Texto de: Christian C. Sahner

Há poucas transformações na história mundial mais profundas do que a conversão dos povos do Oriente Médio ao islamismo. A partir do início da Idade Média, o processo se estendeu por séculos e foi influenciado por fatores tão variados quanto a conquista, a diplomacia, a convicção, o interesse próprio e a coerção.

Há um fator, no entanto, que é em grande parte esquecido, mas que desempenhou um papel fundamental no surgimento de uma sociedade distintamente islâmica: uniões mistas entre muçulmanos e não-muçulmanos.

Durante grande parte do período islâmico inicial, a mistura de muçulmanos e não-muçulmanos era baseada, principalmente, em um desequilíbrio básico de poder: os muçulmanos formavam uma minoria dominante de elite, que tendia a explorar os recursos dos povos conquistados, reprodutivos e outros, para crescer em tamanho e criar raízes dentro das populações locais.

Visto sob essa luz, a conversão forçada foi muito menos um fator na mudança religiosa de longo prazo do que práticas como casamentos mistos e concubinato.

As regras que regem famílias religiosamente mistas cristalizaram bem cedo, pelo menos no lado muçulmano. O Alcorão permite que homens muçulmanos se casem com até quatro mulheres, incluindo “Povos do Livro”, isto é, judeus e cristãos. As mulheres muçulmanas, no entanto, não tem permissão para se casar com homens não-muçulmanos e, a julgar pelas evidências históricas, essa proibição parece ter durado.

Subjacente à injunção estava o entendimento de que o casamento era uma forma de submissão feminina: se uma mulher estava ligada ao marido como uma escravo a seu mestre (não obstante, o Islã reconhecendo o direito ao divórcio), ela não poderia ser subordinada a um infiel.

Fora do casamento, as conquistas dos séculos VII e VIII viram um grande número de escravos capturados no Norte da África, no Oriente Médio e na Ásia Central. As escravas de origem não-muçulmana, pelo menos, eram frequentemente induzidas ao relacionamento sexual com seus mestres muçulmanos, através do concubinato, e muitas dessas relações produziam crianças, consideradas legítimas pela shariah.

Como os homens muçulmanos eram livres para manter tantas escravas quanto quisessem, o sexo com mulheres judias e cristãs era considerado lícito, enquanto o sexo com zoroastrianas e outras fora do “Povo do Livro” era tecnicamente proibido. Afinal, eles eram considerados pagãos, faltando uma escritura divina válida que fosse equivalente à Torá ou ao Evangelho.

Mas como muitos escravos no período inicial vieram dessas comunidades “proibidas”, juristas muçulmanos desenvolveram soluções convenientes. Alguns escritores do século IX, por exemplo, argumentaram que as mulheres zoroastrianas poderiam ser induzidas a se converter e, assim, se tornarem disponíveis para o sexo.

Nascidos por meio do casamento ou da escravidão, os filhos de uniões religiosamente mistas eram automaticamente considerados muçulmanos. Às vezes, judeus ou cristãos convertiam-se depois de terem começado famílias.

Se as conversões ocorressem antes dos filhos atingirem a idade de maioria legal, sete ou dez anos, dependendo da escola da lei islâmica, teriam que seguir a fé dos pais. Se as conversões ocorressem depois, as crianças teriam liberdade para escolher. Mesmo enquanto pais e filhos mudavam de religião, as mães podiam continuar como judias e cristãs, como era seu direito sob a lei da Sharia.

O casamento misto e o concubinato permitiram que os muçulmanos, que constituíam uma pequena porcentagem da população no início da história islâmica, se integrassem rapidamente a seus súditos, legitimando seu domínio sobre os territórios recém-conquistados e ajudando-os a crescer em número.

Também garantiu que as religiões não-muçulmanas desaparecessem rapidamente das árvores genealógicas. De fato, dadas as regras que governam a identidade religiosa das crianças, grupos mistos de parentesco, provavelmente, não duravam mais do que uma geração ou duas.

Foi precisamente essa perspectiva de desaparecer que levou os líderes não-muçulmanos, rabinos judeus, bispos cristãos e sacerdotes zoroastrianos, a investirem contra o casamento misto e a codificarem leis destinadas a desencorajá-lo. Como os muçulmanos eram membros da elite, que desfrutavam de maior acesso a recursos econômicos do que os não-muçulmanos, suas taxas de fertilidade eram provavelmente maiores.

É claro que a teoria e a realidade nem sempre se alinharam, e as famílias religiosamente mistas às vezes desprezavam as regras estabelecidas pelos juristas. Um dos corpos de evidência mais ricos para essas famílias são as biografias de mártires cristãos do início do período islâmico.

Um grupo pouco conhecido que constitui o tema do meu livro, “Christian Martyrs under Islam”, traduzido como Mártires Cristãos sob o Islã, de 2018. Muitos desses mártires foram executados por crimes como apostasia e blasfêmia, e um grande número deles veio de uniões religiosas mistas.

Um bom exemplo é Bacchus, um mártir morto na Palestina, em 786, cerca de 150 anos após a morte do Profeta Muhammad. Bacchus, cuja biografia foi gravada em grego, nasceu em uma família cristã, mas seu pai, em algum momento, se converteu ao islamismo, mudando também o status de seus filhos.

A mãe de Bacchus, muito angustiada, orou pelo retorno do marido e, enquanto isso, parece ter exposto seus filhos muçulmanos a práticas cristãs. Eventualmente, o pai morreu, libertando Bacchus para se tornar cristão. Ele foi batizado e tonsurado como monge, enfurecendo alguns parentes muçulmanos que o prenderam e mataram.

Exemplos semelhantes vêm de Córdoba, a capital da Espanha islâmica, onde um grupo de 48 cristãos foram martirizados, entre 850 e 859, e comemorados em um corpus de textos latinos. Vários dos mártires de Córdoba nasceram em famílias religiosamente mistas, mas com uma reviravolta interessante: vários deles viviam publicamente como muçulmanos, mas praticavam o cristianismo em segredo.

Na maioria dos casos, isso parece ter sido feito sem o conhecimento de seus pais muçulmanos, mas um caso único de duas irmãs, supostamente, ocorreu com o consentimento do pai.

A ideia de que alguém teria uma identidade jurídica pública como muçulmano, mas uma identidade espiritual privada como cristã, produziu uma subcultura única de “cripto cristianismo” em Córdoba. Isso parece ter passado por gerações, alimentado pela tendência de alguns “cripto-cristãos” em procurar e se casar com outros como eles.

No Oriente Médio moderno, os casamentos mistos se tornaram incomuns. Uma razão para isso é o sucesso a longo prazo da islamização, de tal forma que há, simplesmente, menos judeus e cristãos ao redor para se casarem.

Outra razão é que essas comunidades judaicas e cristãs que existem hoje, sobreviveram, em parte, vivendo em ambientes homogêneos sem muçulmanos ou estabelecendo normas comunais que penalizam fortemente o casamento misto com muçulmanos.

Em contraste com o mundo de hoje, onde as fronteiras entre as comunidades podem ser seladas, o Oriente Médio medieval era um mundo de fronteiras surpreendentemente porosas, especialmente quando chegava ao quarto.

Fonte: