Após a conquista cristã do Al-Andalus, as condições de vida dos muçulmanos tornam-se progressivamente mais difíceis, perdendo todos os seus direitos e liberdades, culminando com as perseguições, as conversões forçadas e as expulsões. 

Não há dúvida que os muçulmanos capitularam, mas muitos deles permaneceram no território, constituindo uma comunidade numerosa e resistente. Apesar dos esforços dos cristãos, continuam profundamente ligados ao Islão. 

(VINCENT, 1981, 0bra citada)

As condições duríssimas em que os mouriscos resistiram e a própria fatalidade que marcaram o seu destino, a sua resistência possuía um carácter extremamente clandestino e desesperado, marcado pelo ambiente de terror em que viviam.

Muitos deles, os que optam pela luta armada contra os cristãos, aderiram ao chamado “bandoleirismo mourisco”, de caráter violento e marginal, organizando-se em três grupos distintos: Corsários, Mânfios e Gandulos.

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Mouriscos em Granada . Gravura de Joris Hoefnagel, 1564

A marginalização do muçulmanos em Al-Andalus

Após a conquista cristã do Al-Andalus as populações muçulmanas urbanas foram expulsas dos recintos muralhados e confinadas às mourarias, bairros periféricos, onde lhes foi garantida liberdade religiosa e cultural. Os Muçulmanos deste período são conhecidos pelo nome de Mudéjares, “mudajjan”, ou “domesticados”.

Os cristãos não lhes reconhecem direitos de plena cidadania, não lhes permitindo a saída da Mouraria após o pôr-do-sol, não podiam frequentar casas de putaria ou tabernas e se se ausentassem do país sem licença real viam todos os seus bens confiscados.

Eram obrigados a diferenciar-se dos cristãos através das roupagens, como por exemplo: 

[…] no toucado teriam uma marca branca, as aljubas seriam com dois palmos de largura, os albornozes haveriam quartos diante […] capas, balandraus, capuzes e escapulários assinalados com o sinal do Crescente, em vermelho, cozido no ombro. O cabelo deveria ser rapado à navalha. 

(ALVES, 2007, pág. 124-125)
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“Trajes de passeio das mulheres mouriscas em Granada”. Desenhos de Christoph Weiditz, 1529

Mas a sua organização, especialização profissional e produtividade garantiram-lhes certos direitos, chegando a ser referidos pelo Rei como “os meus mouros” e, através de providência real, não eram obrigados à conversão ao Cristianismo, não podiam ser maltratados, nem as suas sepulturas violadas.

No entanto, muitos mouros abandonam as cidades e instalam-se no campo, onde a situação era bastante mais favorável, como é exemplo a dos chamados saloios da região de Lisboa.

A origem do termo “saloio” não reúne consenso, sendo a explicação mais plausível a que defende a derivação da palavra صلاة “salat” ou “oração”, já que designava aqueles que rezavam 5 vezes por dia, “fazendo o çala”, e que eram chamados, na época, “çaloyos”. Esta seria também a origem de “çalayo”, nome do imposto pago sobre o pão na região de Lisboa.

Outra explicação é a origem do termo na palavra ساحلي “saheli”, que significa “habitante do litoral”. Outra ainda é a origem em سلاوي “salaui” ou habitante da cidade marroquina de Salé, designação local para a população rural.

As classes mais abastadas preferiram fugir para o Norte de África, onde puderam refazer as suas vidas de forma digna, fugindo também dos pesados impostos que foram decretados sobre os mouros, correspondendo a uma “sangria intelectual” na sociedade.

[…] as classes mais elevadas dos muçulmanos, sobretudo intelectuais, homens de ciências e poetas, terão sido os mais propensos a partir para paragens onde a bandeira do Crescente ainda flutuasse e onde as suas qualificações fossem melhor apreciadas. Quem ficou foram sobretudo os de condição mais humilde: camponeses, agricultores, artesãos, pescadores e pequenos mercadores, que se foram deixando ficar por apego à terra. 

(ALVES, 2007, pág. 122)

As conversões forçadas ao catolicismo

Com a obrigatoriedade de conversão ao catolicismo, no reinado de D. Manuel I, os mudéjares passaram a denominar-se mouriscos. No entanto, essa conversão era realizada com grande “reserva mental”, como refere Adalberto Alves, já que não se processava por fé ou opção própria, mas por imposição.

A conversão forçada, por outro lado, não é acompanhada por quaisquer medidas de integração religiosa e social, como mostra Alves:

[…] os mouriscos, caídos nas malhas da Inquisição, revelaram, (…) na sua quase totalidade, ignorar os preceitos e práticas mais elementares da doutrina cristã.

(ALVES, 2007, pág. 142)

A conversão forçada era acompanhada da proibição de muitas das práticas sociais árabes, como o banho frequente ou não comer porco, ações que eram suscetíveis de constituírem denúncia à Inquisição. Com a proibição da própria língua Árabe e do uso dos trajes tradicionais, são negadas aos mouriscos todas as réstias de ligação ao seu passado identitário.

