Texto de: Rafael de Mesquita Diehl, graduado, mestre e doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Em uma cerimônia solene no ano de 1939, o general Francisco Franco de Bahamonde (1892-1975)[1], líder da facção vitoriosa na Guerra Civil Espanhola, entrou na Igreja de Santa Bárbara de Madri onde depositou sua espada diante do altar. Estava trajando a farda militar sobre uma camisa azul e cobria a cabeça com uma boina vermelha, representando as três principais forças por trás do levante do 18 de julho de 1936 que havia dado início àquela longa contenda fratricida: o Exército, a Falange e os Requetés.[2] A entrega da espada possuía um simbolismo muito claro: demonstra o agradecimento de Franco a Deus pela vitória naquilo que ele considerava como uma cruzada[3] contra o comunismo e o ateísmo da II República Espanhola (proclamada no ano de 1931).

O general Franco entrega sua espada a altar da Igreja de Santa Bárbara em Madrid em 1939.

A propaganda franquista, contudo, mascarava um irônico e curioso detalhe, que poderia ser visto em outros aparições do “Generalíssimo” (título ostentado por Franco como chefe supremo das Forças Armadas): a presença da vistosa “Guarda Moura” com seus turbantes e capas brancas, formada por soldados muçulmanos marroquinos! Não só ao lado da “Cruzada” franquista, mas também ao lado da II República houveram combatentes muçulmanos. Tal dado, contudo, é frequentemente esquecido pelo fato de a complexa Guerra Civil Espanhola ser mostrada com um dualismo simplista de “católicos versus comunistas” (visão de alguns grupos de direita) ou de “democratas versus fascistas” (visão de alguns grupos de esquerda). Considerada pelos historiadores como um confronto entre a “velha” e a “nova” Espanha ou um ensaio dos conflitos entre as ideologias que se enfrentaram na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Guerra Civil Espanhola foi um fenômeno histórico de muitos contrastes, nos quais diferentes grupos e interesses se aliavam buscando derrotar um inimigo em comum.

Cartaz de Propaganda do Bando Nacional durante a Guerra Civil Espanhola: a Guerra de Franco é comparada a uma Cruzada e à Espanha é atribuída a providencial função de ser orientadora espiritual do mundo.

Para entender a Guerra Civil Espanhola em sua complexidade, bem como a participação dos muçulmanos nesse conflito, é necessário retrocedermos ao final do século XIX. No ano de 1898, a Espanha (que no século XVI havia possuído colônias nas Américas, África e Oceano Pacífico) perdera suas duas últimas relevantes colônias, Cuba e Filipinas, para os Estados Unidos da América. Tal fenômeno havia sido um choque para a geração daquele tempo, já que as colônias, sustentadas pelo poderio militar, eram um motivo de orgulho para a Espanha. Sem as colônias, a Espanha era apenas um país majoritariamente agrário adentrando atrasada no cenário de uma Europa ocidental em franca expansão do que foi depois chamado de 2ª Revolução Industrial (iniciada na segunda metade do século XIX). O século XIX também é o século do nacionalismo. É verdade que já haviam certos “sentimentos nacionais” antes do século XIX, mas é neste século que algumas ideologias políticas europeias começaram a sustentar a necessidade de uma identificação entre a Nação (identidade de um povo, de uma cultura) com o Estado (poder político centralizado em uma estrutura impessoal e burocrática).[4]

Se é verdade que a industrialização estava em alta na virada do século XIX para o século XX, também é verdade que a busca por colônias estava na ordem do dia entre as potências ocidentais do período. O governo espanhol, portanto, apostava em investir em um protetorado[5] no Marrocos como forma de reviver as glórias militares do passado. Apesar de já possuir domínios sobre alguns territórios litorâneos do norte da África desde o século XVI, a Espanha formou seu protetorado no Marrocos através de um tratado firmado com a França (que já possuía uma colônia na região) no ano de 1912 que reconhecia como protetorado espanhol os territórios de Rife e Jebala. Contudo, houve resistência da população local, especialmente de algumas tribos berberes que lideraram ataques contra os assentamentos coloniais na região do Rife. Durante os anos de 1920 a 1927 houve a Guerra do Rife, na qual a Espanha buscou consolidar seu domínio na região eliminando a resistência das tribos berberes.

