A História Humana, não importa quão complexa seja, sempre guarda espaço para elementos cômicos. O nosso período das Cruzadas, tão rico e mistificado como é, não poderia deixar por menos. A história do Cerco de Antióquia, tão diversamente repleta com seus episódios de fome, canibalismo, intolerância religiosa, combates, traição e ambição não seria uma verdadeiro grande acontecimento da humanidade se não envolvesse um corno enfurecido e sem nada a perder. Essa é a história de Firouz, um maldito fabricante de couraças, um corno, um ser humano; e de como um caso extraconjugal aparentemente irrelevante mudou a História da Europa para todo o sempre.

Nossa história remonta à Primeira Cruzada, mais especificamente, ao Cerco de Antioquia. Situada na Síria, a cidade de Antioquia havia sido edificada pelos gregos durante o Império de Alexandre, o Grande. Mesmo em 1097, a cidade greco-siríaca perdura como gigantesca cidade, cobrindo mais de 9 quilômetros quadrados. Como toda grande cidade herdeira do período romano, Antioquia era rodeada por uma sólida muralha reforçada por 400 torres de defesa. O monte Silpius, o ponto mais alto da cidade e onde convenientemente se situava sua cidadela, encontrava-se a cerca de 300 metros do nível do solo.

Em seu auge, Antioquia foi habitada por meio milhão de habitantes; e embora não saibamos quantas pessoas viviam na cidade nos idos da Cruzada, é possível especular: de acordo com as fontes do século VI, a Praga de Justiniano – uma antecessora da Peste Negra do séc. XIV – foi responsável por ceifar a vida de 300.000 antioquenos, o que nós estabelece uma base segura; supondo uma taxa  de mortalidade de 50%, o que pode ser até irrealista considerando a disparidade de higiene e urbanismo entre o mundo clássico e a Europa Medieval, poderíamos dizer que pelo menos 600.000 habitantes teriam vivido na cidade naquela época. O quanto disso ainda restava 500 anos depois e na ocasião do Cerco pode ser um exercício mais complexo, mas não seria surpresa se ao menos 200.000 almas ainda vivessem em seus muros.

As muralhas de Antioquia subindo o Monte Silpius 

Não surpreende que a cidade provar-se-ia um grande desafio para os cruzados, e não seria por menos: além dos cruzados marcharem sem o auxílio de qualquer material de cerco, como madeira para construir torres-de-cerco, trabucos e escadas, a cidade se encontrava bem abastecida de comida e tinha um histórico de ser robusta: apesar de ter trocado de mãos duas vezes nos anos anteriores, em ambos os casos essa passagem de controle era organizada por traições entre os agentes de poder, nunca por assalto às suas defesas. Neste sentido, os cruzados estariam para enfrentar o maior desafio de toda aquela expedição.

Não surpreendentemente, os cruzados logo se viram assolados pela fome severa, incapazes de tomar a cidade pelos assaltos – que mesmo com equipamentos de cerco resultavam em baixas indesejadas. O tempo corria a favor dos sitiados: embora com uma guarnição pequena, os turcos esperavam a chegada de reforços vindos do distante Emirado de Mossul, no Iraque; as operações cruzadas de forrageamento, para procurar comida nos arredores da cidade, frequentemente expunha tropas isoladas do restante do exército aos ataques coordenados dos generais turcos de Antioquia. Para ambos os lados, estava claro que, se o numeroso exército de Mossul chegasse a tempo de prestar auxílio a Antioquia, o exército católico seria virtualmente aniquilado. Desespero para os sitiantes, alívio para os sitiados.

É neste cenário, particularmente pessimista para os católicos, que uma intervenção quase que sobrenatural entra em auxílio dos soldados da cruz. Como na Queda de Tróia e na Ascensão de Isabel de Castela, cornos parecem estar predestinados a mudar a balança de poder do nosso universo.

Estamos falando de Firouz, um rico armeiro que, embora armênio de etnia e cristão de nascença, havia se convertido ao Islamismo. Firouz desempenhava uma função elevada – provavelmente como fabricante de couraças dos emires locais – na cidade de Antioquia. O que alinhou um muçulmano rico aos bárbaros franj não foi muito menos que um par de chifres: sua esposa havia sido “seduzida” por um dos principais generais do governador de Antioquia, Yağısıyan.

Cego pelos chifres, Firouz, agora guardião responsável pela Torre das Duas Irmãs, nas muralhas de Antioquia, entrou em contato com Boemundo de Taranto, um dos altos barões da Cruzada e um indivíduo que, apesar de juramentado ao imperador Aleixo Comneno, tinha lealdades questionáveis ao Império Bizantino, servindo aos próprios interesses. Agora como espião particular de Boemundo, o príncipe de Taranto e o corno de Antioquia tramavam seus próximos passos. Em troca de terras e um título, Firouz concordou em colocar os cruzados em Antioquia, para tomá-la e levar sua vingança adiante.

Uma representação do século XV da captura de Antioquia pelos cruzados a partir de um manuscrito do acervo da Biblioteca Nacional dos Países Baixos

Se valendo dos seus contatos privilegiados, Boemundo revelou o plano estabelecido com Firouz, criando como condição para realizá-lo algo bem conveniente: em troca de executar o plano que salvaria os cruzados, os altos barões deveriam reconhecer Boemundo como Príncipe de Antioquia. Em síntese, Boemundo estava propondo traição e quebra de juramento. Com os reforços de Mossul próximos, a proposta foi aceita por todos; com exceção de Raimundo de Tolouse, que ficou furioso e defendeu que a cidade deveria ser devolvida aos bizantinos, conforme o acordo estabelecido em Constantinopla; Stephen de Blois e outros cruzados desertariam em seguida, somente para serem acusados pelo Papa e por todas as cortes da Europa como verdadeiros covardes.

