar de um poder estrangeiro que era perigoso e amedrontador, imagem essa construída sobre bases de profecias bíblicas, dando um caráter de “Anticristo” para os governantes islâmicos. Esse tipo de atitude se demonstrou um ardil utilizado por sociedades em decadência, sendo um fenômeno histórico que se repetiu (e ainda se repete) várias vezes na história.

Nos dizeres de Fletcher (2015), ao analisar se tal ameaça islâmica era de fato real ou não, observa que Eulógio traz uma certa luz para melhor entendermos como eram as relações sociais entre cristãos e muçulmanos na Ibéria islâmica medieval. Assim, o autor cordobense demonstra relações fluidas e aparentemente tranquilas, com um número surpreendente de casamentos mistos. Indo mais além, é descrito casos de cristãos que se convertiam ao Islã e posteriormente apostatavam da fé islâmica ou outros casos semelhantes envolvendo fés distintas na mesma família ou também apostasia. Naturalmente que Eulógio cita tais casos simplesmente porquê terminaram em desastre, ainda segundo a observação de Fletcher, sendo presumido pelo autor que o número de casos análogos em que nenhuma punição ocorreu tenha sido expressivo.

Entretanto, o problema da maioria dos chamados Mártires de Córdoba vai de encontro à concepção de martírio da teologia cristã tradicional, uma vez que os mesmos não morriam pela fé de maneira espontânea, mas sim provocada e intencional. Por conta disso, vemos nesses ocorridos fiéis cristãos que faziam questão de insultar o Profeta Muhammad ou a religião Islâmica para que pudessem ser presos ou punidos de alguma outra forma, como com a morte, encontrando assim o “martírio”.

Tal movimento não era nem genuíno, nem novo. O mesmo já havia ocorrido em Roma quando os cristãos ainda eram uma minoria religiosa (ROPS, 1988), sendo denunciado pelas autoridades eclesiásticas da época, uma vez que os “pseudo-mártires” costumavam provocar as autoridades romanas, denunciado a si mesmos. Os problemas na Roma antiga não só eram relacionados à falta de espontaneidade dos martírios, contrariando a doutrina cristã, como também pelo fato de muitos desistirem do martírio na hora que confrontavam os juízes romanos, apostatando assim da fé3.

O que foi descrito acima também ocorreu de maneira semelhante na Espanha islâmica no caso dos Mártires cordobenses, já que faziam questão em sua maioria em insultar a religião islâmica e o Profeta, sabendo que tal atitude não poderia ficar impune por muito tempo. Dessa maneira, um martírio suscitava outro, até o ponto que chegou a ser condenado pelo bispo Recaredo de Sevilha. Entretanto, foi devido à condenação do bispo mencionado que fez surgir a obra de Eulógio, que não só tinha um caráter descritivo dos martírios como também apologético.

Para Fletcher, tais descrições “recheadas” são motivos de suspeita para a historiografia. Já para Wheatcroft, independentemente do relatado ter sido real ou não, o mesmo teve um caráter propagandístico, sendo aplicado de maneira genérica posteriormente. Assim, os atos simbólicos de caráter lendário e mitológico dos mártires de Córdoba geraria efeitos muito depois das datas atribuídas ao ocorrido, sendo por vezes citadas hoje em dia para sustentar uma narrativa de perseguição islâmica contra os Cristãos ou o Cristianismo em uma tentativa de demonizar tanto o Islã quanto o fiel muçulmano, transformando-os em constante ameaça para a segurança e a vida dos não-muçulmanos.

Vale lembrar que não foi somente o bispo Recaredo de Sevilha que condenou a atitude dos “mártires” cordobenses, mas foram denunciados como hereges em 854 ao qadi (juiz muçulmano) por um grupo de lideranças cristãs, envolvendo bispos, abades, sacerdotes e até mesmo nobres cristãos, isso tudo na tentativa de evitar eventuais opressões que a comunidade cristã em geral poderia vir a sofrer por conta de tais “arruaceiros”. Mas um fato interessante que também se assemelha um pouco com o ocorrido em Roma com os pseudo-mártires, é que os qadis também tentariam persuadir os ditos mártires a não tomar tais atitudes. Vemos essa sanha pelo martírio cerca de 60 anos depois dos ocorridos em Córdoba em um relato de al-Kushani, quando um homem chegou até o qadi muçulmano e implorou pelo martírio em 920.

A morte é o que queriam. Com a cultura cristã ibérica em vertiginoso declino, criar cizânia entre cristãos a serem convertidos religiosa ou culturalmente e muçulmanos era a forma mais eficaz de para-lo. Se os emires islâmicos comessassem a matar cristãos ou “martiriza-los”, os cristãos vivendo em seus dominios clamariam por “libertação”, e não se integrariam àquela cultura a qual já os estava fazendo desaparecer. Os mártires eram condenados até mesmo pelas autoridades cristãs moçárabes do califado, que os tentava dissuadir. Mas eles sabiam que se o ato fosse feito em público, geralmente em bazares, mesquitas ou ambientes lotados, o governante que se recusasse a executa-los estaria pondo em cheque a propria legitimidade de seu poder como mantenedor da fé. Não se tratava de uma perseguição islâmica, e sim de um joguete político.

