Nas relações entre história e memória, não é de todo incomum que esta faça injustiça com diversos indivíduos preteridos, omitidos ou simplesmente negligenciados de seu devido valor. O caso de Nūr al-Dīn Maḥmūd Zengī, mais conhecido como Nur ad-Din (1118 – 1174) é um exemplo perfeito de certas injustiças da memória.

De etnia turco oguz, Nur ad-Din é descrito como um homem imperturbável, virtuoso, de tez escura, testa larga, olhar “meigo e sereno” e o rosto barbeado, com exceção do queixo. Os Zengi eram uma família turca que, em teoria, exerciam a função de atabegs do Império Turco Seljuque; que por sua vez, também em teoria, eram um Estado vassalo do Califado Abássida, ou do que havia sobrado dele nos arredores de Badgá, sendo então submissos em todos os sentidos à autoridade político-religiosa do Califa. Na prática, porém, as coisas eram menos organizadas que isso: da mesma forma como o Império Turco Seljuque era um Império sunita que tinha os Abássidas como meros fantoches, o território governado pelos Zengi eram, para quaisquer fins práticos, um Estado independente de facto. Este potentado Zengi incluía, inicialmente, os atabegs de Aleppo e Mossul, mas em breve se tornaria a maior e mais poderosa facção política de todo o Oriente Próximo.

Isto se deu a partir da morte de seu pai, Imad al-Din Zinki, que confiou Aleppo a ele e Mossul ao seu irmão mais velho. Se em outras condições essa partilha territorial entre familiares geraria um terreno fértil para guerras civis entre irmãos, fratricídio e fragmentações das quais os cruzados utilizavam tão eficientemente ao seu favor, Nur ad-Din seria capaz de cooperar com o seu irmão em Mossul, agindo como governante da outra fronteira, enquanto ele mesmo seria promotor de uma ideologia que seria determinante na História das Cruzadas: o unionismo do emaranhado de principados muçulmanos do Oriente Médio em um único Estado, com uma única religião de Estado – isto é, o sunismo – e uma pauta religiosa clara: a expulsão dos Estados Cristãos Cruzados do Levante. Em um sentido pleno, Nur ad-Din é uma espécie de antecessor espiritual do próprio Saladino, seja na conduta, na ideologia, no brilhantismo tático e na própria devoção religiosa; aliás, Saladino em determinado momento começou sua carreira como um general de Nur ad-Din, então talvez não seja tão surpreendente que haja tamanha compatibilidade de valores entre ambos.

O historiador Amin Malouf nos fornece um amplo testemunho à respeito da conduta de Nur ad-Din:

’Li as vidas dos soberanos dos velhos tempos, e não encontrei nenhum homem, exceto entre os primeiros califas, que fosse tão virtuoso e tão justo quanto Nureddin.’ Ibn al-Athir, com razão, consagrará a esse príncipe uma profunda reverência. Se o filho de Zinki herdou qualidades do pai — autoridade, coragem, senso de liderança — não conservou nenhum dos de­ feitos que tornaram o atabeg tão odioso a alguns de seus contemporâneos. Enquanto Zinki assustava por sua truculência e falta total de escrúpulos, Nu­reddin conseguiu, desde sua entrada em cena, dar de si mesmo a imagem de um homem piedoso, reservado, justo, cumpridor da palavra dada e total­mente devotado ao jihad contra os inimigos do Islã̃.

Mais importante ainda, pois aí reside o seu gênio, ele vai erigir suas virtudes como hábil arma política. Compreendendo, nessa metade do século XII, o papel insubstituível que pode desempenhar a mobilização psicológi­ca, ele coloca em funcionamento um verdadeiro aparelho de propaganda. Algumas centenas de letrados, homens de religião na sua maioria, vão ter por missão catalizar a simpatia ativa do povo e forçar assim os dirigentes do mundo árabe a se reagrupar sob sua bandeira. Ibn al-Athir contará as lamentações de um emir da Jézira que foi “convidado” um dia pelo filho de Zinki a participar de uma campanha contra os franj.

‘‘Se eu não for em auxílio de Nureddin”, ele diz, “ ele irá tomar meu do­mínio, pois já escreveu aos devotos e aos ascetas pedindo-lhes o auxilio de suas preces e para que incitem os muçulmanos ao jihad. Neste exato momen­to, cada um desses homens está sentado com seus discípulos e companheiros, lendo as cartas de Nureddin, chorando e me maldizendo. Se eu quiser evi­tar o anátema, devo consentir em seu pedido”.

Aliás, é o próprio Nureddin quem comanda seu complexo de divulga­ção. Encomenda poemas, cartas, livros, e supervisiona sua difusão no mo­mento escolhido para produzir o efeito desejado. Os princípios que exalta são simples: uma só religião, o Islã sunita, o que implica uma luta encarni­çada contra todas as “ heresias” ; um só Estado, para cercar os franj por to­dos os lados; um só objetivo, o jihad, para reconquistar os territórios ocupa­dos e sobretudo libertar Jerusalém. Durante seus vinte e oito anos de reina­do, Nureddin incitará vários ulemás a escrever tratados vangloriando os mé­ritos da Cidade Santa, al-Quds, e sessões públicas de leitura serão organiza­das nas mesquitas e escolas.

Ninguém esquece, nessas ocasiões, de fazer o elogio do mujahid supremo, do muçulmano irrepreensível que é Nureddin. Mas esse culto da perso­nalidade é muito mais hábil e eficaz à medida que é fundamentado, parado­xalmente, na humildade e austeridade do filho de Zinki.

