O ISLÃ SEMPRE ESTEVE PRESENTE na Europa Oriental. A existência da Europa Oriental se dá por causa da mistura de idiomas, de culturas e, talvez principalmente, de crenças. É o ponto de contato entre o ocidente católico e o oriente ortodoxo, entre os judeus sefarditas e asquenazes, entre o Islam militante e a cristandade cruzada, entre os místicos bizantinos e os santos sufis.

No passado, essa pluralidade era evidente. Alguém que visitasse Vilna no século XVII escutaria seis idiomas diferentes nas ruas e poderia escutar orações sendo conduzidas em mais outros cinco. A cidade tinha igrejas de cinco outras denominações, além de uma sinagoga e uma mesquita. Alguns exemplares de mesquitas “lituanas” ainda existem na Polônia e na Bielorrússia. Quadriláteras e de madeira, elas se parecem com igrejas de paróquia, com a pequena diferença de que o ornamento em cima delas é um fino crescente de prata em vez de uma cruz.

Se há algo que caracteriza a Europa Oriental como um local distinto e não só como a periferia de algum outro lugar, é esse papel de portal e ponte entre diferentes tradições. E ainda assim, vez após vez, foi esquecido ou negado o papel do Islam na elaboração de toda essa tapeçaria. Isso é um erro grave. O Islam é o fio de prata que mantém a integridade da tapeçaria. Trinta anos atrás, o historiador Larry Wolff propôs que a Europa Oriental foi produto do Iluminismo. Quando os intelectuais ocidentais (principalmente os franceses) começaram a esboçar seus países como reinos do progresso e da racionalidade, eles criaram o “oriente” como um intrigante obstáculo às suas ambições, cheio (ao ver deles, ao menos) de atraso e superstição.

Me parece que Wolff está certo apenas em parte. Acho que a noção de uma Europa Oriental separada vem de alguns séculos antes do Iluminismo. Creio, além disso, que sua origem está intimamente ligada com a introdução do Islam nos Balcãs e nas estepes do sul e, com ele, a criação de uma zona fragmentada entre impérios, percorrendo desde o mar Adriático até o mar Negro. Esta zona fragmentada consistia de divisas rígidas, mas fronteiras brandas. Exércitos e guerreiros solitários combatiam na divisa. Pessoas, contos e milagres cruzavam as fronteiras. Então, muitas das lendas que vieram a definir as nações da região provêm desse espaço de contato. E em todo lugar que olhamos, as relações que à primeira vista aparentam ser baseadas em inimizade, acabam por ser, em vez disso, caracterizadas por influência e imitação mútuas, amizade e até mesmo amor.

Mas devemos começar com a guerra.

Os Limites

Na Idade Média, Europa era sinônimo de Cristandade e, nesse sentido, o Islam chegou na Europa Oriental antes de a própria Europa ter chegado lá. Os comerciantes muçulmanos já percorriam estas terras ainda pagãs antes dos missionários cristãos terem pisado nelas. Os depoimentos em escrito que eles deixaram são algumas das nossas únicas fontes remanescentes que dizem como era o Leste Europeu antes da chegada dos sacerdotes cristãos. O viajante espanhol Ibrahim ibn Yaqub de Tortosa foi o primeiro a registrar suas impressões de Praga e Cracóvia. Ibn Fadlan é a melhor fonte que temos que fala sobre as atividades dos vikings nos territórios que hoje fazem parte da Ucrânia e da Rússia. O material de Abu Hamid al-Andalusi al-Garnati é essencial para se conhecer a história da Hungria e dos búlgaros do Volga.

Mas isso tudo foi apenas um prelúdio. O Islam chegou a sério um pouco mais tarde, no século XIV. Duas datas se sobressaem: a conversão da Horda Dourada ao Islam em 1313 e a chegada dos primeiros soldados turcos otomanos nos Balcãs – mercenários a serviço do usurpador John Cantacuzenus – em 1345. A partir dessa época, os exércitos (e as nações) islâmicos teriam uma presença permanente na região. Essa presença gerou muitas consequências. Uma foi a inauguração de uma nova era da guerra sagrada: as Cruzadas, que eram entre os cristãos e os pagãos nos Países Bálticos, agora haviam se tornado um conflito entre cavaleiros errantes e ghazis muçulmanos (guerreiros muçulmanos). Outra consequência foi a transformação da Europa Oriental numa vasta zona fronteiriça, uma zona de soberania limitada que logo ficou lotada de todo tipo de soldado fronteiriço e fora da lei: os piratas uskok da costa dálmata, os exércitos dos pandures e dos grenzers da fronteira militar de Habsburgo na Croácia, os hajduks e os haidamaks da Hungria e da Ucrânia, os Cossacos Zaporozianos Sich na parte sul do rio Dnieper, os nômades cumanos, nogais e tártaros quipchacos das estepes da Crimeia, de Dobrudja e Budjak. Todos esses grupos exploravam a instabilidade das divisas, justificando seus ataques, pilhagens e a prática da escravidão com suas crenças.

A Sérvia, a Hungria e a Polônia reivindicam o título de antemurale christianis, a “muralha da cristandade”. A Albânia fazia o mesmo – sob o governo de Skanderbeg, no século XV – mas, hoje, é um país de maioria muçulmana. A Bósnia já teve a postura inversa, servindo como a muralha do Islam. Em todo lugar, no entanto, a figura de muralha reinava suprema.