Não é necessário ir tão longe, pois durante o período dos martírios em Córdoba o mesmo também ocorreu, como é o caso de Isaac, um monge oriundo de uma família bem-sucedida, que certa feita chegou até o qadi e disse que gostaria de se converter ao Islã. Enquanto o juiz muçulmano instruía Isaac na nova fé, o monge começou a injuriar o Profeta e proferir insultos contra Muhammad, o que acabou resultando em um tapa na cara do cristão. Porém o qadi seria acalmado pelos seus conselheiros, chegando até mesmo a falar que Isaac estaria embriagado, o que foi contestado pelo monge que continuaria a proferir seus impropérios contra o profeta do Islã, literalmente implorando que fosse condenado à morte (WHEATCROFT, 2003). Apesar das tentativas, o qadi se viu obrigado a sentencia-lo à pena capital conforme era exigido, sendo que dois dias depois da execução de Isaac, um homem chamado Sancho tomaria as mesmas atitudes e padeceria do mesmo destino; mais tarde um grupo de seis monges incluindo um tio de Isaac fariam o mesmo, e em seguida outros seguiriam o exemplo, resultando em 11 “mártires” em 2 meses.

Apesar da tática propagandística para tentar evitar o declínio do cristianismo espanhol e impedir novas conversões para uma religião que soava mais atraente para muitos, diversos foram os cristãos assimilados com a cultura árabe-muçulmana não só no sentido de conversão, mas como cristãos vivendo em território cujo domínio não era o mesmo de sua religião, e cujos aspectos culturais e religiosos por vezes os atraíam.

Dessa maneira pode ser observado que a maioria dos cristãos reconheciam o poder do Islã e a cultura trazida com eles, procurando assim se beneficiarem. É notável, por exemplo, a substituição do Latim para a língua Árabe como idioma culto, ou cristãos lendo e apreciando poemas e romances árabes. Entretanto, como em todo local em que há uma maioria, há também uma minoria: alguns cristãos mais “zelosos”, que não deixariam se assimilar pela cultura alienígena árabe-islâmica se tornaram “dissidentes”, “revolucionários” (WHEATCROFT, 2003).

Assim, como revolucionários e dissidentes, restou-lhes criar um mito a respeito de seus inimigos para melhor fundamentar sua resistência, valendo-se de elementos simbólicos e da mais pura propaganda; uma “propaganda pelo ato, que seria o martírio. Dessa maneira, os muçulmanos eram normalmente retratados como bárbaros violentos e adeptos de uma religião degenerada sexualmente. Não somente, mas comparações entre Cristo e Muhammad foram feitas incansavelmente na Espanha islâmica por parte de alguns cristãos, sendo Jesus alguém que havia pregado a paz, enquanto Muhammad uma pessoa degenerada, incestuosa e que ensinava a pegar em armas. Com base no que foi mencionado acima a respeito da assimilação cristã e também a decadência da outrora cultura dominante, Álvaro de Córdoba, um biógrafo de Eulógio dizia que:

Meus companheiros cristãos se deleitam com os poemas e romances dos árabes; eles estudam as obras de teólogos e filósofos maometanos não para refutá-las, mas para adquirir o estilo árabe correto e elegante. Onde hoje pode ser encontrado um leigo que lê os Comentários em Latim sobre as Sagradas Escrituras? Quem estuda os Evangelhos, os profetas, os apóstolos? Infelizmente, os jovens cristãos que se destacam por seus talentos não conhecem nenhuma literatura ou língua a não ser o árabe… Que pena! Cristãos esqueceram sua própria língua, e raramente um em mil pode ser encontrado para ser capaz de compor em bom latim para um amigo (WHEATCROFT, 2003, pp. 93-94).

Como pode ser visto no relato acima, o uso da blasfemia contra uma cultura dominante por uma dominada é uma eficaz arma politica, e utilizada até hoje. Provoca-se uma reação violenta da cultura em acensão para amedrontar possiveis aderentes, visando assim provocar a longevidade cultural da em decadencia ou retardar seu declinio.

NOTAS

[1] Judaísmo, Cristianismo e Islã;

[2] Existem, naturalmente, teses contrárias, enquanto outras tentam explicar os motivos de tal convivência ter ocorrido de maneira mais pacífica que em outros locais da Europa;

[3] Para que um cristão julgado fosse poupado de sua vida, o mesmo deveria negar Cristo e oferecer sacrifício aos ídolos pagãos;

BIBLIOGRAFIA

FLETCHER, Richard. Moorish Spain. Weidenfeld & Nicolson. 2015.

IHNAT, Kati. The Martyrs of Córdoba: Debates around a curious case of medieval martyrdom. History Compass. 2020.

KUNG, Hans. Islam: Past, Present and Future. Oneworld Publications. 2007.

MENOCAL, Maria Rosa. The Ornament of the World: How Muslims, Jews and Christians Created a Culture of Tolerance in Medieval Spain. Back Bay Books. 2003.

ROPS, Daniel. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. São Paulo: Quadrante, 1988.

WHEATCROFT, Andrew. Infidels: A History of the Conflict Between Christendom and Islam. Random House Publishing Group. 2003.