Mouros Negros e Mouros Pretos”, texto de Frederico Mendes Paula 

“Em 1535, exagerando nas cores, o humanista flamengo Nicolau Clenardo registava a importância e a concomitância da escravidão moura e negro-africana: Os escravos pululam por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou quase em crer que só em Lisboa há mais escravos e escravas que portugueses de condição.” (MAESTRI, 2006, p. 105)

A afirmação de Clenardo, apesar de exagerada, já que se estima que a população escrava na Lisboa quinhentista seria de cerca de 10% do total de habitantes, retrata bem o peso que escravatura tinha na sociedade portuguesa da época. Iniciada com a escravidão dos antigos mudéjares, tornados mouriscos com a obrigatoriedade de conversão ao cristianismo, alargada com os milhares de mouros cativos escravizados nos campos de Marrocos e na guerra do corso, e finalmente ampliada aos habitantes da Africa subsariana, o negócio da escravatura torna-se uma imagem de marca de Portugal nos primórdios da expansão em Africa.

N.D.E:

“Depois de 1442, o desenvolvimento do comércio de escravos ajudou, também, a financiar os custos das viagens portuguesas ao longo da costa ocidental africana. Os escravos provinham, originariamente, dos ataques aos acampamentos tuaregues do litoral sariano, e, posteriormente, às aldeias negras da região senegalesa. Estes ataques, dirigidos muitas vezes contra grupos de famílias desarmadas ou contra aldeias indefesas, eram descritos pelos cronistas da corte, como Gomes Eanes de Zuarara, como feitos de heroicidade cavaleirescas, comparáveis aos realizados nos campos de batalha europeus – e, de facto, eram assim considerados pela grande maioria dos contemporâneos. “
-BOXER, Charles. O Império Marítimo Português: 1415 – 1825. Edições 70, 2002.

Mouros ou Mouros Cativos, assim se chamavam os escravos, e daí a expressão trabalhar como um Mouro. Eram Mouros Negros ou Mouros Pretos, conforme fossem originários do Norte de Africa ou da Africa Subsariana.

Pós a conquista cristã do Al-Andalus os Muçulmanos passam a ser denominados Mudéjares, termo proveniente do Árabe Mudajjan, que significa Domesticados. Conservam a sua religião, mas progressivamente adoptam os hábitos e a língua dos cristãos. Nas cidades perdem o direito a viver nos núcleos muralhados, sendo transferidos para os arrabaldes, para bairros que tomam o nome de Mourarias.

São tratados como cidadãos de segunda já que os cristãos não lhes reconhecem direitos de plena cidadania. Entre outras restrições, refira-se que não lhes era permitida a saída das Mourarias após o pôr-do-sol, não podiam frequentar casas de putaria ou tabernas e, caso se ausentassem do país sem licença real, viam todos os seus bens confiscados. Eram obrigados a diferenciar-se dos cristãos através das roupagens, como por exemplo, “no toucado teriam uma marca branca, as aljubas seriam com dois palmos de largura, nos albornozes haveriam quartos diantes (…) capas, balandraus, capuzes e escapulários assinalados com o sinal do Crescente, em vermelho, cozido no ombro. O cabelo deveria ser rapado à navalha.” (ALVES, 2007, p. 125)

No entanto, a sua organização, especialização profissional e produtividade garantiram-lhes certos direitos, chegando a ser referidos pelo Rei como “os meus mouros” (ALVES, 2007, p. 120), e, através de providência real, não eram obrigados à conversão ao Cristianismo, não podiam ser maltratados, nem as suas sepulturas violadas.

Volta do mercado saloio . Pintura de Alfredo Roque Gameiro

Apesar desse facto, muitos mouros abandonam as cidades e instalam-se no campo, onde a situação era bastante mais favorável, como é exemplo a dos chamados saloios da região de Lisboa. A origem do termo saloio não reúne consenso, sendo a explicação mais plausível a que defende que deriva da palavra صلاة salat ou oração, já que designava aqueles que rezavam 5 vezes por dia fazendo o çala, e que eram chamados na época çaloyos; esta seria também a origem de çalayo, nome do imposto pago sobre o pão na região de Lisboa; outra explicação é a origem do termo na palavra ساحلي saheli, que significa habitante do litoral; outra ainda é a origem em سلاوي salaui ou habitante da cidade marroquina de Salé, designação local para a população rural.