Segundo Ibn al-Athir,

“A mulher de Nureddin certa vez se lamentava por não ter dinheiro su­ficiente para se prover de suas necessidades. Ele lhe consignou três lojas que possuía como coisa particular em Homs e que rendiam uma vintena de dinares por ano. Como ela achava que isso não era o bastante, ele lhe retorquiu: ‘Não tenho mais nada. Com relação a todo o dinheiro de que disponho, sou apenas o tesoureiro dos muçulmanos, e não tenho a intenção de os trair nem de me lançar no fogo do inferno por tua causa'” .

Largamente difundidos, tais propósitos se revelam particularmente incômodos para os príncipes da região, que vivem no luxo e sobrecarregam seus súditos de impostos para lhes arrancar as menores economias. De fato, a pro­paganda de Nureddin acentua constantemente as supressões de impostos que ele efetua de maneira geral nos países submetidos à sua autoridade.

Incômodo para seus adversários, o filho de Zinki muitas vezes também o é para seus próprios emires. Com o tempo, irá tornar-se cada vez mais ri­goroso a respeito dos preceitos religiosos. Não estando contente em proibir o álcool a si mesmo, ele o proibirá totalmente a seu exército, “assim como o tamborim, a flauta e outros objetos que desagradam a Deus’’, precisa Kama­leddin, o cronista de Alepo, que acrescenta: “ Nureddin deixou todas as ves­tes luxuosas para cobrir-se de tecidos toscos’’. Evidentemente, os oficiais tur­cos, acostumados com a bebida e os enfeites suntuosos, não se sentirão mui­to à vontade com esse mestre que raramente sorri e prefere, a qualquer ou­tra, a companhia dos ulemás de turbante.

Ainda menos reconfortante para os emires é essa tendência do filho de Zinki a renunciar ao título de Nureddin, “luz da religião’’, em favor de seu próprio nome, Mahmud. “Meu Deus’’, orava ele antes das batalhas, “dê a vitória ao Islã e não a Mahmud. Quem é este cão do Mahmud para merecer a vitória?”. Tais demonstrações de humildade lhe atraíram a simpa­tia dos fracos e das pessoas piedosas, mas os poderosos não hesitarão em ta­xá-las de hipocrisia. Contudo, parece que suas convicções eram sinceras, mesmo se a sua imagem exterior estivesse parcialmente comprometida. Se­ja como for, o resultado está aí: é Nureddin quem fará do mundo árabe uma força capaz de esmagar os franj, e é seu comandante Saladino quem irá colher os frutos da vitória.” (MALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos árabes. Cap. 8, p. 137-139)

Mapa com a extensão territorial do domínio Zengi, antes de serem absorvidos no mega-sultanato de Saladino. É interessante observar como já na altura da Segunda Cruzada, Nur ad-Din foi capaz de um construir um Império que cercava os Estados Cruzados e despontava como o maior Estado da região.

E é precisamente por ser Saladino quem dará continuidade ao projeto já estabelecido de Nur ad-Din que este será virtualmente ignorado na memória histórica; se no Oriente o próprio Saladino foi relegado ao esquecimento, quiçá aquele que foi ofuscado pelo brilhante general curdo que o sucedeu.

Desde o início da sua vida política, Nur ad-Din esteve densamente envolvido em toda sorte de conflitos militares. Todavia, enquanto seu pai dividia sua atenção e energia tanto contra católico quanto contra rivais muçulmanos, Nur ad-Din focou-se exclusivamente em campanhas variadas pela destruição dos Estados Cruzados e das expulsão dos “francos”, termo genérico aplicado aos europeus católicos que vinham para o Oriente Próximo.

Enquanto ainda assegurava sua posição dentro da própria capital, uma grave notícia chegou nas cortes de Aleppo: Joscelino II, o antigo soberano católico do condado de Edessa, havia recuperado sua capital com a ajuda da população armênia local. Logo iniciar-se-ia o restabelecimento do próprio Condado de Edessa, cujo desmantelamento havia sido obra do seu pai, Zinki.

“Não se trata de uma cidade qual­quer, semelhante a todas aquelas que foram perdidas desde a morte de Zin­ki: Edessa era o próprio símbolo da glória do atabeg. Sua queda põe em cau­sa todo o futuro da dinastia. Nureddin reage rapidamente. Cavalgando dia e noite, abandonando à beira das estradas as montarias esgotadas, ele che­ga diante de Edessa antes que Jocelin tenha tido tempo de organizar sua de­fesa. O conde, cujas provações passadas não o haviam tornado mais corajo­so, decide fugir assim que a noite cai. Seus partidários, que tentam segui-lo, são recapturados e massacrados pelos cavaleiros de Aleppo.

A rapidez com a qual a insurreição foi esmagada confere ao filho de Zinki um prestigio do qual seu poder nascente tinha grande necessidade. Compreendendo a lição, Raymond de Antioquia se torna menos empreende­ dor. Quanto a Unar, este se apressa em propor ao mestre de Alepo a mão de sua filha.

‘O contrato de casamento foi redigido em Damasco’, precisa Ibn al- Qalanissi, ‘na presença dos enviados de Nureddin. Imediatamente começou-se a confeccionar o enxoval, e, assim que ficou pronto, os enviados puseram- se a caminho para recuperar Alepo’.

De agora em diante, a situação de Nureddin na Síria está devidamen­te definida. Mas, comparadas ao perigo que se desenha no horizonte, as cons­pirações de Jocelin, as razias de Raymond e as intrigas da velha raposa damascena logo irão parecer ridículas.