Mapa do Protetorado Espanhol no Marrocos

Foi durante essa guerra que se formaram os oficiais e soldados espanhóis ditos “africanistas” que cresceram em prestígio militar e viam com maus olhos a política conduzida por civis e parlamentos. Foram também formadas tropas coloniais com soldados da população local, o que era comum no colonialismo, como os Regulares Marroquies (soldados de infantaria) e os Tiradores de Ifni (soldados de infantaria leve). Ambas as tropas eram utilizadas na guerra como vanguarda, iniciando os ataques nos combates. A maioria dos membros de ambas unidades militares eram recrutados em Ceuta e Melilla. Usavam uniformes parecidos: fardas em tons beges e na cabeça um fez vermelho ou um turbante branco.[6]

Soldados dos Regulares Marroquinos. Note que, além da diferença de alguns usarem o turbante branco enquanto outros usam o Fez vermelho na cabeça, há também uma diversidade de feições e tons de pele, o que mostra a variedade étnica e genética dos muçulmanos marroquinos.

Entre 1923 e 1930 o rei Afonso XIII delegou o governo ao general Primo de Rivera, que governou na prática como um ditador. Apesar do apoio dos grandes proprietários de terra, das forças armadas e de setores da Igreja Católica que se mostravam preocupados com o crescimento de movimentos socialistas e anarquistas entre as classes populares, o regime repressivo de Primo de Rivera declinou o prestígio da monarquia. Com a vitória dos candidatos republicanos na maior parte do país durante as eleições municipais de 1931 o rei e sua família partiram para o exílio o que culminou na proclamação da II República espanhola em 14 de abril de 1931.

A II República era um regime semipresidencialista, com o Presidente da República exercendo a chefia de Estado e compartilhando as funções de chefe de Governo com o Presidente do Conselho de Ministros. As forças que haviam proclamado a República eram diversas: nelas haviam republicanos moderados, liberais, republicanos radicais (com teor mais laicista), nacionalistas bascos e catalães, socialistas e comunistas. Além disso, haviam expressivos grupos anarquistas e anarco-sindicalistas especialmente na região da Catalunha, uma das zonas mais industrializadas do país. A Constituição de 1931 prometia amplas reformas sociais e buscava a separação entre Igreja e Estado. Tal separação, contudo, revelou-se radical com a expulsão de algumas ordens religiosas, fechamento de conventos e escolas católicas em prol do estabelecimento de um ensino público de caráter laico. Houve também maiores concessões de autonomia à Catalunha e aos Países Baixos, o que gerava preocupação nos setores militares que defendiam um nacionalismo espanhol de tipo mais unitário.

Como reação às novas políticas da República, a oposição ao regime buscou se organizar também, formando em 1933 a CEDA – Confederación Española de Derechas Autónomas (coalização de partidos católicos de direita) e a Falange (movimento nacional-sindicalista com inspiração no Fascismo italiano). Mas o regime republicano também revelava fissuras internas, especialmente quanto ao caráter e ao ritmo das reformas sociais. Em 1934 o governo utilizou-se da Legião estrangeira espanhola para esmagar uma revolta dos mineradores de Astúrias, influenciados por ideais socialistas e anarquistas. Encabeçando o sufocamento ao levante estava o general Francisco Franco, um dos oficiais da Legião.

Os conflitos políticos cresciam durante a II República, com enfrentamentos nas ruas entre grupos falangistas, socialistas e anarquistas (que adquiriam, cada vez mais, caráteres paramilitares). O governo não atacava igrejas e conventos, mas também não buscava conter esses incidentes de perseguição religiosa. Para conter o que viam como uma ascensão do Fascismo (lembremos que em 1933 Hitler havia chegado ao poder na Alemanha e que Mussolini já controlava o governo italiano desde 1922) vários partidos de orientação socialista e comunista, republicanos de esquerda e o sindicato anarquista CNT (Confederação Nacional do Trabalho) se uniram na Frente Popular para as eleições de janeiro de 1936, na qual saíram vitoriosos, tendo formado um governo de coalizão, do qual não participaram os anarquistas e alguns socialistas independentes.

A direita espanhola via com preocupação o crescimento dos grupos comunistas, socialistas e anarquistas. Muitos oficiais militares de tendências direitistas (que haviam sido estrategicamente movidos pelo governo para postos distantes) já conspiravam buscando uma forma de derrubar o governo, embora o general Franco (em cargo nas Ilhas Canárias) ainda hesitasse envolver-se na conspiração. Não obstante, o clima de antagonismo e violência política continuava a subir. Em 12 de julho de 1936 grupos de direita assassinaram o tenente socialista da Guarda de Assalto, José del Castillo Sáenz de Tejada, fato que foi vingado no dia seguinte quando socialistas mataram o jurista e deputado José Calvo Sotelo, líder das direitas nas Cortes (parlamento espanhol). Tal fato foi considerado como pretexto para os conspiradores colocarem em prática seu plano.

