Resumo

O legado do colonialismo continua a influenciar os estudos do Alcorão na academia euro-americana. Enquanto as terras muçulmanas não são mais diretamente colonizadas, o colonialismo intelectual continua a prevalecer ao privilegiar sistemas eurocêntricos de produção de conhecimento em detrimento e até exclusão de métodos de análise que se desenvolveram no mundo islâmico por mais de mil anos. Essa forma de hegemonia intelectual muitas vezes resulta em um reducionismo epistemológico multifacetado que nega a eficácia das ferramentas analíticas desenvolvidas pela tradição islâmica clássica. A suposta superioridade intelectual dos métodos analíticos euro-americanos tornou-se uma característica constitutiva e persistente dos estudos corânicos, influenciando todos os aspectos do campo. Sua persistência impede alguns estudiosos de encontrar, e muito menos de empregar, as ferramentas analíticas da tradição islâmica clássica e apresenta obstáculos para um discurso mais amplo na comunidade internacional de estudiosos do Alcorão. Reconhecer os obstáculos aos quais o colonialismo do conhecimento deu origem nos estudos corânicos pode nos ajudar a desenvolver abordagens mais inclusivas nas quais vários critérios de análise são incorporados e estudiosos de origens intelectuais variadas podem se engajar em um diálogo mais eficaz.

“Para controlar um povo, você deve primeiro controlar o que eles pensam sobre si mesmos e como eles consideram sua história e cultura. E quando seu conquistador faz você se envergonhar de sua cultura e de sua história, ele não precisa de prisões com muros nem correntes para prendê-lo.” – John Henrik Clarke.

Nos últimos quarenta anos, tem havido um crescente corpo literário que procura responder e combater as abordagens revisionistas do Alcorão que surgiram na academia euro-americana. Vários artigos em inglês e francês, bem como uma crescente biblioteca de livros em árabe e persa criticam o ataque percebido às tradições textuais do Islã e aos meios pelos quais os estudiosos muçulmanos trabalharam e analisaram o texto do Alcorão [1]. Muitas dessas obras expressam grande desconfiança em relação à erudição ocidental no que tange ao Alcorão. Essa atitude talvez seja melhor expressada no artigo frequentemente citado de Parvez Manzoor (1987, p. 39), “Method Against Truth: Orientalism and Qurʾanic Studies”, que começa assim,

O empreendimento orientalista dos estudos corânicos, quaisquer que sejam seus outros méritos e serviços, foi um projeto nascido do ressentimento, criado na frustração e nutrido pela vingança: o rancor dos poderosos pelos impotentes, a frustração dos “racionais” pelos “supersticiosos” e a vingança dos “ortodoxos” contra os “inconformistas”.

Reclamações semelhantes foram expressas mais recentemente por Muzaffar Iqbal em sua revisão crítica do Encyclopaedia of The Qurʾān, onde ele sustenta que, quando vista como um todo, a abordagem adotada em muitos artigos da Enciclopédia “nega, ignora ou considera irrelevante o fenômeno da revelação (waḥy) como entendida no Islã” (Iqbal 2008, p. 12). Da mesma forma, em sua análise da coletânea do Alcorão, The History of the Qur’anic Text, M.M. Al-Azami escreve: “A pesquisa orientalista transcende a mera subjetividade para se manifestar como dogma anti-islâmico” (al-Azami 2020, p. 373). Mansour, Iqbal e al-Azami abordam a maneira pela qual os paradigmas de pensamento na academia euro-americana levaram a uma apresentação truncada do Alcorão, das ciências corânicas e da tradição tafsīr, ou exegética. Neste artigo, procuro ir além dessas respostas, baseando-me em aspectos da teoria pós-colonial para desenvolver uma estrutura analítica dentro da qual seja possível visualizar o desenvolvimento dos estudos corânicos na academia euro-americana e contextualizar as queixas expressas por muitos estudiosos muçulmanos.

Grande parte da consternação expressa por estudiosos que criticam as abordagens ao Alcorão que surgiram de dentro da academia euro-americana surge do fato de que os estudos corânicos realizados em muitas partes do mundo islâmico são frequentemente ignorados nos estudos corânicos euro-americanos. A extensa pesquisa em árabe, persa, turco, indonésio e outros idiomas raramente é citada em trabalhos escritos nos idiomas europeus [2], e muitas das fontes que informaram a tradição islâmica por cerca de mil anos continuam a receber pouca ou nenhuma consideração no estudo acadêmico euro-americano do Alcorão. Como observam Behnam Sadeghi e Uwe Bergmann,

A quantidade de trabalho ainda a ser feito é grande, e os principais caminhos para embarcar nessa tarefa são claros. Agora está igualmente claro que trabalhos recentes no gênero de ficção histórica não ajudam em nada. Por “ficção histórica” refiro-me à obra de autores que, escorados junto à montanha de materiais na literatura primária e secundária muçulmana pré-moderna sobre as origens islâmicas, dizem que não há mais o que escalar, nada a aprender com a literatura, e que falam da escassez de evidências. Liberados da exigência de analisar criticamente a literatura, eles podem sonhar com narrativas históricas imaginativas enraizadas em evidências escassas ou irrelevantes, ou em alguns casos nenhuma evidência. Eles descartam a montanha como o produto ilusório de dogma religioso ou de conspirações em todo o império ou amnésia ou engano em massa, sem perceber que as fontes literárias nem sempre precisam ser consideradas como verdadeiras para provar um ponto; ou simplesmente ignoram a massa de evidências em silêncio (Sadeghi e Bergmann 2010, p. 416).

O “silêncio” ao qual Sadeghi e Bergmann se referem surge desde o início dos estudos euro-americanos sobre o Alcorão com Abraham Geiger (m. 1874), Gustav Weil (m. 1889), Aloys Sprenger (m. 1893) e Theodore Nöldeke (m. 1930). Os estudos corânicos dentro da academia euro-americana foram construídos em grande parte sobre uma base que desconsidera muitas contribuições metodológicas e factuais das ciências corânicas e das tradições de tafsīr do Islã clássico. Encapsulando essa tendência, Bruce Fudge (2006, p. 127) observa: “Os primeiros estudos do Islã no Ocidente foram dominados pela investigação filológica e uma ênfase nas origens que favoreciam uma interpretação europeia do Alcorão acima do que os próprios muçulmanos tinham a dizer.”.

 

Favorecer as abordagens e interpretações euro-americanas do Alcorão permeia o campo a medida em que muitos dos estudos renomados do Alcorão na tradição acadêmica ocidental falharam em levar em conta o desenvolvimento cumulativo do conhecimento que está no centro do empreendimento acadêmico. Mesmo a evidência factual que complicaria as teorias contemporâneas é muitas vezes minimizada ou ignorada deliberadamente. Por exemplo, Harald Motzki (2001, p. 21) demonstrou que quando John Wansbrough foi confrontado por coleções de hadith que complicaram sua teoria de que as tradições sobre a compilação do Alcorão não surgiram até o terceiro século islâmico, Wansbrough optou por reescrever a história afirmando que as coleções em que essas tradições ocorrem “não eram realmente compilações de seus supostos autores, mas de seus alunos ou de gerações posteriores”, ao invés de modificar suas próprias teorias [3]. Mais recentemente, Christoph Luxenberg (2007) fez uma releitura mais audaciosa da história textual islâmica, que exige que os fundamentos da própria língua árabe não fossem conhecidos pelos árabes, mas apenas descobertos por Luxenberg (com a ajuda de Alphonse Mingana e Gunter Lulling antes dele) no final do século XX. A leitura de Luxenberg o leva a declarar que “todo o empreendimento acadêmico do Islã, amplamente baseado na confiabilidade da tradição oral, é infundado” (Neuwirth 2003, pp. 9-10). Em ambos os exemplos, a teoria exige a exclusão e reconfiguração de grandes camadas de dados históricos para se adequar a uma narrativa preconcebida. Um exemplo mais recente de tais tendências revisionistas ocorre em David Powers (2011), Muhammad is Not the Father of any of Your Men, que ao teorizar a amnésia linguística internacional e coletiva para impulsionar uma teoria de falsificação do Alcorão, exige que ignoremos princípios básicos de paleografia, linguística e historiografia [4]. Cada uma dessas obras exibe um exemplo extremo de uma tendência predominante na academia euro-americana de declarar inválidas as estruturas interpretativas que surgem de dentro da tradição islâmica, na intenção de arrogar aos autores da tradição euro-americana a autoridade primária ou mesmo única para a produção teórica.