“Notícias sucessivas chegam de Constantinopla, do território dos franj, assim como das regiões vizinhas, segundo as quais os reis dos franj estavam chegando de seu país para atacar a terra do Islã. Tinham deixado suas provín cias vazias, sem defensores, e haviam levado consigo riquezas, tesouros e um material incomensurável. Seu número, diziam, se elevava a um milhão de in­fantes e de cavaleiros, e talvez até mais.”

Quando escreve essas linhas, Ibn al-Qalanissi tem 75 anos. Ele se lem­bra, sem dúvida, de que meio século antes já tinha relatado, em termos pou­co diferentes, um acontecimento do mesmo gênero. De fato, a segunda invasão franca, provocada pela queda de Edessa, as­semelha-se em seu começo a uma reedição da primeira. Inumeráveis comba­tentes desfraldaram na Asia Menor, no outono de 1147, com, uma vez mais, ligadas às costas, peças de tecidos em forma de cruz. Atravessando Doriléia, onde havia ocorrido a derrota histórica de Kilij Arslan, o filho deste, Mas­sud, os espera para se vingar com 50 anos de atraso. Ele arma uma série de emboscadas, descarregando-lhes golpes particularmente mortais. “Não cessa­vam de anunciar que seus efetivos estavam diminuindo, de modo que seus espíritos encontraram um pouco mais de tranquilidade.” Ibn al-Qalanissi acrescenta todavia que, “depois de todas as perdas que haviam sofrido, os franj mantinham, diz-se, o número aproximado de cem mil homens” . Evi­dentemente é preciso não aceitar essa cifras como exatas. Como todos os seus coetâneos, o cronista de Damasco não pratica o culto da exatidão e, de qualquer maneira, ele não tem nenhum meio de verificar suas estimati­vas. Devemos, todavia reverenciar, diga-se de passagem, as precauções ver­bais de Ibn al-Qalanissi, que acrescenta “diz-se” cada vez que uma cifra lhe parece suspeita. Ainda que Ibn al-Athir não tenha tais escrúpulos, to­da vez que ele apresenta a interpretação pessoal de um acontecimento, tem o cuidado de concluir por Allahou aalam — “ Só Deus o sabe” .

Seja qual for o número exato dos novos invasores francos, é certo que suas forças, acrescentadas às de Jerusalém, de Antioquia e de Tripoli, têm algo para inquietar o mundo árabe, que observa seus movimentos com pâni­co. Uma questão vem incansavelmente: qual a cidade que irão atacar em primeiro lugar? Pela lógica, deveriam começar por Edessa. Não foi para vin­gar sua queda que eles voltaram? Mas também poderiam principiar por Ale­ppo, ferindo assim na cabeça o poder crescente de Nureddin, de modo que Edessa caia logo em seguida por si mesma. Na verdade, não será nem uma nem outra. “Após longas disputas entre seus reis” , diz Ibn al-Qalanissi, “ a­cabaram concordando entre si em atacar Damasco, e estavam tão seguros de se apoderar dela que logo à primeira vista eles se entenderam sobre a par­tilha de suas dependências” .

Atacar Damasco? Atacar a cidade de Moinuddin Unar, o único dirigen­te muçulmano a ter um tratado de aliança com Jerusalém? Os franj não po­deriam prestar melhor serviço à resistência árabe! Por outro ângulo, parece que os poderosos reis que comandam os exércitos dos franj julgaram que apenas a conquista de uma cidade prestigiosa como Damasco justificava seu deslocamento ao Oriente.” (Ibid, p. 139-141)

Os confrontos por Damasco (1148) duraram meros 4 dias, terminando do modo mais frustrante possível e imediatamente dissolvendo a Segunda Cruzada apesar de todo o ânimo levantado por São Bernardo de Claraval, cujo discurso mereceu o epiteto fanático e intolerante do filme de Ridley Scott: “Extermínio total dos infiéis - ou conversão definitiva!” e “o cristão se glorifica na morte de um pagão, porque por ela Cristo mesmo é glorificado” são apenas alguns dos discursos apaixonados do santo francês, além da leitura tortuosa de quando Jesus Cristo afirmou “não vim trazer a paz, mas a espada”, interpretada literalmente pelo nosso santo.

“Unar [o governante de Damasco] escreverá a todos os príncipes da região pedindo reforços, e estes começam a chegar à cidade sitiada. Anuncia-se a vinda de Nu­reddin à frente do exército de Alepo, assim como a de seu irmão Saifeddin com o exército de Mossul. A sua aproximação, Moinuddin envia, segundo Ibn al-Athir, ‘‘uma mensagem aos franj estrangeiros e uma outra aos franj da Síria”. Com os primeiros, ele emprega uma linguagem simplista: ‘‘O rei do Oriente está chegando; se vós não partirdes, entregar-lhe-ei a cidade, e vós lamentareis”. Com os outros, os “colonos”, ele utiliza uma linguagem diferente: “Vós enlouquecestes ao ajudar aquela gente contra nós? Não com­preendestes que se eles o conquistarem em Damasco, procurarão arrancar vossas próprias cidades? Quanto a mim, se eu não conseguir defender a cida­de, entregá-la-ei a Saifeddin, e vós sabeis que, se ele tomar Damasco, vós não mais podereis vos manter na Síria”.