Em 17 de julho se inicia a sublevação de militares e falangistas no Protetorado do Marrocos e no dia seguinte o levante estoura na Península com a adesão das milícias carlistas. Contudo, o golpe de Estado em Madri fracassa e em Catalunha as milícias anarquistas se impõem aos sublevados. A falta de êxito na tomada de poder em regiões importantes do país fez com que o golpe se transformasse em uma guerra civil. De um lado haviam os autores do levante e seus apoiadores, que se denominaram Bando Nacional, composto por monarquistas afonsinos e monarquistas carlistas, falangistas, membros da CEDA dentre outros. Se juntaram à defesa do governo no Bando Republicano nacionalistas bascos e catalães, republicanos moderados e radicais, socialistas, comunistas, anarco-sindicalistas, anarquistas, liberais e democratas.

Milicianos anarquistas se armando para enfrentar o levante militar em Barcelona, 18 de julho de 1936.

Do ponto de vista militar também havia um impasse: embora muitos generais e militares tivessem participado do alzamiento junto às milícias falangistas e carlistas, muitos setores do exército e a maior parte da marinha e da força aérea permaneceram em uma postura legalista de apoio ao governo vigente. O Bando Nacional contava com o Exército de África para pender o peso da balança ao seu favor, já que os legionários e os soldados marroquinos possuíam melhor treinamento e experiência militar por conta da Guerra do Rife. Franco havia se colocado à frente das tropas africanas após o início do levante na Península. Com o Estreito de Gilbraltar bloqueado pela marinha espanhola, Franco buscou a ajuda militar da Alemanha que enviou aviões que transportaram legionários e soldados marroquinos para a Espanha entre os meses de julho e outubro.

Tropas regulares marroquinas em Tetuán aguardando o embarque em um avião de guerra alemão. 1936.

Os muçulmanos recrutados no Marrocos constituíam uma população de árabes, berberes e descendentes dos muçulmanos expulsos da Península Ibérica nos séculos XV, XVI e XVII. Isso é evidenciado pelas fotografias dos soldados, nos quais frequentemente podemos notar uma variedade de feições faciais e tons de pele.

Ilustrações dos tipos de uniformes usados pelos regulares marroquinos.

O maior número de muçulmanos que combateram na Guerra Civil Espanhola se encontrava no Bando Nacional e eram alistados nos Regulares Marroquiés e nos Tiradores de Ifni. O que teria levado esses muçulmanos a combaterem ao lado de uma liderança que dizia estar lutando uma Cruzada[i] em defesa da Espanha católica contra um governo comunista? Como em muitos outros grupos que tomaram parte nesse conflito, não há uma resposta única sobre os motivos e circunstâncias que levaram esses moros a se unirem ao alzamiento contra a II República. O primeiro grupo que podemos citar são os dos muçulmanos marroquinas que já pertenciam às tropas coloniais de maneira profissional, integrados à hierarquia. O outro grupo pertencia principalmente de pessoas de origem pobre de aldeias ou áreas rurais submetidos a um regime de vínculo pessoal com os chefes locais.  Muitos testemunhos, memórias e estudos historiográficos apontavam como motivações comuns para o alistamento: fugir da fome e da pobreza (com a garantia de soldo e provisões diárias); o sentimento de ligação com o território peninsular (no caso de famílias descendentes de muçulmanos outrora expulsos da Europa) e também motivações religiosas instrumentalizadas pelas lideranças de Franco (como a propaganda anticomunista associando a II República ao regime ateu soviético ou promessas de auxílio financeiro do futuro governo franquista para peregrinações à Meca a alguns soldados).

Os motivos acima elencados são, sem dúvida, bastante subjetivos. Explicam casos particulares, mas não uma adesão tão grande quanto a obtida pelos sublevados, ainda mais levando em conta a existência de movimentos nacionalistas que viam o colonizador espanhol como o verdadeiro inimigo a ser combatido. Ademais, havia a fidelidade pessoal dos aldeões aos chefes tribais e locais. Seria então possível encontrarmos um elemento comum que tenha favorecido uma grande adesão de recrutas ao alistamento (que, aliás, durou praticamente toda a guerra)?