Dentro dessa estrutura de estudos corânicos na academia euro-americana, ainda é necessário subscrever uma hierarquia epistemológica universal na qual as abordagens eurocêntricas seculares do texto têm um lugar de destaque [5]. Tal privilégio garante que as abordagens muçulmanas ao texto sejam relegadas ao status de “meramente informativas”. Elas são vistas como eficazes quando servem aos propósitos, e podem ser incorporadas, a uma hierarquia epistemológica euro-americana, mas por si mesmas não são permitidas a gerar discursos epistêmicos alternativos, muito menos questionar os fundamentos ideológicos da academia euro-americana que extraem seletivamente conteúdos de suas fontes. Como escreve Sajjad Rizvi (2021, p. 124), “para ser mais direto, não se podia confiar no nativo ingênuo quando se tratava de registrar a formação histórica da tradição, ou dos arcabouços linguísticos necessários para decifrá-la, ou mesmo a habilidade hermenêutica necessária para dar sentido às escrituras”. Nessa configuração, rejeita-se de imediato a possibilidade do que Walter Mignolo (2012, p. ix) chama de “lugares teóricos diversos e legítimos de enunciação”, em que múltiplos arcabouços epistemológicos de diferentes paradigmas culturais se engajam em um diálogo produtivo [6].

Em muitos casos, as abordagens euro-americanas do Alcorão têm desconsiderado a tradição dos comentários [corânicos], as ciências do Alcorão (ulum al-quran), a literatura de ḥadith e a literatura da sira como um princípio metodológico [7]. A suposição consistente de que o “verdadeiro” estudo acadêmico não pode e não deve confiar na tradição de comentários clássicos para o estudo do Alcorão muitas vezes afirma estar fundamentada na busca pela “precisão histórica”. Para atingir esse objetivo alardeado, muitas das fontes são descartadas. Como Andrew Rippin escreve sobre a tradição de comentários islâmicos, “A história real no sentido de ‘o que realmente aconteceu’ tornou-se totalmente integrada à interpretação posterior e é praticamente, se não totalmente inextricável dela” (Rippin 2001, p. 156). Seguindo a liderança de Wansbrough, Rippin afirma que o material fornecido pelo tafsir e pela sira não fornece registros históricos, mas simplesmente “os registros existenciais do pensamento e da fé das gerações posteriores” (Ibid). Como Angelika Neuwirth observa a respeito daqueles que adotam essa abordagem revisionista,

Constrangidos por seu preconceito revisionista, esses estudiosos assumem que a realidade histórica é tão profundamente distorcida que, hoje, é impossível descobrir qualquer informação exata sobre o início da história das escrituras islâmicas. Assim, não apenas a ideia de que uma comunidade inicial emergiu do Hijaz foi atribuída ao reino da lenda piedosa, mas qualquer tentativa de realizar uma revisão microestrutural do texto e da história de seu crescimento foi considerada sem sentido e abandonada (Neuwirth, 2014, p.10).

Esse abandono metodológico da tradição de tafsir, das ciências corânicas e da tradição historiográfica islâmica resultou em abordagens ao texto corânico que, como Feras Hamza observa, “quase completamente desalojou o uso do tafsir para reconstruir o contexto histórico do texto corânico” (Hamza 2014, p. 21).

Essas observações se aplicam igualmente a investigações filológicas e etimológicas que muitas vezes ignoram fontes primárias da tradição islâmica em um esforço para recuperar o significado “original” de uma palavra de outras línguas do Oriente Próximo. Tais abordagens ao material fornecido pela tradição clássica são metodologicamente e ideologicamente problemáticas. No que diz respeito às deficiências metodológicas desta forma de investigação etimológica para os estudos corânicos, Tohshihiko Izutsu (2002, p. 17) escreve que “A etimologia, mesmo quando temos a sorte de conhecê-la, só pode nos fornecer uma pista sobre o significado ‘básico’ de uma palavra. E, devemos lembrar, a etimologia permanece em muitos casos um simples trabalho de adivinhação e muitas vezes um mistério insolúvel.”. A abordagem fragmentada de tal análise etimológica leva a uma imagem também fragmentada do Alcorão. Como Angelika Neuwirth (2014, p. 35) observa: “Em última análise, com base na literatura filológica ocidental sobre o Alcorão, o corpus do Alcorão parece ao olho destreinado consistir em um conjunto amorfo de versos sem lógica própria reconhecível.” Walid Saleh (2010b, p. 667) é mais enfático quando observa que, desde que o estudo acadêmico sério do Islã começou na academia euro-americana no século XIX, muitos estudiosos ocidentais operaram dentro de uma estrutura que apresenta o Alcorão como um “miscelânea díspar de um livro, derivado no nível léxico, caótico no nível da composição e, em última análise, fascinante apenas na medida em que nunca seremos capazes de explicar seu poder paradoxal de prender a atenção dos muçulmanos ignorantes”. Incorporar outros materiais do ambiente do Oriente Próximo da antiguidade tardia é sem dúvida valioso para entender o ambiente em que o Alcorão tomou forma, mas ignorar as fontes islâmicas para análises etimológicas e filológicas revela vieses ideológicos, já que a tradição tafsir clássica tem sido desde o início “profundamente dedicada à recuperação do sentido, no nível básico, da significância gramatical e lexicográfica do Alcorão” (Zadeh 2015, p. 39).

A aversão metodológica à incorporação de fontes primárias inevitavelmente leva à pergunta: “Se não podemos partir do começo, então por onde devemos iniciar?” Muitos estudos acadêmicos euro-americanos sobre o Alcorão começam com a suposição de que um contexto histórico, e de fato árabe, para o Alcorão, não pode ser recuperado nas fontes primárias, pois elas estão profundamente manchadas por histórias piedosas e adornos políticos. Nesse sentido, Gabriel Said Reynolds (2010, p. 13) argumenta, “que o Alcorão – pelo menos de uma perspectiva crítica – não deve ser lido em diálogo com o que veio depois dele (tafsir), mas com o que veio antes dele (literatura bíblica)." Reynolds ridiculariza o uso de tafsir por estudiosos como Watt, Neuwirth e Abdel Haleem. Então, com base nas hipóteses de Burton (1977, p. 228), que postulou que se alguém pode imaginar uma motivação teológica para um relato, o relato não pode ser historicamente verdadeiro, Reynolds conclui que os relatos históricos fornecidos pelos comentaristas

pode ser um guia adequado para uma leitura piedosa do Alcorão. Mas para o estudioso crítico eles deveriam sugerir que tafsir é uma conquista literária notável a ser apreciada de forma independente. Essas tradições de tafsir não preservam o antigo significado do Alcorão, e insistir no contrário é um desserviço tanto para o tafsir quanto para o Alcorão (Reynolds, 2010, p. 19).

Alguém pode indagar-se como seria um desserviço aos estudiosos dos comentários clássicos alegar que a história e a filologia que eles procuraram determinar e preservar devem ser reduzidas a “realizações literárias” que de fato não servem para preservar e transmitir a antiga tradição do Alcorão. ou significado “original”. Dados os desenvolvimentos mais recentes no campo, também é surpreendente que alguém cite Burton em tais contextos. Como demonstraram Behnam Sadeghi e Uwe Bergmann, a tradição manuscrita – a evidência material mais objetiva que temos – indica que a tese de Burton sobre a compilação do Alcorão durante a vida do Profeta não é apoiada pela evidência material disponível:

Evidências manuscritas agora corroboram relatórios pré-modernos sobre a existência de códices dos Companheiros, tendo diferentes ordenações de sura e, até certo ponto, diferenças em suas essências verbais. Conclusivamente refutada é a teoria de John Burton de que todos esses relatos eram ficções pós-uthmânicas destinadas a "contrariar, elucidar ou mesmo evitar o texto de Uthman".