A defesa das divisas entre as fés é o assunto de incontáveis lendas e narrativas. O que seriam as poesias épicas iugoslavas sem contos de investidas nas fronteiras? Alguns poetas perderam a vida nos confrontos fronteiriços. O primeiro poema épico húngaro foi escrito pelo incansável general de fronteira (e Ban da Croácia) Miklós Zrínyi. O poema fala do bisavô do autor, outro lorde fronteiriço sedento por sangue, e da sua defesa heroica da cidade de Szigetvár contra o exército de Suleiman, o Grande. O poema acaba com o bisavô e o resto do exército defensor derrotando um exército que havia sido literalmente convocado do inferno antes de avançar rumo à morte no fogo dos mosquetes. O tema do “suicídio por meio de turco” tem seu próprio microgênero na cultura literária do Leste Europeu – alguns exemplares memoráveis são Pan Wolodyjowski por Henryk Sienkiewiz e a série de músicas sobre Miloš Obilić no idioma sérvio. Mas, à medida em que os poetas gostam de escrever sobre mártires, as pessoas costumam simpatizar com os fora da lei. Os melhores contos da região combinam ambas as tipologias. Peguemos a história do Baida.

Em vida, Dmytro Vyshnevetsky era um típico senhor de fronteira: astuto, cruel e sempre disposto a vender sua lealdade a quem pagasse mais. Para o rei da Polônia, ele fortificou uma ilha no Rio Dnieper na defesa contra os tártaros. Para Ivan, o Terrível, ele levantou uma horda de circassianos no Cáucaso e os usou para saquear toda a região do rio Don. Como empreitada pessoal, ele liderou seu exército de cossacos na Crimeia para capturar escravos. Quando nem a Moscóvia nem a Lituânia aceitaram seus custos, ele considerou se aliar com os turcos.

Após sua morte, porém, Vyshnevetsky se transformou no Baida, o exemplo lendário da masculinidade dos cossacos. Dessa forma, ele é representado como o herói numa centena de músicas épicas cossacas, ou dumy. Uma das mais famosas, “Na Pequena Praça da Vila do Tsar”, conta com a participação dele –aparece sozinho e inesperadamente no centro de Istanbul. Já bêbado, ele prossegue numa bebedeira que dura dias. O sultão turco, impressionado pela demonstração vangloriosa de masculinidade, oferece a Baida a mão de sua filha em casamento. Mas o Baida desvencilha-se dela, dizendo: “Sua filha é bonita / mas sua fé é amaldiçoada”. Furioso, o sultão manda que capturem Baida e o amarrem. Pendurado num gancho enfiado por baixo de suas costelas, o Baida sofre um tormento terrível por três dias. Mesmo com o predicamento fatal, ele ainda consegue de alguma forma obter um arco e atirar flechas e mais flechas no sultão e na filha rejeitada; ele erra o alvo por pouco, até que finalmente sente a doce libertação da morte. Então, inflexível e bebum, ele entra no reino dos mitos.

Sobre as Cabeças

A verdadeira morte de Vyshnevetsky aparenta ter sido um pouco mais prosaica. Incitado por Olbracht Łaski, o notável e macabro aventureiro polonês (que viria a ser patrocinador de Giordano Bruno e John Dee), a intervir nos assuntos da Moldávia, ele foi pego numa emboscada e vendido ao sultão, que o estrangulou com um cordão de seda. Outra história sugere que a narrativa do gancho é verdadeira, mas em vez de terminar num ato heroico de rebeldia, ele simplesmente morreu.

Mas por que insistir tanto na verdade? Nas terras fronteiriças, os acontecimentos violentos viravam lendas ou símbolos praticamente logo após acontecerem. Sei disso intimamente. A família da minha avó, os Terebesz, uma vez já pertenceu à nobreza da Hungria. O brasão dela era uma cabeça decepada, empalada numa espada. O anel sinete da família – a trópi glowa, ou “cabeça da morte” – pertencia à irmã da minha avó. Eu nunca o vi quando criança, mas ele rebrilhava no olho da minha mente. Como esse nome, parece que ele era meio como um Totenkopf (crânio e ossos cruzados) alemão, mas não era. Em primeiro lugar, o anel tinha uma cabeça decepada e não uma caveira. Em segundo, o nosso anel tinha um bigode. A presença de um topete indica que a cabeça era provavelmente de um turco e sugere que os Terebeszes tenham iniciado sua existência como pomposos soldados da fronteira turco-húngara, enobrecidos por algum ato de bravura há muito esquecido.

O tema da cabeça decepada é um tema comum. John Smith, o homem que foi salvo por Pocahontas na Virgínia, tinha um brasão semelhante, mas o dele tinha três cabeças de turcos dispostas num triângulo, num escudo. Smith o recebeu enquanto combatia como mercenário para Sigismund Báthory, o príncipe da Transilvânia. Ele derrotou três desafiantes em duelos no campo de batalha em frente às muralhas da cidade romena durante um cerco. Mais tarde, foi capturado e vendido “como uma besta”, escravo para os tártaros da Crimeia. Para o povo das terras fronteiriças, decapitar as pessoas virou um estilo de vida. Quando os heróis das canções sérvias tradicionais se reúnem com chifres cheios de vinho, eles se gabam de quantos escravos capturaram e quantas cabeças deceparam. Depois de uma rebelião contra os turcos dos cristãos sérvios e dos búlgaros, Salomea Pilsztyn viu as cabeças cortadas dos rebeldes empilhadas num monte “maior do que uma taverna espaçosa”. Na lenda albana da Batalha de Kosovo, Kopiliq é decapitado após apunhalar o sultão até a morte. Mas ele não morre. Em vez disso, ele cavalga pela a planície segurando em seu braço sua própria cabeça decepada. Quando uma garota sérvia o avisa que ele perdeu a cabeça, ele morre, mas, antes de morrer, não tarda a amaldiçoá-la com cegueira.