Adnan Mechbal, professor da Universidade d’Angers, aponta uma explicação geopolítica para a improvável grande adesão de marroquinos ao exército colonizador para combater em uma causa nacionalista espanhola. O militar espanhol africanista Juan Luis Beigbeder y Atienza (1888-1957) possuía bom conhecimento da língua árabe e vínculos com lideranças marroquinas locais. Beidbeder utilizou-se da falta de comprometimento do governo republicano com as reivindicações dos nacionalistas marroquinos (que esperavam um estatuto de autonomia como havia sido concedido à Catalunha) e de seus contatos com a Alemanha nazista (que defendia um discurso pró-árabe e anticolonialista) para fazer tais líderes crerem que a República estava comprometida com os interesses geopolíticos da Grã-Bretanha e França, que se beneficiavam do colonialismo na posição estratégica do Marrocos e do Estreito de Gibraltar.

O militar espanhol Juan Luis Beigbeder em trajes civis

Beigbeder também se utilizou do medo da influência do comunismo ateísta da União Soviética sobre a República para dissuadir os nacionalistas marroquinos do alinhamento com os legalistas. O militar espanhol também conseguiu convencer as demais autoridades militares do Protetorado a manterem o principal líder nacionalista marroquino, Abdelkhalek Torres (1910-1970) – que havia liderado movimentos contra as autoridades coloniais bem como negociado com os republicanos – , em prisão domiciliar ao invés da aplicação de penas mais severas. No mesmo ano foi inclusive concedido a Torres formar um partido nacionalista marroquino, dessa vez com elementos de inspiração falangistas e fascistas.

O líder nacionalista e político marroquino Abdelkhalek Torres

Por outro lado, os dois intentos de adesão dos marroquinos por militantes de esquerda não lograram apoio do governo republicano, em parte pela descrença no sucesso de tal operação e em outro lado pela pressão britânica e francesa que se interessava em preservar o status colonialista na região do norte africano. Além das diferentes cisões nos movimentos de esquerda e nacionalistas marroquinos espanhóis, não há indícios que, às vésperas do levante de 17 de julho de 1936, houvesse alguma organização coordenada entre os marroquinos do Protetorado espanhol e os marroquinos do Protetorado francês.


O jalifa Muley Hassán el Mehdi em Madrid em uma fotografia de 1942.

Embora o Jalifa[7] Muley el Hassán ben el Mehdi (reinou de 1925 a 1956) tivesse aderido diretamente à política de alistamento dos espanhóis sublevados do Protetorado, o sultão[8] Mohammed V (reinou de 1923 a 1957 como sultão e de 1957 a 1961 como rei do Marrocos) não apoiou explicitamente o alistamento, embora ele, seu séquito e as lideranças marroquinas locais tenham facilitado a conscrição de seus súditos nas fileiras do Bando Nacional. Como o levante contra a II República se constituía, a priori, como uma rebeldia perante a ordem geopolítica internacional, era prudente ao sultão manter a neutralidade para assegurar o status quo de seu governo. Quando membros do governo republicano apontaram a ilegalidade do recrutamento, o general Franco[9] habilmente acusou a República de estar em conluio com a França conspirando contra a soberania do sultão, apresentando-se assim com a imagem de um defensor da autonomia do Marrocos.


O sultão Mohammed V do Marrocos em fotografia de 1934

Outro trunfo usado pela propaganda do bando franquista foi a de uma associação do passado comum entre Espanha e Marrocos pela história de Al-Andalus e a necessidade de cooperação dos dois credos, cristão e muçulmano, na luta contra um governo que, de acordo com eles, buscaria a abolição de todas as igrejas e mesquitas da Espanha e seus territórios.

As tropas marroquinas continuaram sendo recrutadas e transladadas à Península durante os anos seguintes da Guerra Civil Espanhola e participaram da maior parte dos combates importantes e da tomada das posições mais estratégicas. A presença desses muçulmanos no Bando Nacional marcou o imaginário dos combatentes do Bando Republicano, como na célebre canção ¡Ay Carmela! que em um de seus versos dizia “Luchamos contra los moros,/rumba la rumba la rumba la./Luchamos contra los moros,/rumba la rumba la rumba la/mercenarios y fascistas,/¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!/mercenarios y fascistas,/¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!” Os números de muçulmanos marroquinos participantes ao longo de toda a guerra ainda permanecem um assunto de muita divergência entre os estudiosos, com cifras mais céticas oscilando entre 75000 e 80000 homens.