O sucesso da manobra de Unar é imediato. Chegando a um acordo se­creto com os franj locais, que tentam convencer o rei dos alemães a se afas­tar de Damasco antes que cheguem os reforços, ele distribui, para assegurar o sucesso de suas intrigas diplomáticas, importantes gratificações, semean­do nos vergéis que rodeiam sua capital centenas de franco-atiradores que se põem em emboscada e importunam os franj. Desde segunda-feira à noite, as dissensões suscitadas pelo velho turco começam a produzir seu efeito. Os sitiados, que bruscamente desmoralizados decidiram operar um recuo tático para reagrupar suas forças, se encontram, importunados pelos damasce­nos, numa planície aberta por todos os lados, sem a menor fonte de água à sua disposição. No fim de algumas horas, sua situação torna-se tão insus­tentável que seus reis não pensam mais em tomar a metrópole síria, mas em salvar suas tropas e suas próprias pessoas do aniquilamento. Na terça-fei­ra de manhã, os exércitos francos já retrocedem em direção a Jerusalém, per­seguidos pelos homens de Moinuddin. '

Decididamente, os franj não eram mais os mesmos. A negligência dos dirigentes e a desunião dos chefes militares ao que parece não eram mais o triste privilégio exclusivo dos árabes. Os damascenos estão estupefatos: é possível que a poderosa expedição franca, que faz estremecer o Oriente há meses, se encontre em plena decomposição, depois de quatro dias de comba­te? “Pensou-se que estivessem preparando um estratagema’’, diz Ibn al-Qa- lanissi. Não é nada disso. A nova invasão franca está imediatamente acaba­da. “Os franj alemães”, dirá Ibn al-Athir, “retornaram a seu país que se encontra lá longe, atrás de Constantinopla, e Deus livrou os crentes desta calamidade” .

[...]

O verdadeiro vencedor da batalha de Damasco é incontestavelmente Nureddin. Em junho de 1149, ele consegue esmagar o exército do príncipe de Antioquia, Raymond, que Chirkuh, o tio de Saladino, mata com as pró­prias mãos. Este corta-lhe a cabeça e a leva a seu mestre, que, segundo o cos­tume, a envia ao califa de Bagdá num cofre de prata. Tendo assim afastado toda ameaça franca na Síria do Norte, o filho de Zinki tem as mãos desata­das para consagrar de agora em diante todos os seus esforços à realização do velho sonho paterno: a conquista de Damasco. “ (Ibid, p. 142-143)

Diante do inesperado desfecho da Segunda Cruzada, São Bernardo viu-se completamente humilhado, chegando inclusive a enviar uma apologia ao Papa e inseri-la na segunda parte do seu Livro de Considerações, culpando os pecados dos cruzados pelo fiasco da Cruzada e se dissociando completamente do evento (RUNCIMAN, 1962, p. 232-234). Quando o santo foi encarregado de convocar uma nova cruzada, como fizera com a primeira, a reação foi tão apática que nada iria se formar disso. A Terceira Cruzada só aconteceria 50 anos depois, após uma Batalha de Hattin (1187) que não só tomou Jerusalém dos católicos como tirou qualquer capacidade que o Reino de Jerusalém anteriormente possuía de defender a si mesmo, nessa altura, as cruzadas já tinham vindo tarde demais para mudar alguma coisa. Neste sentido, dever-se-ia considerar o Cerco de Damasco (1148) como o primeiro cataclismo na História das Cruzadas, ainda que indiretamente falando.

Mas apesar da imagem positiva que Nur ad-Din construiu em Damasco, o governante da cidade – sucessor de Unar – mandou uma mensagem bem contundente quando aquele aparecera diante de seus portões tentando negociar a absorção pacífica da metrópole síria:

“Entre você e nós não há mais nada de agora em diante a não ser o sabre. Os franj vão chegar para nos ajudar a nos defen­dermos’’ (MALOUF, ibid, p. 144)

Mesmo a quase-conquista na Segunda Cruzada não era um argumento suficiente para a absorção de Damasco no Estado Unionista de Nur ad-Din. Para manter sua independência, o governo damasceno não hesitaria em buscar ajuda com seus inimigos recentes, cristãos infiéis, contra o expansionismo piedoso de um correligionário. Se é que é necessário gastar maiores palavras nisso, fica mais uma vez provado a natureza complexa das relações geopolíticas deste período.

Nur ad-Din voltaria a Damasco no ano seguinte, propondo “meramente” que as autoridades da cidade unissem seus exércitos aos dele, para fazer guerra aos católicos. Supreendentemente:

“Co­mo resposta, Abaq recorre novamente aos franj, que se apresentam sob a direção de seu jovem rei Baudoin III, filho de Fulque, e se instalam às portas de Damasco durante algumas semanas. Seus cavaleiros estão autorizados até mesmo a circular pelos mercados, o que não deixa de criar alguma tensão com a população, que ainda não havia esquecido seus filhos mortos três anos antes.