O plano de Firouz era bem engenhoso e revelava requintes de um preparo metódico: Boemundo faria uma grande parte do exército sitiante numa marcha contra as montanhas, para confrontar o poderoso exército de Mossul que se aproximava. Diante da visão do exército cruzado se retirando em grandes números do sítio, os soldados e a população suspiraram aliviados, crendo que em breve o cerco acabaria e os francos seriam massacrados pelas forças de apoio. Era exatamente isso que Firouz queria: enquanto os generais e os soldados em Antioquia descansavam e baixavam a guarda pelo o que parecia um alívio no cerco, o exército que Boemundo retirou para as montanhas marcharia de volta à noite.

Ao fim da vígilia noturna e às vésperas da alvorada, quando os sentinelas já estariam exaustos e com a guarda-baixa – mais do que eles já estavam –, e no horário onde menos se costuma esperar um ataque, Firouz iria baixar cordas na Torre das Duas Irmãs para que Boemundo e um pequeno contingente de cavaleiros pudesse escalar a torre. Amin Malouf descreve brilhantemente os eventos:

“ Quando o acordo foi concluído entre os franj e esse maldito fabrican­te de couraças’’, contará Ibn al-Athir, “ eles treparam em direção a esta pe­quena janela, abriram-na e fizeram subir muitos homens por meio de cordas. Depois de passar mais de 500 fizeram soar o clarim na madrugada, hora em que os defensores encontcavam-se esgotados depois de uma longa vigília. Ya­ghi Siyan levantou-se e perguntou o que estava acontecendo. Responderam- lhe que o som do clarim vinha da cidadela que certamente havia sido toma­da” .

Os ruídos vêm da torre das Duas Irmãs. Mas Yaghi Siyan não se dá ao trabalho de verificar. Acredita estar tudo perdido. Cedendo ao pavor, orde­na que abram uma das saídas da cidade e, acompanhado por alguns guar­das, foge. Desvairado, ele vai cavalgar assim durante horas, incapaz de recu­perar a razão. Após 200 dias de resistência, o senhor de Antioquia desmoro­nou. Ao mesmo tempo que lhe censura a fraqueza, Ibn âl-Athir evoca seu fim com emoção.

‘‘Ele pôs-se a chorar por ter abandonado a família, os filhos e os muçul­manos e, perdido em sua dor, caiu do cavalo sem consciência. Seus companhei­ros tentaram levantá-lo, mas ele não se sustentava mais em pé. Estava morren­do. Deixaram-no e se afastaram. Um lenhador arménio que passava por ali o reconheceu. Cortou-lhe a cabeça e levou-a para os franj em Antioquia.”

A cidade está incendiada e o sangue corre. Homens, mulheres e crian­ças tentam fugir pelas ruelas lamacentas, mas os cavaleiros os alcançam sem esforço e cortam-lhes o pescoço imediatamente. Pouco a pouco, os gritos de horror dos últimos sobreviventes se apagam, logo substituídos pelas vo­zes desafinadas de alguns saqueadores francos já embriagados. A fumaça so­be de muitas casas incendiadas. Ao meio-dia, um véu de luto envolve a ci­dade. (MALOUF, p. 41)

O massacre de Antioquia, em uma gravura de Gustave Doré

Durante o massacre que se seguiu, o irmão do próprio Firouz encontrou-se entre os mortos. Talvez fosse um preço justo a se pagar pela vingança. Os armênios, que a princípio pegaram em armas para massacrar turcos e árabes junto com os francos, acabaram sendo vitimados indistintamente pelos próprios cruzados, que mataram generalizadamente, fossem muçulmanos ou cristãos locais, que conseguiram encontrar. Os altos barões desperdiçariam vários meses em Antioquia, discutindo e brigando entre si pela posse da cidade em detrimento do seu juramento com o Império Bizantino. Raimundo de Tolouse se tornaria um inimigo claro de Boemundo, aliando-se aos bizantinos e opondo o novo Principado de Antioquia. A cidade em si, mesmo após esforços de imigração para repovoá-la depois do massacre, não passaria de 40 mil habitantes; o que poderia ser bastante para uma cidade na Europa Católica, mas muito pouco para o porte de Teópolis, como Justiniano bem a renomeou.

Quão curioso, então, pensar que por um par de chifres a Primeira Cruzada deu certo, surgiram Estados Cruzados, desenvolveu-se o comércio na Itália por estes e se desencadeou toda uma cadeia de eventos. Isto, caros leitores, é o verdadeiro efeito borboleta que nunca será televisionado.

Bibliografia:

MALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos Árabes. Editora Brasiliense, 2007.

HARARI, Yuval Noah. The Gateway to the Middle East: Antioch, 1098. Special Operations in the Age of Chivalry, 1100–1550. The Boydell Press, 2007. pp. 53–73.

NICOLLE, David. First Crusade (1096-1099). İstanbul: Türkiye İş Bankası, 2011.

BRIDGE, Antony. The Crusades, p. 314.

ZWEMER, Samuel M.The Moslem World, Volume 58, 1911, pg.63.