As classes mais abastadas preferem a fuga para o Norte de Africa, onde podem refazer as suas vidas de forma digna, fugindo também aos pesados impostos que sobre os mouros são decretados, o que correspondeu a uma sangria intelectual na sociedade.

“As classes mais elevadas dos muçulmanos, sobretudo intelectuais, homens de ciências e poetas, terão sido os mais propensos a partir para paragens onde a bandeira do Crescente ainda flutuasse e onde as suas qualificações fossem melhor apreciadas. Quem ficou foram sobretudo os de condição mais humilde: camponeses, agricultores, artesãos, pescadores e pequenos mercadores, que se foram deixando ficar por apego à terra.” (ALVES, 2007, p. 122)

Numa primeira fase, muitos partem para Espanha, tendo para tal pedido à Coroa Espanhola para se estabelecerem nesse país. O pedido era formulado através das aljamas de mouros, fossem mourarias ou comunidades rurais. A migração dos mudéjares para Espanha explica-se porque naquele país as comunidades muçulmanas eram muito mais numerosas do que em Portugal e muito melhor integradas na sociedade cristã. Para além disso, a presença do Reino de Granada constituía uma tábua de salvação, senão real, pelo menos psicológica.

Em 1478 os Reis Católicos instituem o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Espanha, iniciando a chamada limpeza de sangue contra os descendentes de judeus e muçulmanos.

Expulsão dos Mouriscos no Porto de Denia . Óleo de Vincente Mestre, 1613

“Em dezembro de 1496, na esteira dos reis católicos, Dom Manuel estabeleceu o dia 31 de Outubro de 1497 como limite último e fatídico de partida para todos os judeus e mouros livres e libertos que não aceitassem se converter ao cristianismo. Em singular tortuosidade de intenções, ao mesmo tempo, impediu a judeus e mouros de abandonarem o reino por mar, enquanto não o podiam fazer por terra, já que para tal deviam embocar o caminho do inferno, ou seja, atravessar a Espanha, onde seriam irremediavelmente presos e escravizados. Sem saída, as conversões de ocasião deram-se às dezenas de milhares. A partir de então, o uso da língua, da roupa, da alimentação, os hábitos, os nomes, etc. judaicos e mouros foram reprimidos e tendencialmente abandonados. Desde então, sob a direção do Estado, empreendeu-se verdadeira caça e destruição sistemática dos vestígios materiais da cultura judaica e islâmica lusitanas.” (MAESTRI, 2006, p. 103)

Com a publicação do decreto da obrigatoriedade de conversão em 1497 e posteriormente com a instituição da Inquisição em 1536, os mudéjares, agora na condição de cristãos-novos, passam a designar-se mouriscos, cristãos mouriscos ou cristãos-novos de mouros.

Essa conversão realiza-se com grande reserva mental como refere Adalberto Alves, já que não se processa por fé ou opção própria, mas por imposição. A conversão forçada, por outro lado, não é acompanhada por quaisquer medidas de integração religiosa e social, como mostra o facto de “os mouriscos, caídos nas malhas da Inquisição, revelaram, (…) na sua quase totalidade, ignorar os preceitos e práticas mais elementares da doutrina cristã”. (ALVES, 2007, p. 142)

A conversão das mouriscas . Retábulo da Capela Real de Granada, de Felipe Vigarny

A conversão forçada é acompanhada da proibição de muitas das suas práticas sociais susceptíveis de constituírem indícios de cripto-islamismo, como por exemplo tomar banho frequentemente ou não comer porco. Com a proibição da própria língua Árabe e do uso dos trajes tradicionais, são negadas aos mouriscos todas as réstias de ligação ao seu passado identitário.