Como Rippin, Wansbrough, Mingana e outros antes dele, Reynolds propõe que a autoridade para interpretar o texto não está mais dentro da tradição islâmica clássica e que nunca realmente esteve, porque essa tradição permanece putativa na melhor das hipóteses, e suas metodologias são epistemicamente inferiores às metodologias do moderno estudioso euro-americano. Como observa Travis Zadeh, para essas metodologias críticas históricas revisionistas, “o poder da crítica histórica geralmente é avançado em oposição direta ao que é necessariamente constituído como uma tradição interpretativa intelectualmente debilitada e teologicamente não confiável” (Zadeh 2015, p. 340).

Essa maneira de descartar as tradições acadêmicas islâmicas passadas e presentes sem ter tido o trabalho de avaliá-las se baseia na cartografia epistemológica da academia moderna, uma cartografia que resulta das definições particulares originárias da civilização euro-americana. Fundada sobre o falso universal do “homem ocidental”, esta forma de totalitarismo intelectual eurocêntrico se supõe ter o direito de definir a maneira pela qual todos os modos de conhecimento são avaliados e subliminarmente mapeados em relação uns aos outros. Como observa Boaventura de Sousa Santos, esta cartografia epistemológica traça primeiro uma linha visível que separa as várias epistemologias aceitas pelo pensamento moderno, com a hard science colocada no topo. Depois, há uma “linha invisível abissal que separa, de um lado, ciência, filosofia e teologia, de outro, saberes tornados incomensuráveis ​​e incompreensíveis por não atenderem nem aos verdadeiros métodos científicos nem aos seus contestadores reconhecidos no âmbito da filosofia e da teologia” (de Sousa Santos 2007, p. 47). Tudo o que está do outro lado da linha não é considerado conhecimento de verdade, mas relegado ao domínio das “crenças, opiniões, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que no máximo podem se tornar objetos ou matérias-primas para a investigação científica” (Ibid, 47), ou no caso dos estudos corânicos, investigação histórica e filológica. Na abordagem abissal identificada por Sousa Santos, o tafsir e as ciências corânicas são consideradas um objeto digno de investigação histórica e literária, mas não são considerados como fornecedores de um material útil para o verdadeiro estudo do texto corânico. A cartografia eurocêntrica do conhecimento inerente a essa abordagem produz uma enorme divisão entre a maioria daqueles que pesquisam o texto no período contemporâneo e que continuam a se engajar na tradição escolástica islâmica, e a maioria daqueles que estudam o texto corânico em universidades ocidentais e ocidentalizadas dedicadas a várias abordagens que permanecem informadas por suposições seculares sobre as origens e a natureza do texto. Para estabelecer uma voz de autoridade, aqueles investidos em abordagens euro-americanas do texto se engajam na “negação radical da presença” de outras abordagens epistemológicas (Ibid, 48).

Aos olhos daqueles de outras disciplinas dentro da moderna academia euro-americana, tal negação parece lógica, porque se baseia em pressupostos aos quais fomos aculturados ou nos quais fomos “educados”. O resultado é que as abordagens que se originam na academia euro-americana são aceitas como as abordagens “civilizadas” ou “iluminadas” do texto, enquanto as abordagens empregadas na tradição comentarista clássica, ou que incorporam aspectos dela, ou mesmo que mantêm uma conexão criativa com ela, são vistas como inerentemente falhas, uma vez que se fundamentam em epistemologias alternativas cuja legitimidade é denunciada a priori por causa da posição arraigada que surge do que Boaventura de Sousa Santos chama de “reino de crenças e comportamentos incompreensíveis que de forma alguma pode ser considerado conhecimento, seja verdadeiro ou falso” (Ibid, 51). No caso dos estudos corânicos, evidências historiográficas, lexicográficas, filológicas ou arqueológicas que foram citadas para apoiar posições de crença e argumentos teológicos são descartadas porque se supõe que tenham sido criadas para apoiar essas posições e argumentos. Posições teológicas são assim tornadas não cognitivas, isto é, elas não podem ser o resultado de processos de pensamento racionais objetivos semelhantes aos do estudioso moderno. Qualquer evidência usada para apoiá-las é, portanto, considerada uma invenção, como no exemplo de Burton citado acima. Aqui, os processos de pensamento dos estudiosos muçulmanos clássicos e seus equivalentes modernos são retratados como atrasados; supõe-se que eles não souberam tirar conclusões a partir de evidências e que, portanto, produziram evidências para apoiar suas conclusões. A partir dessa perspectiva, qualquer evidência historiográfica, lexicográfica, filológica ou arqueológica que tenha sido citada para apoiar uma posição teológica não pode deixar de ter sido outra coisa senão criada para apoiar essa posição teológica. Como resultado dessa abordagem abissal dos estudos corânicos, uma tradição acadêmica que se estende por mais de mil anos e continua no período contemporâneo é descartada como “leituras piedosas” e apresentada como inerentemente acrítica.

Um dos meios centrais de apoiar a premissa da relativa inutilidade e irrelevância da tradição acadêmica islâmica para os acadêmicos críticos é apresentar a falta de unanimidade em relação a certos aspectos do Alcorão, como as letras separadas (al-muqattaat) no início de 29 suratas, ou capítulos, as ocasiões de revelação (asbab al-nuzul), e várias palavras do Alcorão, como evidência de que “mesmo os primeiros mufassirun [exegetas] são incapazes de entender os elementos básicos do Alcorão” (Reynolds 2010, p. 19) e que “quando os mufassirun começaram seu trabalho, eles estavam lidando com um texto que era fundamentalmente desconhecido para eles” (Ibid, 21). Lawrence Conrad exemplifica essa linha de pensamento quando escreve:

Mesmo palavras que teriam sido de grande e imediata importância nos dias do próprio Muhammad são discutidas e adivinhadas, às vezes em grande extensão e sem um resultado satisfatório. Poderíamos esperar que as comparações do trabalho realizado em diferentes regiões mostrassem que os estudiosos do ijaz tinham um histórico melhor em chegar a soluções prováveis ou convincentes, uma vez que seus próprios antepassados, os primeiros muçulmanos, teriam conhecido a verdade do assunto e transmitido através de seus descendentes. Mas este não é o caso. A confusão e a incerteza parecem ser a regra, e no centro de tudo está um texto escrito em que as anomalias textuais não puderam ser resolvidas, e para o qual a tradição oral não ofereceu ajuda e para o qual o contexto esclarecedor era desconhecido (Conrad, 2007, p.13).

Arthur Jeffrey leva esse viés epistêmico até os primeiros dias do Islã, propondo que o próprio Muhammad não sabia realmente o que estava dizendo:

Tem sido observado com frequência que o Profeta tinha uma propensão para palavras estranhas e misteriosas, embora frequentemente ele mesmo não tivesse entendido corretamente seu significado, como se vê em casos como furqan e sakina. Às vezes ele parece até ter inventado palavras, como ghassaq, tasnim e salsabil (Jeffrey, 2007, p.39).

A evidência para tais conclusões são os debates entre os mufassirun. Diferenças de opinião que na academia euro-americana seriam vistas como evidência de debates acadêmicos e uma rica atmosfera intelectual são retratadas como evidência de confusão e incerteza e, portanto, ignorância. Como Talal Asad (2009, p. 22) observa, tais caracterizações são centrais para a representação acadêmica euro-americana de “tradição”, em que “o argumento é geralmente representado como um sintoma da 'tradição em crise', na suposição de que ' a tradição "normal" exclui o raciocínio da mesma forma que exige conformidade irrefletida”.

Com base nessa cartografia epistemológica abissal em que a “tradição” é relegada ao domínio da “conformidade impensada”, apenas aqueles que empregam formas de análise originários da moderna academia euro-americana são considerados capazes de ter alguma discordância fundamentada. Alguns estudiosos contemporâneos chegam ao ponto de concluir que “os estudiosos de hoje podem, com alguma justificativa, sentir-se mais qualificados do que os mufassirun para estudar o significado original das passagens do Alcorão” (Reynolds 2010, p. 22). Isso representa um modo de estudos em que o estudioso ocidental é, como Linda Tuhiwai Smith observa, apresentado como o sujeito cognoscente e o estudioso oriental é apresentado como o objeto conhecido (Smith 2012). Ao primeiro é dado o poder de definir o segundo, e ao segundo só é admitida a capacidade de conhecer a si mesmo por meio das categorias determinadas pelo primeiro [8].