Em seu livro Seyahatname, Evliya Çelebi (Evliya, o Cavalheiro), cortesão otomano e um dos maiores viajantes e eruditos da história da Europa Oriental, conta uma história, que passa de violenta para cômica e fala de decapitações do ponto de vista do lado oposto da fronteira. Ela ocorre durante a Campanha da Transilvânia, de 1662:

Uma aventura estranha e cômica, uma gaza maravilhosa e tola. Vosso humilde servo passou por esta aventura. Se o relato dela for ofensivo, espero ser coberto com a saia do perdão.

Após a batalha, atendendo ao chamado da natureza, me retirei para um local ermo, soltei minhas calças e me ocupava me aliviando quando, de um matagal bem acima de mim, escutei um ruído, um estalo. Antes que eu pudesse entender o que significava o barulho, de repente, um soldado infiel, que temia pela própria vida, subitamente se jogou de uma pedra baixa um pouco acima da minha cabeça e caiu bem em cima de mim, e me estatelei na minha imundície. Estava segurando as rédeas do meu cavalo, mas ele se assustou e ficou esperando um pouco distante. Por um momento, saí de mim: lá estava eu, todo desorientado com aquele infiel, com meu cinto e minhas calças balançando nos meus pés e minhas roupas todas cheias de merda – quase me tornei o “mártir da merda”.

Graças a Deus, recuperei minha sanidade e lutei contra o infiel, igual Mahmud Pir-Yar-i Veli, até que fiquei por cima. Desembainhei minha adaga e o esfaqueei repetidamente no pescoço e no peito, então cortei sua cabeça. Nesta altura eu já estava coberto de sangue e merda e tive de rir, uma vez que havia me tornado um gazi de bosta. Usei a adaga para tirar a merda da minha roupa e, quando estava vestindo a calça, apareceu ofegante um valente jovem na pedra acima de mim e disse: “Meu amigo, eu estava perseguindo pelas montanhas o infiel que você acabou de matar. Temendo morrer, ele se jogou em cima de você e você lhe cortou a cabeça. Agora a cabeça pertence a mim!”

Ainda estava amarrando as calças. “Bem”, respondi, “pegue essa cabeça” – e mostrei a ele o meu irmãozinho que nasceu comigo (meu pênis).

“Você é um homem muito mal-educado”, disse o rapaz elegante e, impacientando-se da cabeça, foi embora.

Enquanto eu tirava o dólmã com botões de prata todo emporcalhado do infiel, e suas calças, descobri 105 peças de ouro húngaras, um anel e 40 tálers em seu cinto. Coloquei os objetos na sela do meu cavalo e montei – o nome do cavalo era Hamis – e levei a cabeça até a presença de Ismail Pasha. “Que as infelizes cabeças dos inimigos sempre rolem como esta”, eu disse, beijei sua mão e permaneci em pé. Os outros perto de mim se afastaram por causa do odor.

“Meu Evliya,” disse Ismail Pasha, “tens um cheiro peculiar de bosta.”

“Não pergunte, meu senhor, que calamidades me assolaram!” E contei minhas aventuras, passo a passo. Todos os oficiais que comemoravam a vitória gargalharam ruidosamente. Ismail Pasha também estava demasiadamente satisfeito. Ele me premiou com 50 peças de ouro e um ornamento de prata para o turbante, e minha alegria foi formidável.

Os Cruzadores de Fronteiras

O Conflito, que perdurou bastante tempo, naturalmente virou coexistência. E a coexistência, também naturalmente, gerou intimidade. Às vezes, essa intimidade tomava a forma de um simples reconhecimento da humanidade do oponente. No século XVIII, a fronteira polonesa-otomana seguia o rio Dniester. Num local chamado Zwaniec, uma guarnição de poloneses observava as atividades da guarnição dos turcos do outro lado. Na metade do século XX, o ensaísta Jerzy Stempowski fez uma reflexão sobre os hábitos daquele tempo mais cavalheiresco:

No final do século XVIII, meu bisavô foi o último comandante deste posto. Mantendo os costumes daquela era de educação, meu bisavô e o Pasha de Khotim [Khotym] trocavam elogios por escrito, que acompanhavam de pequenos presentes. Meu avô ainda tinha uma bolsa de seda vermelha que datava dessa troca de boas palavras. Dentro dela, havia uma carta escrita num papel amarelado, coberta da escrita minúscula daquele tempo.

O convívio resultante da proximidade na fronteira ia além dos elogios. No século XVI, os uskoks de Senj alcançaram a reputação de ferozes piratas do Adriático. Eles se portavam como guerreiros sagrados enquanto atacavam as embarcações otomanas e venezianas sem fazer distinções. Mas até os piratas tinham que fazer tratos. Em algum momento da década de 1580, o governo otomano, na esperança de reduzir a quantidade de assaltos, proibiu que se pagasse resgates pelos prisioneiros dos uskoks. Na esfera local, esse veto não era do interesse de ninguém, pois expunha os soldados da fronteira otomana a um perigo maior ao mesmo tempo em que privava os uskoks de uma de suas principais fontes de renda. Então o chefe dos piratas e o bey local se reuniram para negociar. Eles definiram quantias apropriadas de pagamento para cada tipo de prisioneiro e fecharam o trato se tornando formalmente “irmãos de sangue” – depois, se retiraram para dormir “na mesma cama, nos braços um do outro”.