Nureddin, prudentemente, continua evitando qualquer confronto com os aliados. Afasta suas tropas de Damasco, esperando que os franj retornem para Jerusalém. Para ele, a batalha é antes de tudo tática. Explorando ao máximo a frustração dos citadinos, faz chegar grande quantidade de mensa­gens ao notáveis damascenos e aos religiosos para denunciar a traição de Abaq. Entra até mesmo em contato com numerosos soldados a quem a co­laboração aberta com os franj exaspera. Para o filho de Zinki, não se trata mais apenas de suscitar protestos que atrapalharão Abaq, mas organizar no interior da cidade ambicionada uma rede de cumplicidade que possa levar Damasco a capitular. É o pai de Saladino que ele encarrega dessa missão de­licada. Em 1153, após um hábil trabalho de organização, Ayyub consegue de fato assegurar-se da neutralidade favorável da milícia urbana, cujo coman­dante é um jovem irmão de Ibn al-Qalanissi. Vários personagens do exérci­to adotam a mesma atitude, o que, dia após dia, reforça o isolamento de Abaq. A este apenas resta um pequeno grupo de emires que o encorajam ainda a fazer frente. Decidido a se desembaraçar desses últimos irredutíveis, Nureddin envia ao chefe de Damasco falsas informações sobre uma conspira­ção que tramaria o seu séquito. Sem se preocupar muito em verificar o fun­damento, Abaq se apressa em executar ou aprisionar vários de seus colabora­dores. Seu isolamento é de agora em diante total.

Última operação: Nureddin intercepta repentinamente todos os com­boios de víveres que se dirigem a Damasco. O preço de um saco de trigo passou, em dois dias, de meio dinar a 25 dinares, e a população começa a temer a fome. Resta, aos agentes do chefe de Alepo, convencer a opinião pú­blica de que não haveria nenhuma penúria se Abaq não tivesse escolhido aliar-se aos franj contra seus correligionários de Alepo.

A 18 de abril de 1154, Nureddin volta com suas tropas diante de Damasco. Abaq envia uma vez mais mensagem urgente a Baudoin. Mas o rei de Jerusalém não terá tempo de chegar. No domingo, 25 de abril, o assalto final ocorre a leste da cidade.

“Não havia ninguém sobre os muros” , narra o cronista de Damasco, “ nem soldados nem citadinos, com exceção de um punhado de turcos encarre­gados da guarda de uma torre. Um dos soldados de Nureddin precipitou-se numa muralha no alto da qual se encontrava uma mulher judia que lançou uma corda. Ele se serviu dela para subir, chegou ao cume da muralha sem que ninguém se apercebesse e foi seguido por alguns de seus camaradas que içaram uma bandeira, plantaram-na sobre o muro e começaram a gritar ‘Ya Mansour! O vitorioso!’. As tropas de Damasco e a população renunciaram a qualquer resistência por causa da simpatia que sentiam por Nureddin, sua justiça e sua boa reputação. [...] Enfim, o rei Nureddin fez sua entrada, acompanhado de sua comitiva, motivando a euforia da população e dos soldados, que estavam sendo importu­nados tanto pelo medo da fome como pelo temor de serem sitiados pelos franj infiéis” .

Generoso em sua vitória, Nureddin oferece a Abaq e a seus dependen­tes terras da região de Homs, deixando-os sair com os seus bens.

Sem combate, sem derramamento de sangue, Nureddin conquistou Damasco mais pela persuasão do que pelas armas. A cidade que há um quarto de século havia bravamente resistido a todos aqueles que tentavam subjugá-la, quer se tratasse dos Assassinos, dos franj ou de Zinki, tinha se deixado conquistar pela doce firmeza de um príncipe que prometia ao mes­mo tempo garantir sua segurança e respeitar sua independência. Ela não o lamentará e viverá, graças a ele e a seus sucessores, um dos períodos mais gloriosos de sua história.

[...]

Pela primeira vez desde o início das guerras francas, as duas grandes me­trópoles sírias, Alepo e Damasco, estão reunidas em um mesmo governo, sob a autoridade de um príncipe de 37 anos, firmemente decidido a se con­sagrar à luta contra a ocupação.” (Ibid, p. 145-147)

Embora a conquista de Damasco abrisse caminho para o lançamento de campanhas contra o Principado de Antioquia e o Reino de Jerusalém, aos quais Nur ad-Din já havia tomado um tanto de enclaves nos anos anteriores e agora lançava campanhas para tomar, punir ou destruir outros mais. Entre seus inúmeros sucessos constam a captura do Grão-Mestre dos Templários, Bertrand de Roquefort, durante o cerco à fortaleza de Paneas, controlada pela Ordem dos Cavaleiros Hospitalários. Apesar de todas essas derrotas, os Estados Cruzados estavam longe de se mostrar fracos, controlando Asquelon (tomada por cavaleiros reminiscentes da Segunda Cruzada) e ameaçando todo o Egito Fatímida. O adoecimento de Nur ad-Din, iniciado em 1157 e que o deixaria incapacitado por cerca de um ano e meio, afrouxou a pressão que o unionista sunita exercia sobre o Levante, permitindo alguma reorganização dos Estados Cruzados.

Embora o Principado de Antioquia tivesse sido usurpado de muitos de seus enclaves, Nur ad-Din havia sido cuidadoso o suficiente para não ameaçar a capital, Antioquia.

O enfraquecimento do Principado permitiu que o Império Bizantino pudesse fazer valer sua suserania naquele Estado Cruzado; afinal, pelo menos teoricamente o Principado de Antioquia era, por muito tempo, um vassalo nominal dos gregos. Naquela época, o Império Romano Oriental não era um império decadente ao qual estamos acostumados a pensar. Isto podia ser válido para o passado, e até para épocas mais no futuro, mas nos tempos de Nur ad-Din o Império Bizantina era uma formidável máquina de guerra: estamos no auge da Dinastia Comnena e de seu projeto de restauração imperial. Mesmo com toda a sua habilidade, Nur ad-Din não queria começar uma guerra em duas frentes e estava ciente das implicações que os bizantinos mantinham relação a Antióquia, chamada pelos rum – “romanos” em árabe – de Teópolis, literalmente “Cidade de Deus”.