Apesar de serem muito mais recordados, os moros de Franco não foram os únicos muçulmanos combatentes no trágico conflito espanhol. Muçulmanos de diferentes origens (marroquinos desertores, argelinos, iraquianos, sírios, egípcios, árabes, palestinos, franceses, libaneses) uniram-se, por diferentes motivações e circunstâncias, às fileiras do Bando Republicano. Os números desses participantes, contudo, são bastante modestos comparado aos do Bando Nacional, contabilizando aqueles apenas entre 760 a 1000 pessoas. O contexto dos muçulmanos republicanos foi distinto do caso dos marroquinos nacionais: não houve um programa de recrutamento massivo por parte da II República em uma região específica. Isso explica-se por dois motivos: a) a falta de mando efetivo do governo republicano sobre alguma colônia (dado que o Protetorado marroquino, única colônia restante, se havia juntado ao levante); b) o apoio tímido dos aliados da República no cenário internacional.

Embora reconhecessem como legítimo governo espanhol a II República, França e Grã-Bretanha não estavam dispostas a enviar suas forças armadas para o conflito, pois o encontro destas tropas com a Legion Condor de Hitler e o Corpo Truppe Volontarie de Mussolini enviadas em apoio aos Nacionais poderia expandir a guerra para além das fronteiras espanholas. A política de Josif Stálin a frente da União Soviética através da Internacional Socialista (órgão que, em tese, reunia todos os partidos e organizações socialistas e comunistas mas que, na prática, era uma forma de Moscou controlar os referidos partidos e suas formas de atuação nos países capitalistas) na época consistia em concentrar o desenvolvimento do sistema socialista na própria URSS enquanto incentivava nos outros países a formação de frentes antifascistas através de alianças dos socialistas e comunistas com grupos de outras orientações políticas.

Diferentemente do Bando Nacional que unificou seus exércitos e milícias sob a liderança suprema de Francisco Franco, o Bando Republicano permitiu a formação de diferentes milícias com suas próprias regras, estruturas de comando e agendas políticas. Em Barcelona, por exemplo, as milícias anarquistas exerciam de facto o controle da cidade no lugar das autoridades oficiais. A propaganda republicana, especialmente de órgãos anarquistas e socialistas, buscava arregimentar os muçulmanos com chamadas de rádio e panfletos dirigidos em árabe à França e a outros países do norte africano e do mundo árabe apresentando o fascismo como inimigo de todos os homens e opressor dos muçulmanos, ressaltando a necessidade dos seguidores do Islã se juntarem à luta dos oprimidos.

Bandeira das Brigadas Internacionais

A entrada de muçulmanos de diferentes países no Bando Republicano se inseriu no contexto das Brigadas Internacionales, órgão militar criado para arregimentar voluntários de todos os países que desejassem combater pela República contra os nacionais. É importante frisar que nem todos os brigadistas eram socialistas ou comunistas, mas de diferentes correntes políticas que se viam ameaçados com a ascensão dos regimes fascistas e seus aliados pela Europa. Nesse sentido, é importante observar que a composição e motivação desses muçulmanos brigadistas eram muito mais diversas: intelectuais, militantes políticos, operários, desertores, camponeses… e é possível que muitos fossem muçulmanos apenas nominalmente ou com uma interpretação muito flexibilizada do mesmo, nos casos de indivíduos ligados a movimentos socialistas, anarquistas ou nacionalistas. Dentre esses combatentes destaca-se o militante comunista palestino Muhammad Najati Sidqi (1905-1979), que tentou sem sucesso conseguir a adesão dos marroquinos de Franco à causa republicana. Em muitos ambientes republicanos via-se com desconfiança o exercício da liderança por muçulmanos ou a sua organização massiva, influenciados pelo contexto da sublevação no Marrocos. O que é certo é que o maior número de muçulmanos alistados no lado republicano era de origem argelina.


O militante comunista palestino Muhammad Najati Sidqi

A Guerra Civil Espanhola foi oficialmente encerrada com um discurso de Franco em 1º de abril de 1939, quando as tropas nacionais haviam tomado os últimos redutos de resistência (Madrid havia sido tomada em 28 de março daquele ano). Sobre a finalidade dos combatentes de ambos os lados, além das inúmeras baixas, os destinos foram diversos… Alguns regulares marroquinos passaram a integrar a Guarda Moura e outras guardas relacionadas ao governo franquista (o que talvez nos revele algo sobre as tensões internos que permaneceram entre os diferentes grupos militares, falangistas, carlistas e monarquistas após a vitória de Franco). Outros voltaram para o Marrocos, onde grande parte dos contingentes foram desmilitarizados, voltando à vida ordinária. Com relação aos muçulmanos republicanos, com o encerramento das Brigadas Internacionais pelo governo em 1938, muitos acabaram caindo em mãos do inimigo como prisioneiros (com destino incerto), outros tentaram atravessar a fronteira francesa, mas não eram recebidos com a mesma facilidade que os “camaradas” europeus. Alguns de maior destaque voltaram a seus países onde continuaram sua militância política, geralmente associada a um tipo de nacionalismo árabe de tendências de esquerda.