Em outra ocasião, os uskoks fizeram uma trégua com o agas de Karin. Isso enfureceu os venezianos, que capturaram o mensageiro deles. É graças a essa captura que conhecemos os termos exatos do trato. Os uskoks prometeram parar de atacar a área em troca do direito de passagem segura. No entanto, os uskoks compreendiam que os soldados otomanos teriam que demonstrar combatê-los, por isso, acrescentaram que não teria problema nenhum se eles “atirassem uma ou duas vezes” em sua direção para manter a honra.

Atire – mas não muito e nem muito precisamente: uma solução honrável para o problema das afeições inconvenientes. Essa proximidade oriunda dos conflitos fronteiriços tem seu eco literário na lenda de Marko Kraljević e Musa Kesedžija, heróis populares de músicas tradicionais da Sérvia:

Se passaram três anos desde que o sultão havia enviado Marko Kraljević, seu campeão, para apodrecer na cadeia. Mas, agora, um grande salteador estava assolando a costa. Seu nome era Musa. Ele era muçulmano e albano, e também já havia servido ao sultão de Istambul. Certo dia, bebendo na taverna, ele se enfezou pois, após anos de labuta, não havia ganhado o suficiente para comprar nem cavalo, nem uma espada, nem uma capa bordada. Então, ele passou a roubar os tesouros do sultão e a pendurar pobres peregrinos e santos hajjis em ganchos (hajjis: aqueles que fizeram o Hajj).

O sultão mandou três mil soldados e um vizir para lidar com eles, mas Musa matou todos eles e também mais alguns mercenários. Havia chegado a hora de convocar Marko novamente. Marko era sérvio, cristão e um príncipe. Ele tinha um péssimo temperamento e um bigode descomunal. Ninguém o ultrapassava em valentia. Musa e Marko se encontraram nas colinas rochosas e brutas de Kachanik. Eles duelaram numa batalha terrível, trocando golpe após golpe. Quebraram as espadas um do outro e lutaram com seus punhos, mas nenhum dos dois conseguia derrubar o outro. Por fim, Marko invocou seu espírito guardião, uma ninfa ou uma fada da floresta. Com a ajuda dela e com um ardil, ele acertou Musa com uma faca e o cortou, o abrindo da cintura até a garganta. Quando Marko se levantou, percebeu que podia ver dentro do peito de Musa. O salteador tinha três corações. O primeiro coração parou de bater. O segundo ainda batia. Em volta do terceiro coração, havia uma serpente enrolada, adormecida. A serpente acordou e falou: “Ó Marko, agradeça a Deus que não despertei enquanto Musa vivia: sua tarefa teria sido cem vezes pior!” Assim, Marko chorou, pois descobriu que havia matado um homem melhor do que ele mesmo.

Em outra história, Marko encontra alguém à sua altura; o grande guerreiro muçulmano bósnio Alija Đerzelez, ou Alija, o Maceiro. Alija era um homem grande e completamente careca. Ele tinha a força de um gigante. Uma pedra que nem 20 homens podiam levantar, ele era capaz de atirar a distância de um campo. Ele combatia os homens com facilidade, como se estivesse moendo milho. Ele cavalgava um cavalo alado, mas somente quando ninguém pudesse vê-lo. Seus longos bigodes caíam para os lados do seu rosto. Segundo o poeta, seus bigodes eram “como se ele estivesse segurando um cordeiro negro em seus dentes.” Marko também tinha uma força imensa – o sangue dos gigantes corria em suas veias (proveniente do seu lado materno). Seu cavalo falava e saltava muito longe, mas não podia voar – o cavalo também bebia bastante vinho. Ele entalhou as Portas de Ferro do Danúbio com um só golpe de espada. Seu bigode negro era do tamanho de um cordeiro de seis meses de idade. Os dois guerreiros se tornaram irmãos de sangue e em Deus.

Um herói cristão, que combateu para o sultão otomano e se tornou irmão de sangue de um campeão igualmente poderoso dos muçulmanos bósnios: em poucos versos de poesia cantada, esta narrativa desfaz a maioria dos nossos preconceitos sobre as relações entre religiões no Império Otomano. No geral, a história dos otomanos na Europa já devia ter sido revisada. Nos dois séculos que se passaram depois que a Sérvia e a Bulgária obtiveram suas independências (e a Romênia, sua soberania), a historiografia dos Balcãs foi dominada pelo ponto de vista de que o império era apenas uma força destrutiva e que o período de suserania foi uma era de escuridão. Mesmo o escritor ganhador do prêmio Nobel, Ivo Andrić, que costuma ser tão perceptivo e sensível às distinções, escreveu num livro mais antigo que “o efeito do domínio turco [na Bósnia] foi absolutamente negativo.”

Muitas pessoas consideram a história do Leste Europeu como uma história de ódios profundos e persistentes, de separações que ficam debaixo do dia a dia como os limites das placas tectônicas. Mas as pessoas viveram juntas e em paz na maior parte do tempo por séculos, e essa paz podia, nas circunstâncias certas, até mesmo florescer e se tornar amizade e uma compreensão sutil. Está nas nossas mãos decidir qual história devemos escutar e qual significado devemos dar a ela no presente. 