A conversão forçada ao cristianismo cria assim uma população híbrida, que é obrigada a abdicar da sua identidade, sem referências ou perspectivas de futuro, que se refugia em subterfúgios para teimosamente guardar fragmentos das suas origens, como iludir as denuncias à Inquisição colocando alheiras de aves nos fumeiros, utilizar a escrita aljamiada, escrevendo o português com caracteres árabes, e adoptando expressões encapotadas, como olá e olé (Wa Allah, Deus) ou olarila e olarilolé (La ilaha ila Allah, Não há divindade senão Deus). 

Traje de casa das mulheres e meninas mouriscas de Granada . Desenho de Christoph Weiditz, 1529

A conversão forçada e a divisão dos crentes em cristãos-velhos e cristãos-novos cria na sociedade da época um clima de perseguição constante às minorias, exacerbando o racismo e o anti-semitismo, encorajando as denúncias e as arbitrariedades “dividiu a população em multidões de sectários cristãos-velhos, eventuais denunciantes dos cristão-novos de judeus e de muçulmanos, que mergulharam na dissimulação permanente de actos, intenções e sentimentos.” (MAESTRI, 2006, p. 104)

Os cristãos-novos passam a ser chamados negros, em oposição aos cristãos-velhos, chamados brancos.

Os mouriscos que ficaram em Portugal viviam em condições de extrema pobreza e exclusão social, sendo frequentemente insultados e agredidos, principalmente nos meios urbanos, onde se refugiavam no seio de grupos marginais, nos quais, de forma clandestina, mantinham viva a sua identidade cultural. Alguns aderiam ao chamado bandoleirismo mourisco, alimentando a ilusão do regresso ao passado ou simplesmente procurando vingança no seu desespero.

Vista da frente de rio de Azamor

A estes mouriscos vieram juntar-se muitos outros mouros, populações escravizadas originárias de Marrocos, raptadas nas áreas rurais envolventes às Praças-fortes, com grande incidência na zona da Duquela, e sobretudo a partir da Praça de Azamor, que se torna no primeiro grande mercado de escravos de Portugal (RIBAS, 2006, p. 3), funcionando ao mesmo tempo como entreposto que alimentava os vários mercados de escravos que se iam criando na Península. Estes cativos constituirão o grosso dos mouros e mouriscos em Portugal.

Para além destes cativos raptados nas suas terras, refiram-se também os mouros cativos das guerras travadas nas Praças de Marrocos e da chamada guerra do corso, aprisionados nas povoações costeiras que os corsários portugueses pilhavam ou nos navios por eles abordados.

A comunidade mourisca portuguesa era assim maioritariamente constituída por indivíduos vindos de fora de Portugal, e não de mudéjares portugueses convertidos, já que a sua maioria se tinham fixado em Espanha. Como afirma Rogério Ribas, os mouriscos de Espanha “eram descendentes dos antigos mudéjares dos vários reinos hispânicos, acrescentados, no final do século XV, pelos muçulmanos de Granada e pelos contingentes de mudéjares lusitanos a que fizemos menção. No caso português, os mouriscos eram estrangeiros de várias procedências, sobretudo da região magrebina, que vinham ingressando em Portugal, na condição de escravos, em meio à expansão marítima.” (RIBAS, 2006, pág. 2)

As muralhas portuguesas de Azamor

“De tal modo dominou a escravização do islamita que a palavra “mouro” tornou-se designação dominante do trabalhador escravizado, tendo sido a palavra “escravo”, de uso erudito, introduzida tardiamente. A partir de 1444, negro-africanos capturados na costa norte-ocidental da África começaram a ser desembarcados em Portugal para trabalharem nas cidades e nos campos ou serem reexportados para a Espanha e, a seguir, para as Américas. Inicialmente, os “mouros pretos” labutaram duramente ao lado dos mouros tout court.” (RIBAS, 2006, p. 2)

Mouros ou Mouros Cativos, assim se chamavam os escravos, e daí a expressão trabalhar como um Mouro. Eram Mouros Negros ou Mouros Pretos, conforme fossem originários do Norte de Africa ou da Africa Subsariana. Daí também o verbo mourejar ou moirejar, que significa trabalhar sem descanso.