Membros da XV Brigada Internacional às margens do Rio Ebro em janeiro de 1938. Nessa unidade participaram alguns argelinos.

Propaganda republicana de 1936 mostra um regular marroquino abraçando um soldado republicano.

Há, por fim, um outro elemento a ser considerado: tanto no imaginário nacional quanto republicano o “mouro” foi frequentemente associado á crueldade e às atrocidades de saques, assassinatos sumários, torturas e estupros que foram cometidos após muitas tomadas de território pelas tropas franquistas. Há aqui de separar a objetividade histórica das subjetividades das memórias individuais. É compreensível que os espanhóis comuns, acostumados a ver os mouros como elemento estranho e opositor na história forjada pelo nacionalismo e marcados pelo impacto das guerras e conflitos do Marrocos colonial, ficassem mais marcados pela lembrança de muçulmanos realizando atrocidades que lhes marcaram por toda a vida. Isso foi usado como arma psicológica por ambos os bandos… pelos nacionais, para incutir terror no inimigo; pelos republicanos, para aumentar o desprezo e ódio pelos “fascistas”. Nota-se aqui o predomínio da típica mentalidade etnocêntrica e orientalista do colonialismo ocidental: sempre associando o Oriente ao exótico, ao sensual, ao selvagem…


Propaganda republicana associando o mouro à violência contra mulheres e crianças.

Não há evidências históricas, contudo, de que as atrocidades cometidas estejam associadas em maior grau aos combatentes muçulmanos. Um dos primeiros elementos a se ter em mente quando analisamos a Guerra Civil Espanhola é precisamente não olhá-la sob um prisma maniqueísta/dualista ou com vendas ideológicas. Esse conflito teve altos índices de crueldades e arbitrariedades de ambos os lados (talvez com a diferença que no Bando Nacional elas aconteciam sob certa direção de seus comandantes enquanto no Bando Republicano eram mais consequência da falta de controle do governo sobre as diferentes milícias e organizações que lutavam ao seu lado): grevistas ou simpatizantes de lutas trabalhistas eram sumariamente executados por militares pelo delito de serem rojos (“vermelhos”, comunistas); sacerdotes e religiosos eram torturados e fuzilados por serem considerados “Fascistas”… Estamos falando de um conflito de elevadas polarizações em que o que uniam cada um dos bandos era muito mais o desejo de eliminar um inimigo em comum do que um programa de ideias bem delineadas, muito embora o discurso e a propaganda tratassem sempre de sacralizar a causa. Em muitas regiões, especialmente nos pueblos (povoados, vilarejos, aldeias), o território era constantemente tomado e retomado por um bando ou outro: juntavam-se às rivalidades ideológicas as rixas pessoais, colocando literalmente vizinhos contra vizinhos e até mesmo uma família contra si mesma!


General Miguel Cabanellas passando em revista uma tropa de regulares marroquinos no início da guerra em 1936.

O estudo da participação dos muçulmanos na Guerra Civil Espanhola é mais um exemplo histórico de como é difícil julgarmos a História em bloco ou analisar uma crença ou corrente de pensamento pelos atos isolados de alguns de seus membros.


Franco discursando em um palanque vigiado por dois membros da Guarda Moura.

Notas:

1: Por estarmos tratando de um tema ligado à história de um país ocidental utilizaremos a datação cristã ao longo do texto, bem como nos referiremos a algumas periodizações comuns à historiografia ocidental.


2: Os Requetés, que se distinguiam por suas boinas vermelhas, eram as milícias do movimento monarquista carlista, que defendia a legitimidade dos descendentes de Carlos Maria de Boubron, príncipe das Astúrias em contraposição aos da rainha Isabel II, disputa iniciada em 1830 após a morte de Fernando VII. Também defendiam um modelo de monarquia tradicional com maior influência da Igreja Católica em oposição ao modelo de monarquia parlamentarista e liberal.