“Em 1159, quando ele apenas começava a se restabelecer, fica sabendo que um poderoso exército bizantino, comandado pelo imperador Manuel, filho e sucessor de Jean Comneno, está reunido ao norte da Síria. Nureddin se apressa em enviar embaixadores ao imperador para lhe desejar as boas-vindas. Recebendo-os, o basileu, homem majestoso, sábio, apaixona­do pela medicina, proclama sua intenção de manter com seu mestre as relações mais amistosas possíveis. Assegura que foi à Síria unicamente para in­fligir uma lição aos mestres de Antioquia. Lembremo-nos de que o pai de Manuel tinha vindo, com as mesmas razões, 22 anos antes, o que não o ha­via impedido de se aliar com os ocidentais contra os muçulmanos. Entretan­to, os emissários de Nureddin não põem em dúvida a palavra do basileu. Eles sabem da raiva que os rum sentem cada vez que é mencionado o no­ mede Raymond de Châtillon, esse cavaleiro que desde 1153 preside aos des­tinos do principado de Antioquia, um homem brutal, arrogante, cínico e desprezível, que simbolizará um dia para os árabes toda a maleficência dos franj, e que Saladino jurará matar com as próprias mãos!

O príncipe Renaud, o “brins Arnat” dos cronistas, chegou ao Orien­te em 1147 com a mentalidade já anacrônica dos primeiros invasores seden­tos de ouro, sangue e conquista. Pouco depois da morte de Raymond de An­tioquia, ele conseguiu seduzir sua viúva, depois esposá-la, tornando-se assim o senhor da cidade. Muito rapidamente, suas exações o tornaram odioso, não somente a seus vizinhos alepinos, mas também aos rum e a seus pró­prios súditos. Em 1156, sob o pretexto de haver Manuel recusado lhe pagar um imposto prometido, ele decide vingar-se lançando um pelotão de ata­que contra a ilha bizantina de Chipre, e pede ao patriarca de Antioquia pa­ra financiar a expedição. Como o prelado se mostrava titubeante, Renaud aprisionou-o, torturando-o depois; após ter untado suas feridas com mel, o acorrentou e o expôs ao sol um dia inteiro, deixando milhares de insetos se apoderar de seu corpo vivo.

Evidentemente, o patriarca acabou abrindo seus cofres e o príncipe, tendo reunido uma frota, desembarcou nas costas da ilha mediterrânea, es­magando sem dificuldade a pequena guarnição bizantina, e deixando seus homens na ilha. Do que aconteceu nessa primavera de 1156, Chipre nunca se restabelecerá. De norte a sul, todos os campos cultivados foram sistema­ticamente devastados, os rebanhos massacrados, os palácios, as igrejas e os conventos foram saqueados, ao passo que tudo aquilo que não podia ser leva­do era destruído no mesmo local ou incendiado. As mulheres foram viola­das, os velhos e as crianças tiveram a garganta cortada, os senhores ricos fo­ram levados como reféns e os pobres decapitados. Antes de partir carrega­do com os despojos, Renaud ainda ordenou que reunissem todos os padres e monges gregos, a quem mandou cortar o nariz, antes de enviá-los mutila­ dos a Constantinopla.

Manuel deve responder. Mas na qualidade de herdeiro dos imperado­res romanos, ele não o pode fazer com um mero e repentino ataque. O que ele procura é restabelecer seu prestígio humilhando publicamente o cavaleiro-salteador de Antioquia. Renaud, que sabe que qualquer resistência é inú­til, decide pedir perdão, assim que é informado que o exército imperial es­tá a caminho da Síria. Combinando ora atitudes servis ora arrogância, ele se apresenta no acampamento de Manuel, descalço, vestido como um men­digo, e se joga ao chão diante do trono imperial.

Os embaixadores de Nureddin lá estão para assistir à cena. Eles vêem o “brins Arnat” deitado no pó aos pés do basileu, que, fingindo não o ter notado, continua tranquilamente conversando com os convidados, esperan­do vários minutos antes de dignar-se a lançar um olhar a seu adversário, in­dicando-lhe com um gesto condescendente para se levantar.

Renaud obterá o perdão, e assim poderá conservar seu principado, mas seu prestígio na Síria do Norte será para sempre ofuscado. No ano seguinte é, aliás, capturado pelos soldados de Alepo durante uma operação de saque que ele conduzia no norte da cidade, o que irá valer-lhe 16 anos de cativei­ro antes de reaparecer diante do cenário onde o destino o designa para de­sempenhar o mais execrável dos papéis.

Quanto a Manuel, sua autoridade, no dia seguinte ao dessa expedição não cessa de se reforçar. Ele consegue impor seu poderio tanto no principa­do franco de Antioquia quanto nos territórios turcos da Ásia Menor, dan­do de novo assim ao império um papel determinante nos negócios da Síria. Essa ressurgência da potência militar bizantina, a última da história, pertur­ba imediatamente os dados do conflito que opõe os árabes aos franj. A amea­ça constante que representam os rum em suas fronteiras impede Nureddin de se lançar no vasto empreendimento de reconquista que ele deseja. Co­mo, ao mesmo tempo, o poder do filho de Zinki proíbe aos franj qualquer veleidade de expansão, a situação na Síria se encontra de certo modo bloqueada.