Estes Mouros Cativos podiam ser alforriados pelos seus donos, ou seja, libertados mediante determinado pagamento ou por testamento, tornando-se Mouros Forros. Os Mouros Forros eram no fundo a grande maioria dos mouriscos em Portugal, já que a sua alforriação implicava a sua conversão. Apesar de poderem ser remunerados pela sua actividade, os Mouros Forros não faziam um trabalho muito diferente dos Mouros Cativos e não viviam muito melhor do que estes.

Mouriscos do reino de Granada, dando um passeio pelo campo com mulheres e crianças . Desenho de Christoph Weiditz, 1529

Os mouriscos trabalhavam na sua esmagadora maioria por conta de outrem, desempenhando os trabalhos menos qualificados e pior remunerados de toda a sociedade, estando inclusivamente muitos deles votados à mendicidade. Concentravam-se sobretudo nas cidades de Lisboa, Setúbal e Évora e na região do Algarve.

Os homens trabalhavam como almocreves (condutores de animais de carga), mariolas (moços de fretes), estribeiros, vendedores de palha, serviçais ou criados, enquanto as mulheres eram sobretudo lavadeiras, criadas de serviço doméstico, amas de crianças, cozinheiras, compradeiras, regateiras, vendendo peixe, pão, água e leite nas ruas, ou trabalhavam nos portos “escamando e salgando linguados e cavalas ou arrumando sardinhas”(RIBAS, 2006, p. 6)

Alguns homens com instrução conseguiam ser empregados como professores e no caso das mulheres a profissão de dançarina era geralmente bem paga e muito apreciada, como é patente neste poema recolhido por Garcia de Resende:

“Doçe baylo da Mourisca
mil sentidos faz perder,
ela mete huma tal trisca
que é muy má de guarecer”

(RESENDE, 1516, obra citada)

Mulher mourisca fiando e mulher mourisca varrendo a casa . Desenhos de Christoph Weiditz, 1529

Rogério Ribas analisou uma “amostragem de 349 réus penitenciados por práticas islâmicas nos tribunais de Lisboa, Évora e Coimbra desde a década de 1540 até o ano de 1600”. Concluiu que “excluídos os 61 para os quais não há dados, nada menos que 276 ou cerca de 96% deles eram estrangeiros, naturais de diversas partes do mundo muçulmano (67,5% do Norte da África; 11,5% da Índia; 5,2% de Guiné; 4,5% do Império Otomano; 0,3% da Arábia e 0,3% do Egito) ou da vizinha Espanha, 19, no caso (pouco mais de 6%, 12 de Castela e 7 de Granada), contra apenas 12 indivíduos ou 4% naturais de Portugal.” (RIBAS, 2006, p. 3)

A caracterização da comunidade mourisca evidencia também outras realidades determinantes para se entender a forma passageira como estes indivíduos viveram entre nós, não deixando a sua marca na sociedade portuguesa. Para além do aspecto incontornável da falta de perspectiva num futuro para os seus, refira-se que a maioria dos indivíduos eram solteiros, de muitos baixos rendimentos, pertencentes a uma faixa etária envelhecida.

“Os indicadores não deixam dúvidas, portanto, de que a população mourisca na diáspora portuguesa quinhentista praticamente não deixaria herdeiros para o século seguinte.” (RIBAS, 2006, p. 6)

Isabel Braga caracteriza a comunidade mourisca portuguesa como “pobre, velha”, constituída por “convertidos de primeira geração, dominando o árabe falado e nalguns casos escrito”. (BRAGA, 1999, p. 71)

Estas características acentuavam a dificuldade de conversão ao cristianismo e de integração na sociedade, já que os mouriscos, na sua grande maioria, eram convertidos já adultos, com personalidades já formadas e crenças próprias. O cripto-islamismo por detrás da aparente realidade cristã revelava-se publicamente em momentos em que as suas dificuldades eram maiores ou a sua espiritualidade era chamada para os confortar, como por exemplo por morte de familiares.