3: Mesmo no caso da Igreja Católica não se pode dizer que a adesão ao lado de Franco tenha sido incondicional. Embora o Episcopado espanhol tenha apoiado o alzamiento nacional (nome que os sublevados deram ao movimento militar iniciado para derrubar a II República), houve críticas de membros da hierarquia eclesiástica aos fuzilamentos sumários conduzidos pelos sublevados ou mesmo a desilusão e abandono do movimento por parte de intelectuais católicos como o escritos George Bernanos ou o filósofo Jacques Maritain. Também havia o caso particular do País Basco, local onde a República não havia atuado de forma anticlerical e, portanto, contava com a adesão do clero e fiéis católicos locais. A Sé Apostólica reconheceu o novo governo formado por Franco, mas houveram tensões entre a Igreja e o governo franquista mesmo após o término da guerra, sobretudo sob o pontificado de Paulo VI (1963-1978). O forte partidarismo adotado por muitos setores do clero e laicato católico na Espanha já mesmo antes da II República pode ter sido um dos motivos pela qual o sacerdote espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975) insistia fortemente no caráter apolítico e apartidário do Opus Dei, instituição católica que fundara em 1928 e que já contava com membros em algumas localidades da Espanha por ocasião do início do conflito em 1936. Para tanto vide FERNÁNDEZ GARCÍA, 1985; GARAY, 2017; GARCÍA-VILLOSLADA, 1979; GARRIGUES, 2016; MEER 2003; RAIFORD, 2014; RILLA, 2020; RUTGERS, 1984; VÁZQUEZ DE PRADA, 2004.


4: Até o início da chamada “racionalização administrativa” (que buscava padronizar as leis e instituições em todos os territórios da Coroa) promovida pelos monarcas espanhóis da dinastia Bourbon no século XVIII, a “Espanha” era um conjunto de diferentes reinos (Castela e Leão, Galícia, Navarra, Aragão, Granada, etc) com seus ordenamentos jurídicos e costumes distintos unidos apenas sob um mesmo rei cristão. Assim, o cristianismo e a Igreja Católica apareciam como um elemento constitutivo da identidade dos espanhóis.


5: O regime de protetorado foi adotado em vários contextos do colonialismo das potências ocidentais a partir do século XIX. Nele se mantinha uma autoridade local nominalmente autônoma com guarnições militares coloniais ocupando locais estratégicos e exercendo algumas funções administrativas ou coercitivas a título de “proteção”.
nota 6: Não confundir essas tropas de soldados locais com a Legion extranjera espanhola, tropa de elite inspirada na Legião estrangeira francesa, que aceitava estrangeiros de outros países europeus em suas fileiras.


7: É importante deixar claro que a construção do ideal de Cruzada se delineia após o início do conflito. Também Franco não era líder inconteste dos sublevados no início do levante.
nota 8: Jalifa, corruptela espanhola da palavra árabe Khalifah (Califa) era o título utilizado pelo governante marroquino sediado na cidade de Tetuán, que representava o sultão do Marrocos frente às autoridades espanholas do Protetorado.


9: O sultão do Marrocos era nominalmente o chefe de Estado do Marrocos sediado na cidade de Rabat, sob controle do Protetorado francês. Como era natural nos protetorados, esse chefe de Estado deveria estar alinhado aos interesses da potência colonial europeia para conservar suas prerrogativas.


10: É somente no mês de outubro de 1936 que Franco torna-se o único e inconteste líder do Bando Nacional. A partir desse momento, buscará construir uma forte imagem de culto à sua personalidade, o que pode ser exemplificado em sua apropriação do discurso católico (defendido especialmente pelos carlistas e antigos membros da CEDA) e da fusão, sob seu comando de duas milícias bastante opostas: os requetés carlistas e os camisas-azuis falangistas. A execução de José Antônio Primo de Rivera (fundador da Falange) pelos milicianos de esquerda em novembro de 1936 foi duplamente conveniente para a liderança unitária de Franco: eliminava um potencial concorrente e ao mesmo tempo dava um mártir para ser usado como símbolo de inspiração para o movimento dos sublevados. Para tanto, vide GARCÍA-HEVIA, 2009; GIMÉNEZ MARTÍNEZ, 2015; MORENO ALMENDRAL, 2014.

Bibliografia:

BOFARULL, Salvador. Brigadistas árabes en la Guerra de España: Combatientes por la República. Nación Árabe, n. 52, pp. 121-124, verano 2004.

BOLORINOS ALLARD, Elisabeth. Masculinidad, identidad guerrera y la imagen del regular marroquí en la propaganda del bando sublevado en la Guerra Civil Española. Norba. Revista de Historia, Vol. 29-30, pp. 121-134, 2016-2017.