E não são somente o mito das antemurales e a teoria catastrófica da “ocupação” otomana – segundo a qual os turcos não trouxeram nada além de devastação – que nos cegaram à importância do Islam na Europa Oriental. Também é a pura ignorância. Por que não falamos da Europa Oriental da mesma maneira que Khiva, Samarkand ou Al-Andalus? Em grande parte, simplesmente porque não sabemos.

O mundo da Europa Oriental islâmica é um continente ainda não descoberto. Explorar a história dele significa explorar as profundezas de diários obscuros e publicações separatas esquecidas. Mesmo com uma boa biblioteca de pesquisa por trás de você, é uma luta. Com a literatura, a situação é ainda pior. Mas há tesouros à espera do tradutor que queira empreender. Será uma tarefa difícil, no entanto, pois não é somente necessário o conhecimento de idiomas e escritas, mas uma compreensão de todo um mundo de referências culturais que não desapareceram, mas são raramente acessíveis. Para se ler Naim Frashëri, é necessário mais do que um domínio sobre o idioma da Albânia, mas também um domínio sobre o grego clássico e moderno, sobre o francês, o italiano e da alta tradição Islâmica que ele absorveu por meio das poesias árabes, turcas e persas.

E quem será o primeiro a abrir o mundo da literatura aljamiado dos Balcãs, que é uma literatura elaborada nos idiomas da Bósnia e da Albânia (e, menos frequentemente, nos idiomas da Polônia e da Bielorrússia), mas escrita no alfabeto árabe? Também conhecida como arebica, é um tipo de escrita que serve como metáfora perfeita para a região: híbrido em forma, plural em conteúdo e permeável à influência do oriente e do ocidente. Um ponto de partida pode ser o livro Ašiklijski Elif-ba de Fejzo Softa, a introdução erótica do poeta à escrita árabe, de onde o nosso tradutor empreendedor poderia passar para a obra de Umihana Čuvidina, um viúva de guerra da Bósnia, que enaltece seus mortos em sua poesia épica de 79 versos: Os homens de Sarajevo Marcham para a Guerra contra a Sérvia.

E, de fato, os historiadores recentemente começaram a questionar a “teoria da catástrofe” acerca do passado dos Balcãs. No livro A Arte e a Sociedade da Bulgária no Período Turco, o historiador arquitetônico Machiel Kiel aponta uma nova vista da vida cristã sob o domínio otomano. Sua principal descoberta foi de que a vida da arte e da cerimônia ortodoxa nunca foi enfraquecida durante os séculos após a conquista. Em vez disso, a Bulgária otomana (e os Balcãs no geral) era um mosaico complexo de afinidades e dependências, onde lordes cristãos podiam se tornar cavaleiros “turcos” e igrejas resplandecentes podiam receber verbas da receita dos coletores de impostos imperiais. Por exemplo, um só dos documentos no livro de Kiel contém milhões de histórias. É a lista de membros da Sociedade de Pastores de Ovelhas Cristãos de Sofia, um ramo da vasta organização de aquisições que mantinha Istambul suprida de carne e de cereais no século XVI. Nesse documento, ao lado de 10 ourives, sete sapateiros, quatro taverneiros, dois lojistas, um ceramista, um barqueiro e um tecedor de pelos de bode, estão dois vendedores de sorbet, um dos quais trabalhava para a polícia secreta islâmica. Imagine o romance que poderia ser escrito sobre esse vendedor de sorbet! Mas quem se atreveria?

As terras fronteiriças eram cheias de espiões e de outros diligentes. Alguns tinham carreiras que eram verdadeiramente espetaculares. A maioria deles pagou com a vida. Ștefan Răzvan era filho de um cigano muçulmano do Império Otomano. Resgatado da escravidão pelo arcebispo de Iași, ele alcançou o posto de hetman (comandante) de uma horda cossaca. Com o suporte dos soldados montados, ele derrubou Aarão, o Tirano e se nomeou hospodar (príncipe) de Moldova, e se tornou o primeiro (e, pelo que eu saiba, o único) cigano chefe de estado da história. Seu reino não durou muito. Ele foi traído pelos seus apoiadores poloneses, que passaram a apoiar um candidato mais influenciável (e, coincidentemente, aparentado ao Baida por casamento). Em sua breve vida, Răzvan foi muçulmano, cristão, cigano, cossaco e rei. Sua vida acabou, como a vida de muitos violadores de divisas, com ele empalado na estaca de um traidor.

Mas nem todos que levavam a vida entre as fronteiras tinham um fim tão ignominioso. Para alguns, a divisa oferecia a oportunidade de praticar negócios honestos que não podiam ser praticados em casa. Uma dessas personalidades notáveis foi Salomea Regina Pilsztyn. Nascida em 1718 numa família católica onde hoje é a Bielorrússia, ela se casou com um médico luterano que trabalhava no Império Otomano. Por ser homem, ele não podia tratar as muçulmanas mais nobres. Salomea aprendeu medicina e passou a trabalhar como oftalmologista. Quando seu marido a abandonou, ela abriu o próprio consultório, antes em Edirne e depois em Sofia. Lá, Salomea entrou num negócio ainda mais lucrativo: o negócio dos resgates. Ela comprava oficiais de Habsburgo capturados dos escravistas otomanos e coletava os pagamentos das famílias deles, em troca de liberdade. Ela manteve um desses oficiais prisioneiros, um Alemão da Eslovênia chamado Pichelstein (Pilsztyun em polonês), para si mesma e casou com ele. Eles viajaram para São Petersburgo, onde ela curou damas da corte da imperatriz Anna. Depois de mais alguns anos de viagem, ela se divorciou de Pichelstein e o acusou de adultério, extorsão e tentativa de envenenamento. Agora sozinha, ela se estabeleceu num cargo de oftalmologista imperial no harém do sultão Mustafa III e depois se dirigiu à Crimeia, onde foi trabalhar no harém do Khan.