Vestidos de passeio das mulheres mouriscas de Granada . desenho de Christoph Weiditz, 1529

O processo de Francisca Lopes, mourisca capturada em Azamor e residente em Almeirim, estudado por Maria Filomena Barros, é um exemplo de como os mouriscos mantêm os seus traços identitários culturais e religiosos, que se manifestam de forma evidente em momentos em que o rito é chamado para comemorar determinados acontecimentos. No caso de Francisca, a morte do marido vem criar uma necessidade de celebração colectiva, a qual se manifesta da forma mais enraizada que esta mulher e as pessoas que fazem parte do seu círculo conhecem, terminando por dar origem a um processo no Tribunal da Santa Inquisição, que acaba por condenar os vários réus. O processo é aberto pelo facto de Francisca cozinhar um cuscuz de nabos e convidar quem passava à sua porta a rezar pelo seu marido e partilhar com ela essa refeição. No desenrolar do processo Francisca acaba por denunciar aos esbirros da Inquisição todos os mouriscos seus conhecidos, perdendo também todos os seus bens e destruindo a sua vida.

O processo de Francisca Lopes mostra bem a forma como Portugal lidava com as suas minorias, culpabilizando-as e castigando-as pelas suas diferenças e retirando-lhes toda a dignidade e esperança nas suas vidas.

Mourisco transportando pão . Desenho de Christoph Weiditz, 1529

Nos testemunhos de Francisca Lopes, apesar de extremamente condicionados pelo clima de interrogatório em que foram proferidos, fica claro que os mouriscos conservavam os hábitos e preceitos da sua cultura original, partilhando entre si a sua identidade e convicções.

Exprimiam-se em árabe, “falavam todos em aravya”, e utilizavam expressões corânicas nos ritos que praticavam, nomeadamente nas refeições conjuntas ou no cella (salat, oração), como por exemplo bismilá (bismillah, em nome de Deus), amdurilá bilaramin (alhamdulillah, rabi al’alamin, Deus seja louvado, Senhor do Universo) laylada Mahomed la çorolla (la ilaha ila Allah Muhammad rassul Allah, só há um Deus que é Deus e Muhammad é o enviado de Deus). (BARROS, 2013, p. 39, 50)

A obra citada de Isabel Braga inclui um capítulo com o título As diferenças não toleradas, no qual a autora esclarece algumas das práticas islâmicas, “enquanto cultura e religião”, que os mouriscos mantinham e que constituíam crime aos olhos da Inquisição, como “as abluções, as orações, os pedidos de protecção a Maomé e aos santos muçulmanos, os juramentos, as esmolas, o jejum do Ramadão, as prescrições alimentares, o modo de chorar os mortos e as festas em consequência de nascimentos e casamentos.” (BRAGA, 1999, p. 99)

Neste capítulo a autora explica que muitos mouriscos não cumpriam à risca os preceitos do Islão por impossibilidade prática, já que os mesmos eram realizados de forma dissimulada, ou seriam motivo de denúncia dos brancos á Inquisição, como por exemplo não cumpriam os rituais do nascimento, casamento e morte, não faziam as 5 orações diárias, não jejuavam o mês de ramadão integralmente, comiam porco e bebiam vinho em público para não levantar suspeitas…ou contrariavam um ditado da época que dizia “Mouro fino come toucinho e bebe vinho”(BRAGA, 1999, p. 104)

Dança mourisca . Desenho de Christoph Weiditz, 1529

A tentativa de normalização da sociedade portuguesa fazia-se de forma violenta e sobretudo através do terror que os esbirros da inquisição impunham. Para além disso os mouriscos viviam isolados e segregados e não havia qualquer preocupação por parte das autoridades portuguesas em ensinar os convertidos e dar-lhes as bases da sua nova religião.