O que se propõe não é meramente um processo de divisão dos estudos corânicos, estudos de tafsir e o estudo das ciências corânicas (ulum al-quran) em diferentes disciplinas. Pelo contrário, é um processo de declarar o tafsīr e as ciências do Alcorão como ferramentas ineficazes e ilegítimas para o estudo do texto do Alcorão [9]. Esta é uma forma de “colonização epistêmica” em que metodologias ou formas de conhecimento que apresentam alternativas viáveis ​​às epistemologias eurocêntricas são empobrecidas e marginalizadas, ou mesmo jogadas em “guetos”, enquanto outras formas de conhecimento são obliteradas ou restringidas até que qualquer desafio epistêmico que elas possam representar às epistemologias dominantes sejam confortavelmente confinadas à condição de artefatos a serem exibidos em museus como exemplos do chamado conhecimento “tradicional” (Nygren 1999, pp. 267-288). Aqueles que, então, buscam reafirmar a primazia ou mesmo a validade dos modos de interpretação pelos quais os povos não-ocidentais entendem a si mesmos, suas histórias e seus textos, e através dos quais se apresentam aos outros, são chamados de “ingênuos” e rotulados como “apologistas”, “essencialistas”, “tradicionalistas”, “românticos”, ou qualquer que seja o termo depreciativo do momento.

Tais formas de colonização epistêmica dentro dos estudos corânicos levaram a uma linha de investigação em que apenas teorias de origem euro-americana e muitas especulações que não chegam ao nível da teoria são levadas a sério, enquanto as abordagens nativas do texto são estudadas como artefatos culturais que não têm mais a capacidade de gerar compreensão do próprio texto do Alcorão. Supõe-se que elas tenham sido deslocadas e substituídas por abordagens críticas “mais sofisticadas”. As epistemologias nativas são aqui reduzidas à categoria de artefatos históricos, sem o reconhecimento de que as abordagens acadêmicas modernas do texto são tão, se não mais, situadas histórica e ideologicamente [10].

Tons dos vieses epistêmicos perpetuados pela incapacidade e recusa de situar as contribuições fundamentais dos comentaristas clássicos em relação aos paradigmas originários da academia euro-americana podem ser encontrados em todo o campo dos estudos corânicos [11]. Mesmo os estudiosos que demonstram grande apreço pelo texto do Alcorão lamentam o uso de tafsir dentro do campo. Discutindo a propensão de alguns estudiosos de empregar o tafsir dentro dos Estudos do Alcorão ou de “combinar o texto do Alcorão e os comentários do Alcorão para formar um único objeto de estudo”, Angelika Neuwirth escreve: “O fato de que uma abordagem análoga nos estudos bíblicos (por exemplo, ler o A Bíblia hebraica junto com o Midrash ou a leitura do Novo Testamento através da ótica dos pais da igreja primitiva) seria desaprovada em contextos acadêmicos, mostra claramente que status exótico tem sido, até agora, atribuído ao Alcorão” (Neuwirth 2014, página 38). Em outro artigo, Neuwirth escreve:

Deixe-me enfatizar que uma marginalização comparável do próprio texto em favor de sua exegese seria inconcebível em estudos bíblicos sérios. Em nenhum lugar da academia atual os estudos bíblicos críticos se baseiam em tradições exegéticas. Nem os textos da Bíblia hebraica são lidos através das lentes das discussões sobre a Midrash, nem o Novo Testamento é lido com referência aos tratados dos Pais da Igreja. Em ambos os campos de estudos bíblicos, unidades individuais dos textos bíblicos são contextualizadas com os escritos e tradições correntes no meio de onde surgiram (Neuwirth 2007, p.116).

Em vez de se basear em uma análise das tradições textuais e interpretativas do Alcorão para demonstrar porquê combinar as duas é problemático, esse argumento apela à tradição dos estudos bíblicos e a postula como regra. A afirmação de Neuwirth baseia-se na premissa de que as tradições textuais e as tradições exegéticas da tradição bíblica e da tradição corânica são semelhantes. No entanto, metodologias muito diferentes devem ser empregadas para lidar com diferentes conjuntos de problemas, e o corpus exegético e acadêmico mais amplo de cada tradição deve ser considerado por si só. Embora tanto a Bíblia quanto o Alcorão surjam no meio do Oriente Próximo, a história da composição, compilação, recepção e transmissão da Bíblia e do Alcorão difere significativamente, assim como a natureza dos estudos clássicos nas respectivas tradições. A Bíblia é uma coletânea de livros de muitos autores diferentes compilados ao longo de séculos e seu processo de canonização permanece “apenas vagamente compreendido” (Brettler 2004, p. 2072). Os primeiros manuscritos existentes das Escrituras Hebraicas datam de mais de mil anos após a época em que a tradição afirma que foram compostos pela primeira vez. Em contraste, os estudos mais recentes indicam que o Alcorão é um único livro e que foi compilado e canonizado dentro de cem anos do momento em que sua composição teria começado (610 EC) [12]. Além disso, a mais extensa análise textual científica do Alcorão até hoje, uma análise em que o texto é submetido a rigorosas análises estilométricas, estilísticas e estatísticas de computador, revela que o Alcorão apresenta um alto grau de coerência, indicando que “o estilo respalda a hipótese de um autor” (Sadeghi 2011, p. 288). Tais descobertas demonstram que, enquanto os estudos do Alcorão no contexto euro-americano se envolveram em extensa especulação sobre a origem e autoria do texto corânico, a tradição islâmica clássica, ao tratar o Alcorão como um texto coerente de um único autor, esteve muito mais perto de examinar o texto como surgiu dentro de seu contexto histórico original.

Atitudes depreciativas em relação às formas de análise corânica que se baseiam e incorporam a tradição islâmica clássica derivam de uma percepção de longa data dos estudos corânicos como uma extensão ou subconjunto de estudos bíblicos que deve seguir muitas das mesmas metodologias e princípios. Essa abordagem assume que as histórias dos textos bíblicos e corânicos são semelhantes e que a relação entre a tradição exegética e textual na tradição islâmica devem espelhar a das tradições judaica e cristã. De uma perspectiva, essa alegação é uma variação secular da mentira polêmica de que o Islã é principalmente, se não inteiramente, derivado das fés abraâmicas precedentes. No entanto, uma das diferenças fundamentais entre as tradições islâmica, cristã e judaica é que uma parte central da tradição exegética islâmica desde seu início tem sido a proveniência histórica de seu texto. Assim, já existe uma tradição “crítica histórica” que tenta avaliar o contexto e a precedência do texto. Os exegetas muçulmanos reconheceram desde o início que “os textos têm contextos” e devem ser entendidos de acordo com esses contextos. Como Emran El-Badawi observa, “O gênero a respeito das ‘ocasiões da revelação’ (asbab al-nuzal) apoia a noção de que os primeiros muçulmanos perceberam que a revelação foi entregue através de contextos históricos” (El-Badawi 2014, p. 44). Nos primeiros séculos do Islã, estudiosos muçulmanos realizaram análises detalhadas de manuscritos em um esforço para identificar a forma original do texto do Alcorão [13]. Esse nível de consciência histórica detalhada não se manifesta da mesma maneira nas primeiras tradições judaica e cristã. Consequentemente, o argumento de que os estudos corânicos não devem empregar as ferramentas das ciências corânicas e trabalhar com a tradição de comentários corânicos e seus materiais auxiliares deve ser entendido como sendo completamente distinto do argumento de que os estudos bíblicos não devem trabalhar com a tradição comentarista bíblica. Como Zadeh observa: “Também podemos querer questionar até que ponto os estudos corânicos devem emular os métodos e teorias dos biblistas. Pois enquanto o conjunto de textos se sobrepõe de maneiras importantes e óbvias, existem diferenças significativas nas histórias reais que cercam os textos e suas respectivas comunidades interpretativas” (Zadeh 2015, p. 340).