Pouco saberíamos da vida de Salomea se não fossem as memórias que ela nos legou. Elas passaram dois séculos na biblioteca de um castelo na Polônia até que foram redescobertas e publicadas no ano de 1957, com o título As Viagens e Aventuras da Minha Vida (My Life’s Travels and Adventures). Até hoje, o livro não foi traduzido para nenhum idioma e praticamente não há como obtê-lo fora da Polônia. É uma pena, uma vez que as memórias de Salomea constituem um dos poucos relatos autobiográficos feitos por uma mulher sob o domínio otomano e é quase certamente o único por uma mulher autônoma nos negócios.

Salomea se aventura de norte a sul e de sul a norte voluntariamente, mas outras pessoas não tinham esta sorte. Incontáveis cativos e prisioneiros de guerra despatriados passaram a vida ansiando pela terra natal perdida. Para esses infelizes, a maior esperança de voltarem às suas terras vinha na forma da intercessão divina, tal como no seguinte conto folclórico de Sarajevo:

Em Istambul, dorme o sultão. Em Belgrado, canta um galo. E em Budapeste, chora uma mulher. Ela chegou aqui vítima da guerra. O Príncipe Eugênio a raptou quando saqueou Sarajevo. Agora ela trabalha na casa dele. Todo dia faz o que lhe pedem e, toda noite, chora, tomada de saudades de casa.

O palácio de Eugênio tem muitas salas e muitas câmaras. A mulher de Sarajevo tem de limpar o interior de todas elas. Mas em uma delas, ela não pode nem entrar. Certo dia, quando o príncipe estava fora em uma de suas campanhas para o Imperador, a mulher foi tomada de curiosidade: roubou a chave da porta secreta. Quando ela abriu a porta, ela viu o seguinte: um caixão e uma cova aberta. Imediatamente, desmaiou. Quando acordou, um velho homem a observava, de pé. Ele usava um gorro e tinha um semblante bondoso. Ainda assim, ele se recusava a dizer seu nome. Em vez disso, ele a perguntou sobre a vida dela, e como acabou nesta cidade estranha, entre os giaours (infiéis). A mulher contou sobre sua vida em Sarajevo, e a pilhagem em sua cidade e como o Príncipe Eugene a havia trazido para o norte com sua comitiva. Então o velho homem a perguntou se ela conhecia a mesquita maghrebi do lado oeste de Sarajevo, um templo antigo dos dias de Isa Beg, fundado por um sheikh dervixe proveniente das terras do ocidente.

Ela não conhecia a mesquita e disse isso a ele. O ancião então perguntou: “Você gostaria de estar lá agora?” A mulher respondeu que sim. O ancião disse a ela: “Suba no meu manto e feche os olhos!” A senhora fechou os olhos e ficou em cima do manto. Quando ela abriu os olhos novamente, estava de volta em Sarajevo, em frente à mesquita maghrebi. Daquele dia em diante, a mulher compareceu nessa mesquita toda sexta-feira sem falta e rezou sempre pela alma do sheikh das terras do ocidente.

O tema da viagem instantânea com o auxílio de um intercessor mágico é um tema recorrente no folclore islâmico da Europa Oriental. Na Lituânia, uma história parecida era contada pelos tártaros de Lipka, um grupo de muçulmanos que falavam o idioma turco e se estabeleceram na região no século XIV e mantiveram sua fé (e seu idioma) desde então. Nesta versão, no entanto, a direção da viagem é a oposta: de Meca de volta para a terra natal de Lipka, perto de Navahrudak, onde hoje é a Bielorússia. O viajante é um tártaro rico que enriqueceu servindo de o caçador real para o rei da Polônia. Quem concede o pedido é seu próprio servo, um pastor chamado Kontuś, que havia dominado as habilidades místicas por meio de orações e o instrumento de voo é um cajado ou um bastão mágico. Como condição para conceder o pedido do seu mestre, o servo faz com que o caçador prometa uma coisa: que ele não contaria a ninguém do segredo. O caçador concorda e num piscar de olhos, está de volta em casa. No dia seguinte, o caçador esquece do voto e quebra a promessa. No momento que ele conta às outras pessoas sobre o dom de Kontuś, o pastor morre. Mas sua memória perdura. Ainda hoje, seu túmulo está na floresta saindo da vila de Łowczyce. É construído de pedras sem acabamento e dois carvalhos altos estão sobre ele, um na cabeça e outro aos pés. Flores espireias e amieiros crescem em toda área. Todo ano no Eid al-Adha e no Eid al-Fitr, multidões de peregrinos se reúnem em torno do túmulo para pedir ao santo Kontuś sua bênção.

Os Santos

Santos de feitos miraculosos estão entre os grandes unificadores do começo da era moderna no Leste Europeu. Seus túmulos atraem adoradores de todas as crenças. Eles distribuíam a misericórdia a todos os visitantes. Os Abdals Kalenderis, seguidores de Otman Baba, assustaram muitas pessoas com suas aparências estranhas. O próprio Otman Baba era tomado por louco, fugitivo ou escravo fugitivo, mas os Abdals levavam as coisas mais além. Eles raspavam seus cabelos, barbas e sobrancelhas e tatuavam seus corpos com cobras e os muitos nomes de Ali. Eles carregavam pandeiretas e tambores e sopravam em berrantes. Saias longas ou uma ou outra folha eram o suficiente de roupas. Eles carregavam machadinhas e bastões em seus ombros, ao lado de suas cuias de esmola.