FERNÁNDEZ GARCÍA, Antonio. La Iglesia Española y la Guerra Civil. Studia Historica. Historia Contemporánea, vol. 3, pp. 37-74, 1985.

GARAY, Ing Agustín M. Maritain y la Institucionalidad republicana: el caso de la II Republica Española y la Guerra Civil. IV Encuentro Internacional de Institutos “Jacques Maritain” e Instituciones Afines de América del Sud. Córdoba, 07 a 08 set. 2017.

GARCÍA-HEVIA, José María Vallejo. La Guerra Civil y sus Polémicas: Ideas e ideologías, hechos y biografías. Revista de Inquisición, vol. 13, pp. 25-115, 2009.

GARCÍA-VILLOSLADA, Ricardo (dir.). Historia de la Iglesia en España. Vol. V: La Iglesia en la España contemporánea (1808-1975). Madrid: BAC, 1979, pp. 277-391.

GARRIGUES, Jean-Miguel. Jacques Maritain frente a un catolicismo de cruzada: España 1934-1937. Revista de Fomento Social, 71, 3-4, pp. 511-532, 2016.

GIMÉNEZ MARTÍNEZ, Miguel Ángel. El corpus ideológico del franquismo: principios originarios y elementos de renovación. Estudios Internacionales, 180, pp. 11-45, 2015.

GUERRA, Antonio. Musulmanes en la Guerra Civil española. 2015. <https://elfarodeceuta.es/musulmanes-en-la-guerra-civil-espanola/>. Acesso em 09 out. 2020.

MARTÍNEZ MONTÁVEZ, Pedro. Los intelectuales árabes en la Guerra Civil de España.  pp. 505-510. La República y la cultura: paz, guerra y exilio. Madrid: Akal, 2009.

MECHBAL, Adnan. Los Moros de la Guerra Civil española: entre memoria e historia. Amnis [Online], n. 2, 2011. <http://journals.openedition.org/amnis/1487>. Acesso em 09 out. 2020.

MEER, Fernando de. Algunos aspectos de la cuestión religiosa en la Guerra Civil (1936-1939). Anales de Historia Contemporánea, vol. 7, pp. 111-125, 1989.

MONTERO, Feliciano. La historia de la Iglesia y del catolicismo español en en siglo XX. Apunte historiográfico. Ayer, n. 51, pp. 265-282, 2003.

MORENO ALMENDRAL, Raúl. Franquismo y nacionalismo español: una aproximación a suas aspectos fundamentales. Hispania Nova. Revista de Historia Contemporánea, n. 12, 2014.

PUEYO MUR, Rubén. ¿Cómo fue utilizado el moro por los dos bandos de la Guerra Civil española? Una breve reflexión. 2020. <https://repositori.upf.edu/bitstream/handle/10230/45174/TreballCPIS_Pueyo_Moro.pdf>. Acesso em 09 out. 2020.

RAIFORD, Mattie E. El papel de la Iglesia Católica durante y después de la Guerra Civil Española. University Honoros Program Theses. 30, 2014.

RILLA, José. Caminos de la herejía democrática: católicos y falangistas en tránsito. Pasado y Memoria. Revista de Historia Contemporánea, 20, pp. 43-65, 2020.

RUTGERS, Rutger Jan. Los catolicos vascos y la Guerra Civil Española. Presupuestos historicos para una valoracion juridico-doctrinal. Cuadernos doctorales, n. 2, pp. 303-340, 1984.

SOTOMAYOR BLÁZQUEZ, Carmen T. El moro traidor, el moro engañado: variantes del estereotipo en el Romancero republicano. Anaquel de Estudios Árabes, vol. 16, pp. 233-249, 2005.

TUR, Francesc. Los “moros” de la República. 2020. <https://serhistorico.net/2020/06/01/los-moros-de-la-republica/>. Acesso em 09 out. 2020.

VÁZQUEZ DE PRADA, Andrés. O fundador do Opus Dei: vida de Josemaría Escrivá. Vol 2: Deus e audácia. São Paulo: Quadrante, 2004, pp. 9-407.

VELASCO DE CASTRO, Rocío. La imagen del “moro” en la formulación e instrumentalización del africanismo franquista. Hispania, vol. LXXIV, n. 246, pp. 205-236, 2014.

ZAKARIA, Loukili. La participación del ejército “moro” en la Guerra Civil Española (Hermandad entre musulmanes y cristianos contra el infiel “ROJO”). Monografia de Licenciatura en Historia. Oujda: Universidad Moahammed I, 2007-2008.