Este processo de retirar os métodos acadêmicos que são nativos ao objeto, povos, textos ou civilizações em estudo não se limita aos estudos corânicos. É uma suposição subjacente da moderna academia euro-americana que as epistemologias não-ocidentais são adequadas para serem objeto de investigação ou análise, mas que não são adequadas para serem as ferramentas de análise através das quais podemos entender textos e o mundo, ou através do qual podemos até analisar as epistemologias eurocêntricas dominantes. Suposições sobre a inferioridade epistêmica e heurística de metodologias de origem não-ocidental são particularmente problemáticas no campo dos estudos corânicos, já que historicamente existem dezenas de milhares de estudos que estabelecem diferentes abordagens epistêmicas do texto e internacionalmente há muito mais estudiosos do Alcorão que ainda empregam metodologias fundamentadas ou conectadas à tradição islâmica clássica do que há estudiosos que empregam metodologias que derivam de modelos euro-americanos [14]. No entanto, qualquer orientação epistêmica que não deriva da(s) orientação(ões) do modelo ocidentalcêntrico é declarada por um grande contingente de estudiosos euro-americanos, pelo qual me refiro a todos os estudos que adotam suas premissas subjacentes, independentemente da origem geográfica, como sendo inferior ou mesmo inválida.

Apesar de sua natureza variada e policêntrica, a tradição tafsir é mais frequentemente retratada dentro da academia euro-americana como uma tradição monolítica. Mas pode-se observar com a mesma facilidade que os métodos da autoproclamada “alta crítica” defendidos na academia moderna são baseados e perpetuam um estreito canhão epistemológico. Essa tendência à estenose epistêmica no estudo euro-americano do Alcorão reflete o processo geral de limitação desse canhão na academia ocidental. A partir do século XV, a construção do sistema do mundo moderno “repousou-se em múltiplas 'destruições criativas', muitas vezes realizadas em nome de projetos 'civilizadores', libertadores ou emancipatórios, que visavam reduzir a compreensão do mundo à lógica da epistemologia ocidental” (de Sousa Santos et al. 2008, p. xxxiii). Os estudos corânicos nas universidades ocidentais e ocidentalizadas são, em grande parte, uma extensão e continuação desse processo. As origens não divinas do texto são postuladas como a única abordagem racional, e as metodologias de quaisquer análises que não incorporam essa suposição subjacente são muitas vezes descartadas desde o início. No processo, como observado acima, montanhas de análises históricas, filológicas, lexicográficas e literárias são retratadas como um montículo. As ciências do Alcorão e todas as metodologias que o acompanham são relegadas a “formas locais de conhecimento”, relevantes apenas a medida em que fornecem informações que podem ser empregadas pelas técnicas modernas da “alta crítica”, que é tida como a única fonte de “conhecimento objetivo."

Esse reducionismo epistemológico multifacetado representa uma forma de ortodoxia conceitual que é uma característica constitutiva e persistente do colonialismo [15]. Os povos não-ocidentais não são levados a sério quando conceituam e apresentam sua história, suas tradições ou seus textos de uma maneira que invoca e evoca epistemologias “locais” ou “nativas”, e lhes é negado o direito de avaliar as tradições intelectuais euro-americanas com categorias que derivam de suas próprias tradições intelectuais. Eles são tornados, de fato, em epistemologicamente inexistentes até que aprendam a representar a si mesmos, seus textos e suas tradições através das formas de análise euro-americanas [16].

A incapacidade de dar conta do posicionamento e da parcialidade das abordagens acadêmicas euro-americanas repousa sobre tais reduções epistemológicas. É tão difundido no estudo do Alcorão nas universidades euro-americanas que mesmo os estudiosos que são simpáticos ao Islã e suas tradições interpretativas muitas vezes permanecem inconscientes das suposições sobre a validade epistêmica universal das abordagens seculares inerentes às suas análises. Como observa Wael Hallaq ao discutir os fenômenos mais amplos do Orientalismo, embora abordagens mais recentes aspirem “a um conjunto de atitudes que mostram relativamente mais respeito e tolerância do que qualquer período anterior”, não obstante,

O denominador comum da academia orientalista, sem dúvida, continua sendo a superioridade epistêmica, o que significa que o respeito e a tolerância vêm com uma dose de autoconfiança epistêmica (e muitas vezes arrogância) que ainda assume – conscientemente ou não – a validade do projeto euro-americano moderno, sobretudo por ter sido pautado pelos princípios paradigmáticos do Iluminismo (Hallaq, 2018, pp. 238-39).

Desta forma, mesmo muitas abordagens “simpáticas” ao texto do Alcorão prolongam as estruturas socio-epistêmicas paradigmáticas que deram origem a abordagens revisionistas mais “críticas”. Tal abordagem é encontrada em How to Read the Qur'an, de Carl Ernst (2011), a partir do qual, como observa Travis Zadeh (2015, p. 331), “um leitor pode facilmente ficar com a impressão de que o conhecimento mais importante sobre o Alcorão hoje vem de fora da esfera da islâmica, por mais ampla que seja” [17]. Zadeh observa que “Ernst visa explicitamente excluir interpretações com raízes religiosas como um meio de avançar o que ele chama de uma leitura não-teológica acessível a uma ampla gama de audiências” (Ibid). Aqui somos forçados a perguntar por que uma leitura teológica seria inacessível a uma ampla gama de audiências. Uma vez que o Alcorão foi sujeito a leituras teológicas que continuam a impactar as civilizações muçulmanas da Indonésia à África e além, o que torna as leituras “teológicas” inacessíveis? Aqueles leitores a quem as leituras teológicas foram “acessíveis” não constituem “uma ampla gama de audiências?” Através da afirmação de Ernst, aqueles a quem as leituras teológicas se comunicariam e também aqueles que têm interesse em leituras teológicas foram, de fato, tornados inexistentes. Deve-se perguntar também se de fato se pode ter uma leitura não teológica de um texto cujo tema central, mesmo em nível linguístico, é Deus, e que é lido teologicamente há mais de mil anos. Dada a recepção histórica do texto, qualquer tentativa de evitar “leituras teológicas” já deve privilegiar uma abordagem secular do texto que é estranha às comunidades religiosas para as quais o texto serviu como documento devocional central. Qualquer esforço para privilegiar leituras que não são baseadas em compromissos teológicos representa, portanto, uma mudança epistemológica significativa que é sustentada pela suposição da soberania epistemológica do secularismo. Tais estudos podem trazer contribuições para a compreensão do texto, mas deve-se reconhecer que, por um lado, eles começam com muitos pressupostos inatos para serem considerados teologicamente neutros e, por outro, geralmente são escritos para um público não-muçulmano, cujos membros são uma minoria entre aqueles que estudam o Alcorão.

A leitura secular proposta por Ernst teria, de fato, significativas ramificações teológicas. Em um exemplo, seguindo o trabalho de Nöldeke que mais tarde foi sucedido por Kevin van Bladel, Ernst (2011, p. 138) explica a lenda de Dhul-Qarnayn no Alcorão como sendo a incorporação de uma lenda siríaca de um prévio corpo textual de Meca durante o período de Medina. Essa interpretação é em si questionável, como Travis Zadeh apontou, uma vez que é “bastante tênue tentar historicizar o relato do Alcorão usando material que pode não ter sido um intertexto para o Alcorão” (Zadeh 2015, p. 333). Mais importante, tais tentativas de historicizar o relato do Alcorão muitas vezes envolve uma afirmação sobre as origens históricas do texto corânico que não pode deixar de ter implicações teológicas. Qualquer tentativa de substituir explicações teológicas do texto por interpretações seculares necessariamente implica a suposição de uma metafísica abrangente que está em desacordo com outra metafísica abrangente que baseia as visões de mundo das conceituações muçulmanas clássicas e pós-clássicas do Alcorão. As questões teológicas não podem ser apenas “notas de rodapé”, como sugere Ernst. A própria crença de que se pode fazer isso, embora não abertamente teológica, é baseada em crenças, valores e suposições embutidos em uma visão de mundo que carrega implicações ideológicas e teológicas que têm tanto impacto na leitura do texto quanto assumidos comprometimentos teológicos. Ao privilegiar uma abordagem secular, o acadêmico já chegou ao texto com tantos pressupostos quanto o teólogo que é devoto. A diferença fundamental pode ser que o acadêmico secular é menos “confessional” em relação a seus pontos de vista, embora igualmente limitado por eles.