Entretanto, como se as energias contidas dos árabes e dos franj procu­ rassem libertar-se de vez, eis que o peso da guerra vai deslocar-se em dire- ção a um novo teatro de operações: o Egito.” (Ibid, p. 148-150)

Graças aos arranjos diplomáticos de Nur ad-Din, Manuel movimentaria seus exércitos ao norte, contra o Sultanato Seljuque de Icônio, na Anatólia, que também seria atacado pelo potentado Zengi num outro fronte. Por volta desta época, ocorreria também a morte de Balduíno III, rei de Jerusalém, a quem apesar das hostilidades, Nur ad-Din mantinha um grande respeito; em consideração pela morte do formidável inimigo, o expansionista muçulmano estabeleceria uma postura de trégua com o reino de Jerusalém. O historiador franj Willian de Tiro assim registra a fala de Nur ad-Din: “Devemos nos solidarizar com sua dor e, com piedade, poupá-los, porque perderam um príncipe não visto hoje em nenhuma outra parte do mundo."

O Califado Fatímida, de religião muçulmana xiita ismaelita, sangrava com uma sucessão de califas jovens e inaptos e de vizires subversivos e gananciosos. Os cruzados já estavam cientes da imensa riqueza e recursos que fluíam pelo Egito, de forma que quem o controlasse consequentemente teria uma prevalência militar sobre todo o Oriente Próximo.

Uma campanha contra o Egito foi liderada pelo novo rei de Jerusalém, Amalrico I, valendo-se do pagamento de tributo ao qual o Califado havia falhado em pagar ao Reino de Jerusalém. Apesar do seu fracasso, a campanha alertou Nur ad-Din e o fez lançar uma campanha em resposta, buscando desviar a atenção franca do Egito. Eventualmente, as facções políticas do Califado Fatímida logo iriam se aliar cada uma com os agentes levantinos, ou com o potentado de Nur ad-Din ou com o Reino de Jerusalém, gerando uma série de guerras, contra-guerras, campanhas de rapina e invasões. Por volta de 1167, os católicos fizeram o feito hercúleo de ocupar temporariamente as metrópoles de Alexandria e do Cairo, tornando o Califado Fatímida um Estado Tributário do Reino de Jerusalém; a ameaça posada pela posição de Nur ad-Din, contudo, faria os francos recuarem de volta aos seus territórios.

Se os francos quisessem que o Egito fosse controlado, era necessário um auxílio externo: o tipo de auxílio que só o Império Bizantino, sob a dinastia comnena, poderia prover. Em 1168, uma força conjunta do Reino de Jerusalém, comandada por Amalrico, e do Império Bizantino, por Manuel, forçando o califa fatímida da época a buscar auxílio de Nur ad-Adin, que foi capaz de fazer o exército cristão recuar. Dessa vez, Nur ad-Din tomou providencias para manter controle total do Egito, executando opositores no Califado e nomeando o tio de Saladino como vizir; mais tarde o próprio Saladino se tornaria vizir e, eventualmente, daria um golpe no califado xiita e iniciaria um novo vigor na campanha unionista de Nur ad-Din, desta vez reforçados com todos os recursos do Egito. Um último esforço conjunto franco-bizantino se lançaria contra o Egito, mas por conta de sua desorganização não produziria nenhum fruto.

Com a conquista do Egito, Nur ad-Din sentir-se-ia realizado, mas passaria seus últimos anos enfrentando turcomanos da Anatólia Oriental até morrer de febre, em 1174, aos 56 anos, por conta de uma infecção bucal. Os fundamentos da obra de Saladino, sem dúvidas, foram estabelecidos por Nur ad-Din, embora a história posterior tenha se creditado muito pouco pelas suas conquistas.

O cronista cristão William de Tiro o descreveria como “um poderoso perseguidor do nome cristão e da fé” ao mesmo tempo que o exaltava como “um príncipe justo, valente e sábio, e um homem religioso de acordo com as tradições da sua raça”. Embora Nur ad-Din fosse um exemplo ortodoxo de jihadista, isto não impedia o tratamento cortês e o ecumenismo com o cristianismo – mesmo o católico que se constituía como seu principal inimigo. O santuário de Saydnāyā, na Síria, era o arquétipo dessa curiosa relação: controlado pelos Cavaleiros Templários, o santuário dedicado a Maria era patrocinado pelo próprio Nur ad-Din, recebendo dele as doações de óleo para que a mesma nunca tivesse problemas com iluminação; neste santuário que envolvia os dois extremos confessionais do Oriente Próximo, cristãos e muçulmanos rezavam juntos, prática que os próprios templários permitiam em tantos outros sítios religiosos sob sua responsabilidade. Embora o Papado mais tardio condenaria solenemente tal prática (retirada apenas na onda ecumenista do Concílio Vaticano II, na década de 1960), pode ser um tanto difícil dizer com certeza o que a autoridade pontifica teria de tal ecumenismo; na Europa, é claro, os muçulmanos eram vistos como verdadeiros animais, alternando entre o paganismo e o satanismo, cuja existência nefasta era mais do que suficiente para justificar uma limpeza religiosa à ferro e fogo pelos soldados do Papa. No Outremer, porém, a convivência mostrou um lado tolerante – talvez até herético – que os francos do outro lado mar teriam dificuldades de entender claramente; e não entendiam, diga-se de passagem, conforme os episódios históricos desse estranhamento revelam.