“Em Portugal, nem a Coroa nem a Igreja tiveram qualquer plano sistemático de assimilação e ou aculturação dos mouriscos (…) De um modo geral, verificou-se que os mouriscos estavam mal doutrinados. Ou não se sabiam benzer, ou não se sabiam persignar, ou ignoravam as orações na totalidade ou em parte, ou ainda desconheciam os mandamentos e o significado das festas da Igreja; havendo ainda os que não sabiam rigorosamente nada.” (BRAGA, 1999, p. 60)

Dos elementos recolhidos por Isabel Braga em termos de testemunhos de mouriscos ao Tribunal do Santo Ofício sobre a doutrina cristã, destacam-se frases como “não sabia nada dela, nem nunca fora ensinada; não lhe ensinaram oração nenhuma nem cousa de cristão nem ia à igreja; a sua senhora não tinha mais cuidado que de a mandar servir e trabalhar e não de a ensinar” (BRAGA, 1999, p. 61). O testemunho de um almocreve mostra bem como considerava inútil aprender a doutrina cristã, já que a sua fatalidade era ir para o inferno _ “Nunca ensinaram cousa nenhuma. Os almocreves haviam de ir ao inferno porque nunca se lembravam senão de suas bestas”. (BRAGA, 1999, p. 61)

Como afirmou Adalberto Alves, “A conversão dos mouros, transformando-os em mouriscos, não passou de uma estratégia desajeitada de uniformização do reino, pois a ideia de um só estado, um só povo e uma só fé, pagou o preço nefando da liquidação gradual de todas as minorias.” (ALVES, 2007, p. 142)

O Portugal dos séculos XV e XVI era a preto e branco. Na religião os Cristãos-Velhos eram Brancos e os Cristãos-Novos eram Negros. Na condição social os escravos eram Mouros, Negros ou Pretos, conforme originários do Norte de Africa ou da Africa Subsariana.

Designações depreciativas, estabelecendo paralelismos entre a cor da pele e direitos sociais. De certa forma irónicas, se tivermos em consideração que a própria aristocracia feudal normanda que esteve na génese de Portugal também chamava negros aos autóctones deste país, como refere José Ramos Tinhorão:

“Em Portugal, no século 15, devido ao carácter normando – real ou pretenso – de parte da aristocracia feudal que participou e se locupletou da Reconquista, designava-se genericamente como negro todos os tipos de pele morena, nacionais e estrangeiros.” (TINHORÃO, 1997, obra citada)

Bibliografia:

-ALVES, Adalberto. “Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa”. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2013
-ALVES, Adalberto. “Em busca da Lisboa Árabe”. CTT Correios de Portugal, 2007
-BARROS, Maria Filomena Lopes. “Francisca Lopes, uma mourisca no Portugal do século XVI. Sociabilidade, solidariedades e identidade”. Universidade de Évora 2013
-BRAGA, Isabel Mendes Drumond. “Mouriscos e Cristãos no Portugal Quinhentista. Duas culturas e duas concepções religiosas em choque”. Biblioteca de Estudos Árabes, Hugin. Lisboa, 1999
-KAHN, Andrew e BOUIE, Jamelle. “The Atlantic Slave Trade in Two Minutes”. Página electrónica. 2015
-MAESTRI, Mário. “Mouriscos em Portugal, triste história, triste historiografia”. Córdoba, Argentina, 2006
-RESENDE, Garcia de. “Cancioneiro Geral”. Oficina de Hermão de Campos, 1516
-RIBAS, Rogério de Oliveira. “Ser Mourisco em Portugal Durante o Século XVI” . XII Encontro Regional de História. ANPUH, Rio de Janeiro, 2006
-TINHORÃO, José Ramos. “Os Negros em Portugal – uma presença silenciosa”. Editorial Caminho. Lisboa, 1997

Fonte: https://is.gd/nrHsJp