A abordagem de Ernst representa outro aspecto do processo pelo qual os conjuntos de conhecimento de dentro do contexto euro-americano são declarados inteligíveis e autoridades no assunto, enquanto os conjuntos de conhecimento que surgem de fora do contexto euro-americano são considerados ininteligíveis e, portanto, não têm autoridade. Ao estudioso euro-americano, ou seja, qualquer estudioso que compartilhe dessa perspectiva epistêmica, seja de forma consciente ou inadvertida, lhe é concedido o poder de falar com autoridade sobre o Alcorão, determinar os procedimentos pelos quais a credibilidade das declarações é avaliada e, em última análise, determinar quais declarações e conclusões devem ser levadas a sério e, assim, constituem a estrutura para o diálogo.

Conclusão

Desenvolvimentos recentes no campo dos estudos corânicos no Ocidente demonstram que a área permanece atolada em pressupostos da soberania epistêmica do pensamento euro-americano e, como tal, perpetua o projeto colonialista de produzir sujeitos epistemologicamente domesticados e pacificados. Na estrutura atual dos estudos corânicos na academia euro-americana, o estudioso ainda é obrigado a adotar ou se inscrever em uma única hierarquia universal na qual as abordagens eurocêntricas seculares do texto recebem um lugar de destaque e as abordagens muçulmanas do texto são relegadas para fornecer informações que podem então ser incorporadas a uma hierarquia epistêmica ocidentalcêntrica. Tais abordagens, sejam elas contemporâneas ou pré-modernas, não podem ser vistas como geradoras de aplicações úteis e autossuficientes do conhecimento. Metodologias desenvolvidas na academia euro-americana são apresentadas como as abordagens mais “críticas”, “sérias” ou “rigorosas” do texto. Em contraste, as metodologias empregadas nas ciências corânicas e na tradição comentarista clássica, ou aquelas que incorporam aspectos dela, são vistas como inerentemente falhas porque se baseiam em epistemologias alternativas cuja legitimidade é denunciada a priori, devido à oposição arraigada ao que é considerado o “reino das crenças e comportamentos incompreensíveis que de modo algum podem ser considerados conhecimentos, verdadeiros ou falsos” (de Sousa Santos 2007, p. 51).

Atualmente, quando falamos da relação entre as metodologias dos estudos corânicos fundamentadas na tradição islâmica clássica e aquelas que surgem da academia euro-americana, muitas vezes há uma não-relação, porque a maioria dos estudiosos euro-americanos se recusa a considerar epistemologias não-ocidentais como alternativas epistemológicas relevantes [18]. Epistemologias alternativas são de fato tornadas “não-cognitivas” a menos que possam ser traduzidas em paradigma(s) seculares dominantes. Mas esse mesmo processo de tradução os desnatura e os redireciona para que não cumpram mais as funções para as quais foram estabelecidos e desenvolvidos. Eles são, ao contrário, tornados secundários aos paradigmas euro-americanos e considerados valiosos apenas a medida em que podem contribuir com uma ou duas observações para eles, ou a medida em que em algum momento chegaram a conclusões semelhantes, caso em que são interpretados como validando o paradigma dominante.

Para ir além dos pressupostos do privilégio epistêmico euro-americano e da soberania epistêmica que permeiam o campo, devemos estar cientes da localização do pensamento ocidentalcêntrico e “deixar de pensar” com os critérios dominantes que muitas vezes definiram o campo dos estudos corânicos na academia europeia e americana. Para isso é preciso ir às raízes desses critérios para examinar e questionar “os seus pressupostos culturais, epistemológicos e mesmo ontológicos” (de Sousa Santos 2014, p. 237). Tal processo pode permitir “transformações emancipatórias” que seguem roteiros fora daqueles desenvolvidos pelas teorias críticas centradas no Ocidente [19]. A maneira de fazer a ponte entre acadêmicos europeus e americanos com estudiosos de outros países traduzindo “obras contemporâneas” de várias línguas, como proposto por Rippin (2010) e outros, muitas vezes se torna uma ferramenta para estender a hegemonia epistemológica euro-americana, aumentando esse abismo entre os pensamentos ao privilegiar qualquer abordagem que favoreça epistemologias oriundas dos paradigmas dominantes da academia euro-americana. Sob esta proposta, se os muçulmanos devem ser incluídos no debate euro-americanos dos estudos sobre o Alcorão, eles são obrigados a definir sua abordagem do texto corânico em relação às metodologias decorrentes do universo epistemológico de seus colonizadores intelectuais. Isso cria um universo epistêmico semelhante ao mundo de que fala W.E.B. Du Bois quando escreve sobre o homem negro vivendo em “um mundo que não lhe fornece verdadeira autoconsciência, permitindo que ele se enxergue apenas através da percepção do outro mundo” (Du Bois 2008, p. xiii).

Para que haja um campo nos estudos corânicos no qual estudiosos de múltiplas origens discutem através de distinções metodológicas e epistemológicas, a área dos estudos corânicos deve ser descolonizada. Tal descolonização pode permitir o desenvolvimento de novas “ecologias de conhecimento” que reconheçam a validade de múltiplas perspectivas. Reconhecer diversas ecologias de conhecimento permitiria uma hierarquia de validação diferente que não privilegia uma metodologia em detrimento de outras devido a pouco mais do que o legado da colonização intelectual. Muito mais importante do que a tradução é o desenvolvimento de abordagens contra-hegemônicas que facilitem a “equidade entre diferentes formas de conhecer e diferentes tipos de conhecimento” (de Sousa Santos 2014, p. 237). Isso permitiria um papel muito maior nos estudos corânicos de tafsir e as ciências corânicas do que o que é atualmente oferecido pela maioria das abordagens na academia euro-americana. Quando estivermos mais aptos a integrar as metodologias da tradição islâmica e as da academia ocidental, o que hoje é considerado por muitos como “resíduos do passado” pode, de fato, revelar-se como sementes para novos paradigmas intelectuais no futuro.

Notas

[1] Dezenas de livros e artigos foram publicados em árabe. Entre os mais notáveis estão ʿAbd al-Raḥmān Badawī (1997); Bamba (2015); 'Umar b. Ibrāhīm Riḍwān (1992).

[2] Por exemplo, ver Nicolai Sinai (2017), cuja bibliografia inclui extensas referências de muitas línguas europeias, mas exclui estudos recentes em árabe, persa, turco e outras línguas islâmicas, bem como estudos escritos em inglês por muçulmanos fora da euro-americana, como o trabalho de M.M. al-A'zami.

[3] A análise de Motzki das tradições sobre a compilação do Alcorão, tradições que Wansbrough e estudiosos subsequentes defendiam, não surgiram até o terceiro século, demonstra que “parece seguro concluir que os relatórios sobre a coleção do Alcorão em nome de Abū Bakr e na edição oficial feita pela ordem de ʿUthmān já estavam em circulação no final do 1º século islâmico e que al-Zuhrī possivelmente recebeu alguns deles das pessoas que ele indicou em seus isnāds”.

[4] Para uma crítica abrangente do argumento de Powers, veja a resenha de Walid Saleh (Saleh 2010a). Saleh escreve: “Como mostra a monografia de Powers, o revisionismo nos Estudos Islâmicos é mais um artifício retórico do que uma análise coerente de evidências; funciona como um exercício intelectual que pouco tem a ver com a história que se propõe a explicar. Um começa com a suposição axiomática de que as coisas não são o que a tradição nos diz (e por tradição aqui quero dizer a academia ocidental dominante); então avança-se por meio de pressupostos, plausíveis ou implausíveis, que são sustentáveis apenas porque pressupõem uma realidade diferente daquela atestada por nossas fontes, não porque sejam convincentes em si mesmas. Essas pressuposições acabam sendo concebíveis apenas por causa de seu valor como reconvenção. Todo o exercício é sustentado retoricamente por um tom de condescendência” (Saleh 2010a, p. 256).

[5] Para uma discussão desse mesmo fenômeno em relação à Lei Islâmica, ver Lena Salaymeh (2021).

[6] Para uma análise mais ampla da maneira pela qual a exclusão epistêmica perpetua a injustiça epistêmica, ver Miranda Fricker (2009).

[7] Essa tendência é ainda mais notória quando se considera quão pouco do comentário ou tradição de tafsir foi de fato lido por estudiosos da academia euro-americana, muito menos analisado. Para uma discussão sobre a natureza limitada dos estudos de tafsir na academia euro-americana, ver Walid (Saleh 2010c).

