Um autor franco-senegalês levantou a voz em protesto. Tidiane N'Diaye acusa os árabes de não reconhecerem sua responsabilidade pelo comércio de escravos. Ele exige uma explicação, mas lança muito pouca luz sobre a situação. Uma resenha de Moritz Behrendt.

Quando um livro trata da África, às vezes é necessário um pouco de sensacionalismo para que o mesmo sequer receba atenção. Neste caso, as palavras-chave "GENOCÍDIO" e "COMÉRCIO DE ESCRAVOS" podem ser lidas no título em letras maiúsculas. E como se isso não bastasse, a palavra genocídio também é "ocultado", insinuando uma conexão "muçulmana" inerente ao comércio de escravos.

Quando se trata da África, não é necessário ficar tão perto da verdade. Pelo menos, essa deve ter sido a ideia principal da editora Rowohlt quando decidiram publicar a obra do economista e antropólogo franco-senegalês Tidiane N'Diaye.

O autor tenta reescrever a história do comércio de escravos com duas teses polêmicas. Em primeiro lugar, N'Diaye afirma "que o comércio de escravos foi conduzido impiedosamente por ladrões muçulmanos árabes e a jihad que eles empreenderam teve um efeito ainda mais devastador na África Negra que o comércio escravista transatlântico.’’ Em segundo lugar, ele tenta demonstrar que esta contínua "campanha de destruição", que durou do século VI ao XX, foi e continua a ser sistematicamente "encoberta".

Uma legitimidade moral para a colonização da África

O problema de N'Diaye, entretanto, é que sua prova para a primeira tese contradiz fundamentalmente sua segunda afirmação. Para mostrar a brutalidade dos traficantes de escravos na costa da África Oriental e na região do Saara, o autor cita quase que exclusivamente os escritos de exploradores europeus como Henry Morton Stanley e Gerhard Rohlfs. N'Diaye deixa de mencionar que seus livros eram os best-sellers propagandistas de suas próprias épocas.

O comércio de escravos "muçulmano" era um tópico de discussão acalorada na Europa no final do século XIX e forneceu, fundamentalmente, uma legitimidade moral para a colonização da África.

No entanto, a aceitação acrítica dessas fontes por N'Diaye, sem muita reflexão, não desqualifica necessariamente sua afirmação de que o comércio de escravos "muçulmano" foi mais abrangente que o comércio transatlântico nos danos causados à África. Há ampla pesquisa histórica sobre este tema. Os números, pelo menos, parecem confirmar a tese de N'Diaye. Hoje é aceito que cerca de 29 milhões de pessoas foram exportadas da África Negra como escravos - 12 milhões pelo comércio de escravos transatlântico, 9 milhões pelo comércio de escravos transaariano e 8 milhões da costa oriental da África.

Teses turbulentas e nenhum debate acadêmico

N'Diaye adota estes números, mas as apresenta como se fossem algo novo. Ele parece estar completamente desinteressado no debate acadêmico sobre as várias formas de tráfico de escravos e suas consequências para a África. Ele ignora quase completamente os últimos 30 anos de literatura sobre o assunto. Isso é uma pena, pois o livro de N'Diaye carece de uma discussão real sobre se e por que o comércio de escravos "árabe-muçulmano" era mais terrível do que as outras formas de comércio de seres humanos.

N'Diaye também não explica suficientemente por que se refere a um lado como "árabe-muçulmano" e ao outro não como "europeu-cristão", mas sim como o comércio de escravos "transatlântico". É verdade que os estudiosos islâmicos justificaram o comércio de não-crentes por séculos. O dogma religioso também velou a motivação racista para o sequestro de africanos negros. Os apologistas muçulmanos e cristãos, no entanto, também se referiram à maldição de Noé sobre Ham, oferecendo uma interpretação misantrópica que justificava um papel subserviente para os negros africanos.

Se N'Diaye realmente quisesse focar no assunto da "escravidão muçulmana", ele também teria que protestar contra as práticas do Califado de Sokoto no século XIX. De acordo com Paul Lovejoy, um respeitado pesquisador sobre escravidão, esta foi a "segunda ou terceira maior sociedade escravista da história moderna". O califado, que fica ao norte da atual Nigéria, só recebe uma menção de passagem por N'Diaye, provavelmente por ter dificuldade em atribuir aos árabes as atrocidades ali cometidas.

O estilo de vida excessivo e a preguiça dos árabes

Em vez disso, ele repete incessantemente sua acusação central. “Os árabes muçulmanos foram os mais assassinos de todos os envolvidos no comércio de escravos”, escreve N'Diaye, sem especificar se ele se refere à escravidão na corte dos reis marroquinos no século XVII, aqueles forçados a cuidar dos campos no Iraque do século VIII, ou ainda aos escravos nas plantações de Zanzibar no século XIX, quando a ilha se tornou o mais importante exportador de cravo.

Todos os três foram crimes brutais, mas, sob um exame mais minucioso, eles tinham pouco em comum. Tidiane N'Diaye tende a ignorar essas descontinuidades históricas, saltando de região em região e de século em século. O que é importante para ele são os atores. “A duração do tráfico de escravos do século VII ao XX e da escravidão árabe muçulmana na África tem a ver com as tradições dos próprios árabes, que por causa de seu estilo de vida excessivo e preguiça não poderiam se sustentar sem o sangue e músculo de seus servos.”

Ao recorrer a tais explicações culturais, N'Diaye erra completamente o alvo. Assim, ele recorre a meios que em outro lugar condena justificadamente. O racismo é de fato um grande problema nos países árabes, ainda hoje. Os negros africanos são aceitos, na melhor das hipóteses, apenas no papel de servos em países como a Arábia Saudita, a Líbia e até mesmo o Líbano. Portanto, Tidiane N'Diaye exige que o mundo árabe enfrente o capítulo mais sombrio de sua história e enfrente a escravidão. Esse desejo se justifica, mas é altamente duvidoso que a publicação de um panfleto carregado de preconceitos e cheio de imprecisões históricas ajude a situação.

NT: Outra tese apresentada pelo autor é da ‘’castração generalizada’’ de negros como explicação do motivo de não serem numerosos em países árabes. Abordamos este assunto com mais profundidade neste artigo: Eunucos: ‘’Castrados pelas Igrejas e vendidos aos Árabes’’

Fonte:

BEHRENDT, Moritz. Tidiane N’Diaye’s “The Veiled Genocide”, tr. BERGERON, John. Disponível em: < https://web.archive.org/web/20210113102106/https://en.qantara.de/content/tidiane-ndiayes-the-veiled-genocide-selective-theses-on-the-arab-slave-trade >. Acesso em 17 de abril de 2021.