Para além da esfera religiosa, ainda convêm destacar o legado cultural que Nur ad-Din desempenhou na Europa Ocidental, e mais especialmente na França: a arte da heráldica e a flor-de-lis, símbolo nacional da França e brasão-de-armas do reino francês. Embora alguns levantem dúvidas quanto a esta transmissão cultural, a escritura Diana Darke foi sua defensora mais vocal:

“Diversos aspectos da instituição da cavalaria desenvolveram-se nas planícies da Síria. O crescente uso de brasões heráldicos foi devido ao contato com os cavaleiros muçulmanos. A água de duas cabeças, a flor-de-lis e as duas chaves podem ser citados como elementos da heráldica muçulmana deste período[...] A maioria dos mamelucos tinha nomes de animais, cujas imagens correspondentes eles gravavam em seus escudos. Governantes mamelucos tinham corpos militares diferentes, o que deu impulso à prática de se distinguir pelos desenhos heráldicos em escudos, bandeiras, distintivos e brasões. A insígnia de Baibars era um leão, tal qual a de Ibn Tulun antes dele, e a do sultão Barquq era a de um falcão. Na Europa os brasões apareceram de uma forma rudimentar no século XI, e o início da heráldica inglesa data da primeira parte do XII.’’

A água de duas cabeças aprecia em moedas de Sinjar cunhadas por Zengi, governante de Mosul, Alepo, Hama e Edessa (1127-46) que lutou contra os cruzados, mas o símbolo foi visto primeiramente na Suméria, de onde foi passado para os babilônios e hititas. Ele foi adotado pelos turcos seljúcidas quando se estabeleceram nas regiões hititas da Anatólia Central, e dos seljúcidas foi passado para Bizâncio, de onde chegou á Austria, Prússia e Rússia.

Ambos os símbolos reais da flor-de-lis francesa e o leão inglês – como vistos no plano de fundo da coroação do menino rei Henrique VI da Inglaterra como rei da França na Notre-Dame de Paris – eram usados como brasões em torneios de justa sarracenos nas planícies da Síria.

A flor-de-lis foi primeiramente conhecida na Assíria e tornou-se um elemento decorativo de arte muito difuso. A Enciclopédia Britânica diz que é um antigo símbolo de pureza, ‘’prontamente adotado pela Igreja Católica Romana para associar a santidade de Maria com eventos de significado espeital.’’ Ele foi encontrado num antigo selo cilíndrico de Ramsés III, assim como em decorações murais em Samarra e em fragmentos cerâmicos em Fustat, a primeira capital do Egito sob governo muçulmano. Ele está claramente relacionado com o motivo do trevo e também aparece em abundância no estuco esculpido do palácio omíada de Khirbat al-Mafjar perto de Jericó. Ele surgiu inicialmente como brasão do sultão zêngida Nur al-Di Ibn Zanki e em dois de seus monumentos em Damasco, notavelmente sobre o mihrab na sua Madrassa de Damasco construída em 1154-73. O estudioso alemão L.A. Mayer, em seu exaustivo estudo de dez anos sobre a heráldica sarracena, concluiu que a flor-de-lis, ‘’em sua forma heráldica verdadeira’’ no brasão da França, onde ela consiste em três folhas separadas que são ligadas no meio por uma faixa, deve ser de origem sarracena. Seu raciocínio consiste em que a forma pré-heráldica da flor-de-lis ocidental, os três elementos são conectados, crescendo para fora de um caule. A forma estabelecida da heráldica francesa, entretanto, como aparece no brasão de Luís VII, rei dos francos de 1137 à 1180, está da maneira sarracena com as três folhas separadas. Mayer também nos fala dos elmos mamelucos que comumente tinham a guarda nasal terminando em uma flor-de-lis.

Temos como ‘’azure’’ (o árabe para lapis-lazuli, lazaward) usados na heráldica também apontam para o elo entre a heráldica europeia e muçulmana. Hoje no mundo islâmico, apenas a estrela e o crescente, o leão e o sol restaram destes símbolos heráldicos mamelucos, provavelmente, na opinião de Hamilton Gibb, ex-professor laudiano de árabe em Oxford, porque não havia organização correspondente ao Colégio de Heráldica Européia para preservá-los com tal entusiasmo. Diferente do Ocidente, onde se conferia à heráldica posse de terras envolvendo serviço militar obrigatório, nenhuma grande importância era adicionada aos brasões sarracenos, eles não conferiam quaisquer privilégios especiais. Os cavaleiros sarracenos não utilizavam elmos de estilo ocidental com viseira facial completa que tornava a identificação do cavaleiro impossível sem seu símbolo. Este pode ser outro exemplo de onde a abordagem oriental era pessoal, baseada numa simples preferência, enquanto a abordagem ocidental preocupava-se em registrar o status e proteção legal.’’ (DARKE, 2009, p. 269-271)

Bibliografia:

MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Editora Brasiliense, 4ª ed. 1994.

RUNCIMAN, Steven. A History of the Crusades, Volume II: The Kingdom of Jerusalem and the Frankish East. Cambridge: Cambridge University Press, 1952.

TYERMAN, Christopher. God's War: A New History of the Crusades. Harvard University Press, 2006

SALLES, Bruno T. O Sultão que pagava o óleo da igreja, e as realidades das Cruzadas. História Islâmica, 1 de janeiro de 2021. Disponível em: <https://historiaislamica.com/pt/o-sultao-que-pagava-o-oleo-da-igreja-e-as-realidades-das-cruzadas/?fbclid=IwAR0ky8EXKSBjXWCnNMJ7UjZIHJQ4hP9Ra6ImmOso8VgqxOUrjf4X7EnYLN0>. Acesso em 6 de junho de 2021.

DARKE, Diana. Stealing from the Saracens: How Islamic Architecture Shaped Europe. Hurst Publishers, 2009.