[8] Como observa Elliot Bazzano, [Reynolds] afirma que os exegetas muçulmanos clássicos macularam uma interpretação legítima do Alcorão confiando em suposições e agendas teológicas; ele ainda se refere a alguns desses exegetas como “totalmente incapazes” (Reynolds 2010, p. 21). Ele afirma que os estudiosos de hoje podem ser mais qualificados do que os exegetas clássicos para estudar o significado original das passagens do Alcorão, porque os estudiosos contemporâneos desfrutam de maior liberdade para especular (Reynolds 2010, p. 22)” (Bazzano 2016, p. 89).

[9] Nesta abordagem, o tafsir passa a representar a tradição inelástica e inflexível apresentada como um espantalho contra o qual os representantes do “racionalismo” podem argumentar pela superioridade de sua abordagem ao texto. Essa abordagem depende do avanço da dicotomia artificial de “tradição” versus racionalidade que foi desconstruída por MacIntyre. Como observa Ovanmir Anjum, “é por sua incapacidade de absorver ou avaliar o raciocínio empregado pelos sujeitos que eles veem todas as transformações da tradição como incompreensíveis, exceto em termos de manipulação” (Anjum 2007, p. 669).

[10] A pesquisa no campo da hermenêutica cultural demonstra que os pressupostos culturais específicos do tempo e do lugar em que determinadas metodologias acadêmicas se desenvolvem devem ser levados em conta na aplicação dessas metodologias. Como observa de Sousa Santos, “A relevância de um determinado objeto de análise não está no objeto em si, mas no objetivo da análise. Diferentes objetivos produzem diferentes critérios de relevância” (de Sousa Santos 2014, p. 140).

[11] A atitude de que não se pode confiar na tradição acadêmica islâmica é tão difundida nos estudos islâmicos em geral que estudiosos como Aaron Hughes vão declarar, com pouca análise ou justificativa, que “Também é importante não ir para interpretações posteriores de, por exemplo, o Alcorão, para tentar esclarecer isso” (Hughes 2015, p. 111).

[12] Os últimos vinte anos testemunharam os desenvolvimentos mais significativos na compreensão do desenvolvimento do texto do Alcorão na história da academia ocidental. Dentre esses estudos, destacam-se Déroche (2014); al-A'zami (2020); Motzki (2001). Outros artigos que abordam a datação dos primeiros manuscritos são Dutton (2001, 2004, 2007); Rezvan (2000); Sinai (2014).

[13] Estudos recentes demonstraram que as primeiras tentativas de identificar o “umm” ou “fonte original” do texto corânico escrito em Abū ʿAmr al-Dānī (d. 444/1053), al-Muqniʿ fī rasm maṣāḥif al-amṣār, indicam uma transmissão genuína do texto do Alcorão de uma única fonte original em meados do século VII; ver Cook (2004); van Putten (2019).

[14] Por exemplo, Bahāʾ al-Dīn Khurramshāhī e Ahmad Pakatchi no Irã e Fāḍil Ṣāliḥ al-Sāmirāʾī e Faḍl Ḥasan ʿAbbās são apenas alguns dos estudiosos contemporâneos cuja extensa erudição se baseia em metodologias da tradição do comentário clássico para produzir novas e importantes observações sobre a linguagem do Alcorão. Amin Ahsan Islahi (falecido em 1997) e seu professor Hamiduddin Farahi (falecido em 1930) no Paquistão fizeram um trabalho inovador sobre coerência e ordem no Alcorão que muitas vezes é ignorado ou ocluído nas discussões euro-americanas sobre a ordem do Alcorão. No entanto, muitos desses estudiosos raramente, ou nunca, são referenciados em estudos do Alcorão na academia euro-americana.

[15] Colonialidade refere-se à maneira pela qual o colonialismo persiste após várias formas de “colonialismo” terem sido abandonadas. As estruturas e paradigmas que asseguram a continuidade do poder imperial permanecem. Como escreve Ramon Grosfoguel, “A colonialidade refere-se à continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais. A colonialidade do poder refere-se a um processo de estruturação crucial no sistema do mundo moderno/colonial que articula localizações periféricas na divisão internacional do trabalho, estratégias políticas de grupos subalternos e a inscrição dos migrantes do Terceiro Mundo na hierarquia racial/étnica das cidades metropolitanas globais. (Grosfoguel 2002, p. 205).

[16] Para uma análise da maneira como isso leva a análises truncadas do texto do Alcorão no mundo islâmico, ver Ta Ha ʿAbd al-Raḥmān (2006, pp. 175–206).

[17] Isso é semelhante a Rippin (2010, p. 7) propondo que, para diminuir a divisão entre a academia muçulmana e não muçulmana sobre o Alcorão, as obras deveriam ser traduzidas das línguas europeias para as línguas islâmicas.

[18] Como observa de Sousa Santos (2014, p. 212), dentro dos paradigmas da academia euro-americana, não se pode “considerar as culturas não-ocidentais como alternativas culturais relevantes em nenhum sentido concebível”.

[19] Qualquer ponte entre os estudos corânicos no mundo muçulmano e a academia euro-americana que permaneça fundamentada em pressupostos da soberania epistêmica e superioridade heurística do pensamento euro-americano servirá apenas para perpetuar a marginalização hermenêutica dos estudiosos muçulmanos. Todas as abordagens ao texto devem ser analisadas em relação aos contextos epistêmicos em que surgiram.

