O evento mais controverso e lamentável na campanha otomana pelo controle do Sul da Itália, a Conquista de Otranto, é com toda certeza a questão dos “Mártires de Otranto”, assim chamados os 800 católicos que segundo algumas narrativas morreram em mãos turcas por não aceitarem uma conversão forçada ao Islã.

No verão de 1480, liderados pelo sérvio/albanês Gedik Ahmed Pasha, por volta de 20 mil homens desembarcaram na costa italiana, procurando tomar o porto de Otranto e utiliza-lo como base naval para demais operações na Península italiana.

Esta ação teve inicio com a campanha que buscava conquistar a própria Roma e punir Nápoles pela ajuda prestada aos piratas escravagistas dos Cavaleiros de Rodes, que saqueavam as rotas de comércio e peregrinação no Mediterrâneo oriental.

Mapa de Otranto pelo cartografo otomano Piri Reis (
1470-1554).

Na ocasião da chegada das tropas otomanas, a população local se entrincheirou junto com sua guarnição na cidadela de Otranto, e por 15 dias as forças otomanas amargaram um cerco penoso.

Duas ofertas de rendição pacifica enviadas pelos turcos foram recusadas pelos defensores, a segunda resultando no emissário otomano retornado ao acampamento morto crivado por flechas.

Após as muralhas finalmente cederem ao assedio, as forças otomanas adentraram a cidade, e segundo as narrativas cristãs posteriores: foram de casa em casa, as esvaziando de tudo e ateando fogo, matando 12 mil pessoas nos combates, escravizando cinco mil, e transformando a catedral da cidade em mesquita.

Castelo de Otranto, fortaleza que fora cercada pelo exército otomano.

Porém, segundo as mesmas, 800 dos cativos teriam sido selecionados para “se converter ao Islã ou morrer”, e ao negarem, teriam sido passados pelos turcos ao fio da espada. A cena adentrou no imaginário católico pelos séculos.

Pinturas, sermões e até mesmo uma igreja foi erguida na cidade, cujo o altar possui 800 crânios representando os mártires que os turcos teriam executado por “não negarem Cristo”.

Altar da Catedral de Otranto com os restos mortais dos supostos 800 mártires.

Contudo, esta narrativa, como foi demonstrado por historiadores modernos, possui algumas falhas. Primeiro, a politica oficial do Império Otomano, ainda mais sob Mehmet II, era de relativa tolerância a civis e clero cristão em regiões conquistadas, com conversões forçadas jamais sendo uma prática corriqueira.

A titulo de exemplo, 17 anos antes da campanha de Otranto, em 1463, o sultão havia emitido o Ahdname de Milodraž, proibindo qualquer ataque aos franciscanos bósnios de demais civis cristãos por extensão, logo ali do outro lado do Mar Adriático à 666,6 km de Otranto, sob pena de morte a qualquer um que descumprisse. O decreto do sultão dizia:

“Eu, sultão Mehmed Han comando que : Ninguém deverá perturbar ou prejudicar essas pessoas e suas igrejas. Deixe-os viver em paz no meu império e deixem que essas pessoas, nativos ou imigrantes, vivam em segurança e livremente.

Deixai-os voltar às suas pátrias dentro das fronteiras de meu império e que vivam e estabeleçam seus mosteiros. Nenhum membro da família real, nem meus vizires, nem meus servos, nem os cidadãos deste império irão violar a honra ou ferir essas pessoas.

Ninguém está autorizado a tirar suas vidas, suas propriedades ou igrejas, insultá-los ou prejudicá-los, e mesmo se estas pessoas trouxerem cidadãos de outros países para o meu reino, estas novas pessoas irão gozar dos mesmos direitos.

Juro por Allah, o Criador e Senhor dos céus e da terra, pelo Mensageiro de Deus, nosso Profeta Muhammad (que a paz e as bênçãos de Allah esteja com ele), pelos 124.000 Profetas, e pela espada que estou usando, que nenhum dos meus cidadãos contrariará esta ordem, sendo eles leais a mim e seguidores dos meus mandamentos.

-Mehmet II, o Conquistador, Ahdname de Milodraž
Cópia preservada do Ahdname de Milodraž, emitido por Mehmet II.

Segundo, a venda de cativos pós-cerco era uma atividade infinitamente mais lucrativa para um exército em campanha do que simplesmente matar 800 homens por “não aceitarem o Islã”, visto que estes poderiam remar suas galés, servir como reféns para troca e no próprio exército otomano haviam mercenários cristãos.

As fontes contemporâneas da época falam da execução de soldados e civis que participaram da resistência durante o cerco, porém não citam “conversão forçada” em momento algum como apresentado nos trabalhos de Nancy Bisaha e Francesco Tateo.

As analises sugerem, que, em um número desconhecido, homens podem ter sido executados como uma medida punitiva, desprovida de motivações religiosas, algo exigido para punir a população local pela forte resistência que apresentaram.

Essa resistência atrasou o avanço turco e permitiu ao rei de Nápoles fortalecer as fortificações locais, arruinando toda a campanha otomana, que também teve de ser abandonada 13 meses depois devido a morte do sultão, em Maio de 1481.

A intimidação, um aviso para outras populações não resistirem, também pode ter entrado nos planos dos atacantes, visto que, as duas tentativas de negociar uma rendição pacifica foram rejeitadas pelos defensores cristãos, respondidas com a morte do mensageiro. Essa é inclusive a justificativa apresentada pelas próprias crônicas turcas, como a de Ibn Kemal.

As fontes que falam de execuções de cristãos por rejeição ao Islã e tentativa de conversão forçada, além de muito posteriores, são ricas em “detalhes”, exageradas e divergentes em números, com diálogos entre os mártires, executores, milagres, e tantas outras coisas que as fazem um tanto historicamente improváveis, por serem nada além de uma forte dramatização para propaganda politica da época.

Após decifrar documentos contemporâneos referentes ao caso nos arquivos do Estado em Modena o pesquisador Daniele Palma, que escreveu um livro inteiro sobre o ocorrido, sugere que algumas execuções ocorreram como resultado de uma falha diplomática em arrecadar fundos para cativos.

Os registros referem-se a transferências bancárias e negociações de pagamento para resgate de prisioneiros após o cerco de Otranto, nas quais turcos e a nobreza cristã da circunvizinhança tratavam da soltura de certos notáveis.

Com um resgate típico de 300 ducados, cerca de três anos de ganhos para uma família normal, Palma diz que os prisioneiros executados pelos turcos eram provavelmente agricultores, pastores e outros pobres demais para pagar pelo resgate, e que de modo algum foram mortos por “rejeitar Maomé.”

No fim das contas, a execução de prisioneiros após um longo cerco era uma triste tática de guerra psicológica, ocorrência ocasional nos embates entre cristãos e muçulmanos.

Na mesma década na qual ocorreu a invasão otomana a Otranto na Itália, na outra Península mediterrânea a contínua invasão cristã do Emirado de Granada pelas forças combinadas dos reinos Castela e Aragão, viu cenas macabras nos cercos das cidades de Alhama e Málaga, onde civis muçulmanos não eram somente executados aos montes e vendidos como escravos, como também postos vivos em postes para servir de alvo de dardos em festejos dos exércitos católicos.

Porém, a enfase na cultura do martírio, tipicamente cristã, deu uma “temperada” maior nos eventos de Otranto ao longo dos séculos, criando números e detalhes de conotação religiosa, para fortalecer a moral católica contra um Império Otomano que acabara de tomar Constantinopla e posteriormente anexara em aliança inclusive com reinos cristãos várias porções da Europa Oriental, parecendo imbatível.

Os “mártires”, as mais úteis formas de propaganda politica na Europa fervorosamente religiosa da época, foram canonizados e reconhecidos pela Igreja diversas vezes, mais recentemente pelo papa Francisco em 2013, tornando-se padroeiros da cidade de Otranto.

Bibliografia:

  • Nancy Bisaha (2004). Creating East And West: Renaissance Humanists And the Ottoman Turks. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. p. 158.
  • Ilenia Romana Cassetta, ELETTRA ercolino, “La Prise d’Otrante (1480-81), entre sources chrétiennes et turques”, in Turcica, 34, 2002 pp.255–273, pp.259–260:
  • Brancolini, Janna. “The Italian astrophysicist who solved the mystery of the martyrs of Otranto”, Kheiro Magazine, May 19, 2017
  • Palma, Daniele, El Turcho in Terra d’Otranto. Lo sciame bellico dal 1480 al 1816 
  • Andrić, Ivo (1990). The Development of Spiritual Life in Bosnia under the Influence of Turkish Rule. Duke University Press. p. 42.