Esses eram os amigos insubordinados de Deus – santos insanos, exaltados, cuja santidade podia se revelar atemorizante. Eles passavam muito tempo em reclusão e meditando nas montanhas ou em bosques e, ainda assim, pareciam estar em todo lugar dos Balcãs otomanos, ajudando os pobres e fracos, os impotentes, os destituídos e aqueles que deixavam suas casas e passavam a vagar. Nisso, eles seguiam o exemplo de seu mestre. Como um deles escreveu após a morte de seu Otman: “Não há lugar no vilaiete de Rum onde ele não tenha pisado e onde sua ajuda e santidade não tenham sido notadas, onde seus milagres não tenham sido vistos.”

Às vezes os milagres que eles realizavam era um tanto modestos. Na Albânia, Baba Bali certa vez encontrou um homem que levava um cavalo carregando vinho. O Baba perguntou o que o animal transportava e o homem, muito envergonhado para admitir a verdade, disse a ele que era mel. O santo respondeu que seria de fato mel daquele momento em diante, e quando o homem chegou onde estava indo, descobriu que todo o vinho havia virado mel.

Outros milagres eram deveras grandiosos. O Demir Baba, cuja terra natal era o norte da Bulgária, certa vez foi convocado pelo tsar de Moscóvia para subjugar um terrível dragão que devastava a terra. Quando Demir Baba chegou, comandou uma revoada de borboletas a pousar nos olhos do dragão, o cegando. Feito isso, ele pegou a língua bifurcada do dragão numa armadilha e o matou. Estarrecido pelo feito, o tsar ofereceu se converter ao Islam, mas Demir Baba objetou. Era o suficiente, disse, que eles dois eram filhos de Abraão.

Este ecumenismo era comum da parte dos santos. As obras que eles realizavam não eram apenas para uma religião. Era fácil encontrar São Jorge nas obras de um ghazi, ou em Elias, ou na eloquência dos místicos sufis. Esse tipo de sincretismo ecoou nas crenças populares. Noel Malcolm escreveu bastante sobre o que ele chama de “anfibianismo religioso” nos Balcãs, a capacidade presente em muitas pessoas de viver nos mundos cristão e islâmico ao mesmo tempo. Os cristãos e os muçulmanos comemoravam muitos dos mesmos feriados. No Natal, os muçulmanos da Albânia ajudavam os católicos a cortarem o lenho de Yule e os católicos participavam da comemoração do Bajram, o Eid al-Fitr. Nos dias dos santos, todos se reuniam nos santuários a céu aberto para louvar e receber bênçãos. Todos usavam a mesma medicina popular e buscavam remédios nas tradições uns dos outros. Os muçulmanos beijavam ícones cristãos e mandavam seus filhos para receberem batismos cristãos. Cristãos, no leito de morte, convidavam muçulmanos dervixes para lerem o Alcorão sobre eles.

Um frade franciscano que visitava Kosovo vindo do ocidente foi recebido numa casa de muçulmanos com as palavras: “Entre, Padre: em nossa casa temos o Catolicismo, o Islam e a ortodoxia.” Ele relatou, surpreso: “Parecia que eles se orgulhavam dessa diversidade de religiões.” Imagine o quão mais surpreso ele não ficaria se escutasse a pregação dos sufis bektashis, que costumavam dizer aos cristãos que “Mohammad e Cristo são irmãos”.

Sari Saltik

Entre os grandes santos islâmicos da Europa Oriental, ninguém assumiu mais identidades ou atraiu mais seguidores de tantas religiões quanto o camaleônico Sari Saltik. Dizem que ele viveu na metade do século XIII ou talvez um pouco depois. A origem do nome dele é obscura. Alguns dizem que é porque ele era loiro ou ruivo, outros dizem que era um apelido concedido pelos descrentes por causa da imensa força que ele tinha. O que se sabe com certeza é que ele teve mais identidades do que vidas e muito mais túmulos do que mortes.

Ele era ghazi, guerreiro, monge ermitão, milagreiro, padre, e até santo cristão. Ele cavalgava num cavalo mágico e empunhava um escudo impenetrável. Com sua espada de maneira (que pertencera ao Profeta Muhammad ﷺ) ele fendia pedras. Com seu cajado de cipreste, evocava fontes sagradas. Ele combatia cavaleiros cristãos, mas também jinns (gênios) e bruxas. Ele oferecia a todos esses a opção de se tornarem muçulmanos e só os matava quando se recusavam. Mas Sari Saltik não era apenas combatente; ele também pregava. Falava 12 idiomas e tinha uma língua de ouro com cada um deles. Muitas vezes ele se passou por rabino ou por padre. Conhecia os Evangelhos e a Torá tão bem que facilmente levava congregações às lágrimas. Em Gdańsk, segundo a lenda, ele matou São Nicolau, o patriarca da cidade, e vestiu suas roupas. Com este disfarce, levou muitos a se converterem ao Islam.