Referências

  1. ʿAbd al-Raḥmān Badawī. 1997. Difāʿ ʿan al-Qurʾān Ḍidd muntaqidīhi. Cairo: Dār al-Jalīl. [Google Scholar]
  2. al-Aʿzami, Muhammad Mustafa. 2020. The History of the Qurʾānic Text: From Revelation to Compilation A Comparative Study with the Old and New Testaments. London: Turath Publishing. [Google Scholar]
  3. Anjum, Ovamir. 2007. Islam as a Discursive Tradition: Talal Asad and His Interlocutors. Comparative Studies of South Asia, Africa and the Middle East27: 656–72. [Google Scholar] [CrossRef]
  4. Asad, Talal. 2009. The Idea of an Anthropology of Islam. Qui Parle17: 1–30. [Google Scholar] [CrossRef]
  5. Bamba, Adam. 2015. al-Mustashriqīn wa daʿwā al-akhṭāʾ al-lughawiyya fī ‘l-Qurʾān al-Karīm. Beirut: Dār al-Kutub al-ʿIlmiyya. [Google Scholar]
  6. Bazzano, Elliot. 2016. Normative Readings of the Qur’an: From the Premodern Middle East to the Modern West. Journal of the American Academy of Religion84: 74–97. [Google Scholar]
  7. Brettler, Marc Zvi. 2004. The Canonization of the Bible. In The Jewish Study Bible. Edited by Adele Berlin and Marc Zvi Brettler. New York: Oxford University Press, pp. 2072–76. [Google Scholar]
  8. Burton, John. 1977. The Collection of the Qur’an. Cambridge: Cambridge University Press. [Google Scholar]
  9. Conrad, Lawrence. 2007. Qurʾānic Studies: A historians’ perspective. In Results of Contemporary Research on the Qurʾān. Edited by Manfred Kropp. Beirut: Orient-Institut. [Google Scholar]
  10. Cook, Michael. 2004. The stemma of the regional codices of the Koran. In Graeco-Arabica 9–10: Festschrift in Honour of V. Christides. Edited by G. K. Livadas. Athens: Institute for Graeco-Oriental and African Studies. [Google Scholar]
  11. de Sousa Santos, Boaventura. 2007. Beyond Abyssal Thinking: From Global Lines to Ecologies of Knowledge. Review (Fernand Braudel Center)30: 45–89. [Google Scholar]
  12. de Sousa Santos, Boaventura. 2014. Epistemologies of the South: Justice against Epistemicide. New York: Routledge. [Google Scholar]
  13. de Sousa, Santos, Boaventura, João Arriscado Nunes, and Maria Paula Meneses. Introduction: Opening Up the Canon of Knowledge and Recognition of Difference. In Another Knowledge is Possible: Beyond Northern Epistemologies. Edited by Boaventura de Sousa Santos. New York: Verso. [Google Scholar]
  14. Déroche, François. 2014. Qurʾans of the Umayyads: A Preliminary Overview. Leiden: E.J. Brill. [Google Scholar]
  15. Du Bois, William Edward Burghardt. 2008. The Souls of Black Folk. Oxford: Oxford University Press. [Google Scholar
  16. Dutton, Yasin. 2001. An Early Musḥaf According to the Reading of Ibn ʿĀmir. Journal of Qurʾānic Studies3: 71–89. [Google Scholar]
  17. Dutton, Yasin. 2004. Some Notes on the British Library’s ‘Oldest Qurʾān Manuscript’ (Or. 2165). Journal of Qurʾanic Studies6: 43–71. [Google Scholar]
  18. Dutton, Yasin. 2007. An Umayyad Fragment of the Qurʾan and its Dating. Journal of Qurʾanic Studies9: 57–87. [Google Scholar]
  19. El-Badawi, Emran Iqbal. 2014. The Qurʾān and the Aramaic Gospel Traditions. New York: Routledge. [Google Scholar]
  20. Ernst, Carl W. 2011. How to Read the Qur’an: A New Guide, with Select Translations. Chapel Hill: University of North Carolina Press. [Google Scholar]
  21. Fricker, Miranda. 2009. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford: Oxford University Press. [Google Scholar]
  22. Fudge, Bruce. 2006. Qurʾānic Exegesis in Medieval Islam and Modern Orientalism. Die Welt des Islams46: 115–47. [Google Scholar] [CrossRef]
  23. Grosfoguel, Ramón. 2002. Colonial Difference, Geopolitics of Knowledge, and Global Coloniality in the Modern/Colonial Capitalist World-System. Review (Fernand Braudel Center)25: 203–24. [Google Scholar]
  24. Hallaq, Wael. 2018. Restating Orientalism: A Critique of Modern Knowledge. New York: Columbia University Press. [Google Scholar]
  25. Hamza, Feras. 2014. Tafsīr and Unlocking the Historical Qurʾan: Back to Basics? In The Aims, Methods, and Contexts of Qurʾānic Tafsīr. Edited by Karen Bauer. Oxford: Oxford University Press. [Google Scholar]
  26. Hughes, Aaron W. 2015. Islam and the Tyranny of Authenticity: An Inquiry into Disciplinary Apologetics and self-Deception. Sheffield: Equinox. [Google Scholar]
  27. Iqbal, Muzaffar. 2008. The Qurʾān, Orientalism and the Encyclopaedia of the Qurʾān. Journal of Qur’anic Research and Studies3: 5–45. [Google Scholar]
  28. Izutsu, Toshihiko. 2002. God and Man in the Qur’an: Semantics of the Qur’anic Weltanschauung. Kuala Lumpur: Islamic Book Trust. [Google Scholar]
  29. Jeffery, Arthur. 2007. The Foreign Vocabulary in the Qurʾān. Leiden: Brill. [Google Scholar]
  30. Luxenberg, Christoph. 2007. The Syro-Aramaic Reading of the Koran: A Contribution to the Decoding of the Language of the Koran. Berlin: Verlag Hans Schiler. [Google Scholar]
  31. Manzoor, Parvez. 1987. Method against Truth: Orientalism and Qur’anic Studies. Muslim World Book Review7: 33–49. [Google Scholar]
  32. Mignolo, Walter. 2012. The Darker Side of the Renaissance: Literacy, Territoriality, and Colonization. Ann Arbor: The University of Michigan Press. [Google Scholar]
  33. Motzki, Harald. 2001. The Collection of the Qurʾān: A Reconsideration of Western Views in Light of Recent Methodological Developments. Der Islam78: 1–34. [Google Scholar] [CrossRef]
  34. Neuwirth, Angelika. 2003. Qurʾan and History—A Disputed Relationship: Some Reflections on Qurʾanic History and History in the Qurʾan. Journal of Qurʾanic Studies5: 1–18. [Google Scholar]
  35. Neuwirth, Angelika. 2007. Orientalism in Oriental Studies? Qurʾanic Studies as a Case in Point. Journal of Qurʾanic Studies9: 115–27. [Google Scholar]
  36. Neuwirth, Angelika. 2014. Scripture, Poetry and the Making of the Community: Reading the Qur’an as a Literary Text. New York: Oxford University Press. [Google Scholar]
  37. Nygren, Anja. 1999. Local Knowledge in the Environment–Development Discourse: From Dichotomies to Situated Knowledges. Critique of Anthropology19: 267–88. [Google Scholar] [CrossRef]
  38. Powers, David Stephan. 2011. Muḥammad Is Not the Father of Any of Your Men. Philadelphia: University of Philadelphia Press. [Google Scholar]
  39. Reynolds, Gabriel Said. 2010. The Qurʾān and Its Biblical Subtext. London: Routledge. [Google Scholar]
  40. Rezvan, Efim. 2000. On the Dating of an “ʿUthmanic Qurʾan” from St. Petersburg. Manuscripta Orientalia6: 19–22. [Google Scholar]
  41. Rippin, Andrew. 2001. Literary analysis of Qur’an, Sira and Tafsir: The methodologies of John Wansbrough. In The Qur’an and Its Interpretive Tradition. London: Routledge. [Google Scholar]
  42. Rippin, Andrew. 2010. The Reception of Euro-American Scholarship on the Qurʾan and tafsīr: An Overview. Journal of Qurʾanic Studies14: 1–14. [Google Scholar]
  43. Rizvi, Sajjad. 2021. Reversing the Gaze? Or Decolonizing the Study of the Qur’an. Method and Theory in the Study of Religion33: 122–38. [Google Scholar] [CrossRef]
  44. Sadeghi, Behnam, and Uwe Bergmann. 2010. The Codex of a Companion of the Prophet and the Qurʾān of the Prophet. Arabica57: 343–36. [Google Scholar] [CrossRef]
  45. Sadeghi, Behnam. 2011. The Chronology of the Qurʾān: A Stylometric Research Program. Arabica58: 210–99. [Google Scholar] [CrossRef]
  46. Salaymeh, Lena. 2021. Decolonial Translation: Destabilizing Coloniality in Secular Translations of Islamic Law. Journal of Islamic Ethics5: 1–28. [Google Scholar] [CrossRef]
  47. Saleh, Walid. 2010a. Review Article: Muḥammad is Not the Father of Any of Your Men: The Making of the Last Prophet, by David S. Powers. University of Pennsylvania Press, 2009. Comparative Islamic Studies6: 251–64. [Google Scholar] [CrossRef]
  48. Saleh, Walid. 2010b. The Etymological Fallacy in Quranic Studies. In The Qurʾān in Context: Historical and Literary Investigation into the Qurʾānic Milieu. Edited by Angelika Neuwrith, Nicolae Sinai and Michael Marx. Leiden: Brill, pp. 649–98. [Google Scholar]
  49. Saleh, Walid. 2010c. Preliminary Remarks on the Historiography of tafsīrin Arabic: A History of the Book Approach. Journal of Qur’anic Studies 12: 6–40. [Google Scholar]
  50. Sinai, Nicolai. 2014. When did the Consonantal skeleton of the Quran reach closure? Part I. Bulletin of the School of Oriental and African Studies77: 273–92. [Google Scholar] [CrossRef]
  51. Sinai, Nicolai. 2017. The Qur’an: A Historical-Critical Introduction. Edinburgh: Edinburgh University Press. [Google Scholar]
  52. Smith, Linda Tuhiwai. 2012. Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples, 2nd ed. Dunedin: Otago University Press. [Google Scholar]
  53. Ta Ha ʿAbd al-Raḥmān. 2006. Rūḥ al-ḥādātha: al-Madkhal ilā taʾsīs al-ḥadātha al-islāmiyya. Casablanca: al-Markaz al-Thaqāfī al-ʿArabī. [Google Scholar]
  54. ʿUmar b. Ibrāhīm Riḍwān. 1992. ʾĀrāʾ al-Mustashriqīn fī al-Qurʾān al-Karīm wa Tafsīrihi. Riyadh: Dār Ṭayyiba. [Google Scholar]
  55. van Putten, Marijn. 2019. “The Grace of God” as evidence for a written Uthmanic archetype: The importance of shared orthographic idiosyncrasies. Bulletin of SOAS82: 271–88. [Google Scholar] [CrossRef]
  56. Zadeh, Travis. 2015. Quranic Studies and the Literary Turn. Journal of the American Oriental Society135: 329–42. [Google Scholar] [CrossRef]

Fonte: MDPI Open Access Journals