Essas narrativas parecem ter florescido de um cerne verdadeiro. Já no século XIV, o grande viajante de Tanger Ibn Batuta, viu o túmulo de Saltik sendo venerado em Babadag, hoje o leste da Romênia. Lá, recordavam dele principalmente como um guerreiro que havia convertido os tártaros e cumanos pagãos que viviam em Budjak por meio da espada. Por séculos, Babadag, “a montanha pai”, uma montanha solitária no delta do rio Danúbio, foi o núcleo da veneração de Saltik, visitado por sultões e pelo infatigável Evliya Çelebi. Mas não chegava a ser o único local onde Saltik era venerado. Na Bulgária, ele era associado a São Nicolau e ao Profeta Elias. Na Albânia, em Krujë, ele representava São George, o matador de dragões. Há uma lenda de um dragão que mantinha uma princesa refém. Ele vivia numa caverna durante o dia e numa igreja durante a noite. Saltik chegou na cidade disfarçado de um velho dervixe e, com sua espada de madeira, cortou as sete cabeças e as sete línguas do dragão. Então ele desapareceu, atravessando o mar até Corfu com dois passos largos. Na Bulgária, Saltik também era conhecido por ter matado um dragão de sete cabeças. Mas dessa vez um monge cristão roubou três das línguas e orelhas, e Saltik teve de passar por um julgamento na fogueira para provar quem realmente havia matado o dragão. O monge morreu queimado e Saltik saiu ileso. Como resultado, o rei de Dobruja se converteu ao Islam. O feito era comemorado em Kaliakra, num túmulo construído perto da muralha de um velho castelo, que fica num promontório na costa do mar Negro.

Como poderia Sari Saltik estar enterrado em Kaliakra e em Babadag? Isso é mais um de seus milagres. Antes de morrer, ele ordenou que seu corpo fosse colocado em sete caixões, pois sete reis disputariam a posse sobre o túmulo dele. Quatro eram de terras cristãs: a Moscóvia, a Polônia, a Boêmia e a Suécia. Três estavam em terras controladas pela fé: em Kaliakra, em Adrianópolis e em Babadag. Mas essa é apenas uma versão da história. Em outra versão, ele tinha 12 túmulos em 12 terras. Em outra ainda, eram 40 caixões, cada um com seus restos mortais sagrados. (Ele teve outras vidas também. Santos posteriores alegavam que eram ele em vidas passadas. Certa vez, em Babaeski, o local de um dos túmulos de Sari Saltik, Otman Baba viu um candelabro que fora aceso pelo próprio Sari Saltik ainda aceso após muitos anos. Ele o extinguiu com um gesto e disse às pessoas que viram “eu sou quem acendeu esse candelabro – Sari Saltik e o campeão do universo.” Mas, novamente, Otman sempre gostou de falar. Quando ele deixou o Azerbaijão rumo aos Balcãs, o escutaram dizendo, “Vou arrear uma nuvem, transformar o relâmpago num chicote e irei de volta para Rum.” Um jumento seria mais fácil.

Conclusão – Coda

Metamorfo durante a vida, Satik se tornou ainda mais pródigo após a morte. Se multiplicou até que pudesse afirmar que possuía um império espiritual, que ia de Gdanśk até Kaliakra e de Krujë até Babadag.

Esta Europa, onde cristãos e muçulmanos permutavam roupas e onde borboletas podiam derrotar dragões foi, em grande parte, esquecida. Uma pena, pois contém lições para nós – lições sobre acolher diferenças e aceitar misericórdias. Essas são lições importantes num período em que líderes na Polônia, na Sérvia, na Hungria e em mais nações do que a medida adotam o discurso de que os muçulmanos não têm lugar na Europa, nem hoje e nem no passado. O trabalho de recordar é árduo, mas é necessário – e traz frutos. Assim, uma última história.

É ano de 1621, o final da Primeira Guerra de Chosim – entre o Império Otomano e Comunidade Polonesa-Lituana. É necessário negociar um tratado de paz. O senado polonês aponta como emissário o príncipe Zbaraski, um dos homens mais ricos do reino e outrora pupilo de Galileu. Ele chega em Istambul com uma esplêndida comitiva, distribuindo presentes generosamente. Ainda assim, os janízaros estão inquietos e mostram a ele a cabeça embalsamada do vizir que haviam acabado de destituir, e também as de muitos de seus predecessores. É um aviso, que Zbaraski compreende e diz a eles: “Que a minha cabeça descanse ali também se eu não os servir fielmente.”

No dia seguinte, o sultão o recebe. Zbaraski guardou o melhor de seus presentes para essa ocasião. Ele apanha um velho pergaminho de um baú dourado. É o último tratado entre a Polônia e a Turquia, assinado quase um século atrás. Os dignitários turcos se reúnem em volta para encostar no pergaminho que havia sido manuseado pelo próprio Suleiman, o Magnífico. Zbaraski lê as palavras de conclusão do pacto, do Legislador, dirigidas ao rei polonês Zygmunt, o Velho:

Tenho setenta anos e você é velho também. A linha da nossa vida está no fim. Logo nos encontraremos em terras mais felizes, onde nos sentaremos, saciados de fama e glória, próximos do Altíssimo, eu ao lado direito dele e você ao esquerdo, e conversaremos sobre a nossa amizade. Seu emissário, Opalinski, lhe contará sobre a grande felicidade da sua irmã e da minha esposa. Eu recomendo-o calorosamente à Vossa Majestade. Adeus.

Neste momento, o cronista nos diz, todos os presentes choraram profusamente. Por um momento, eles estavam na intimidade de uma visão de cortesia entre nações e de respeito, quase bela demais para pudessem aguentar. Por um momento, podemos partilhar dela também.

Fonte: https://lareviewofbooks.org/article/a-silver-thread-islam-in-eastern-europe/