A conversão dos mouros, transformando-os em mouriscos, não passou de uma estratégia desajeitada de uniformização do reino, pois a ideia de um só estado, um só povo e uma só fé, pagou o preço nefando da liquidação gradual de todas as minorias. 

(ALVES, 2007, pág. 142)

A conversão forçada ao cristianismo criou uma população híbrida, que era obrigada a abdicar da sua identidade, sem referências ou perspectivas de futuro.

Essas pessoas era obrigadas a se refugiarem em subterfúgios para teimosamente guardar fragmentos das suas origens, como iludir as denuncias à Inquisição colocando alheiras de aves nos fumeiros, utilizando a escrita aljamiada, escrevendo o português com caracteres árabes, e adotando expressões encapotadas, como “olá”, “olé” (Wa AllahDeus) ou “olarilolé” (La Ilaha Ila AllahNão há divindade senão Deus).

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As-Sayyida Al-Hurra, a “Senhora Livre”, símbolo da resistência mourisca no mar

Os Bandoleiros Mouriscos

Mas os que não se escondiam, os que nada tinham nada a perder e os que faziam da vingança o seu modo de vida, optavam pela via da resistência armada, ficando conhecidos na história como “bandoleiros mouriscos”, designação adotada, sobretudo, para referenciar os resistentes da atual Andaluzia Espanhola.

Muitos deles, os chamados Corsários, aderiram à guerra do corso, travada no mar e em incursões às povoações costeiras, integrando as tripulações dos “xavecos” ou servindo de batedores em terra, onde saqueavam e faziam cativos.

Outros, os Mânfios, tornaram-se salteadores de estrada, atacando os cristãos e roubando os seus pertences. Outros ainda, os Gandulos, organizaram-se em bandos de marginais dentro das cidades.

O corso ou pirataria constituía a forma mais “institucionalizada” do bandoleirismo mourisco, já que, ao operar a partir do exterior do território e ser promovido pelas próprias autoridades dos países em que instala, assume uma dimensão de inequívoca relevância.

Essa relevância partia dos meios logísticos que a envolvia, pelo próprio reconhecimento político que assumia, chegando a deter autonomia e representação diplomática, caso da Republica Corsária do Bouregregsediada em Rabat-Salé, e pelo volume das riquezas movimentadas.

Estima-se que os corsários de Salé, só entre 1618 e 1624, teriam feito 6.000 cativos, atacado 1.000 navios e pilhado mercadorias num total equivalente a cerca de três mil milhões de euros em moeda atual.

Atuavam sempre do mesmo modo: conduzidos por um mourisco emigrado, desembarcam num lugar deserto e tomam uma aldeia; após saqueá-la e matar alguns cristãos, levam cativos os restantes. Contam-se às centenas as operações deste tipo […] muitas delas provocaram a ruína de uma ou duas aldeias; o êxito da maior parte das incursões deveu-se à cumplicidade da população mourisca local, que frequentemente conhecia de antemão os preparativos da expedição. 

(VINCENT, 1981, 0bra citada)

Entre os mais famosos corsários mouriscos destacam-se: Aicha Banu-Rachid, conhecida como As-Sayyida Al-Hurra, a “Senhora Livre”, uma granadina instalada em Tetuan, que atacava principalmente os navios portugueses que faziam a rota Lagos-Ceuta, ou os corsários de Salé Abdelkader Perez e Ibrahim Vargas.

Ao contrário, os Mânfios, termo derivado do Árabe Manfi, que significa desterrado ou proscrito, são uma forma de bandoleirismo marginal, constituído por grupos formados por 40 a 50 indivíduos, sediados, sobretudo, em zonas desabitadas e de difícil acesso, como as serranias, que se apoiavam na cumplicidade dos pastores para obter informações sobre as suas presas.

A sua atividade na Andaluzia do século XVI encontra-se bastante documentada, marcando presença constante na Serra Morena, Serra de Gádor e Serra de Ronda, e é claro na Serra Nevada, onde organizaram uma resistência sediada nas aldeias das Alpujarras.

O escritor Richard Ford tem uma frase que espelha bem a ligação dos bandoleiros à própria imagem de Espanha:

“Uma panela sem toucinho é tão insípida como um livro sobre Espanha sem bandoleiros”

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Gravura do mânfio Harun El Geniz

Os Mânfios constituem o bandoleirismo por excelência, e a sua actividade tinha uma forte componente política, já que apenas atacavam os cristãos, assumindo-se como guerrilheiros da esfera mourisca.

A coroa espanhola procurou muitas vezes combatê-los com recurso aos cristãos-novos, que obrigava a organizarem-se em milícias de batidas aos Mânfios. Bernard Vincent estabelece uma relação direta entre a atividade dos Mânfios e a dos Piratas. Vincent refere que:

[…] a similaridade entre ambos acentua-se pelo facto de que se manifestam de forma incessante durante o século XVI e se apoiam mutuamente; enquanto os piratas dispõem de uma verdadeira rede de informação no interior de Espanha, cujos melhores agentes são os mânfios, estes frequentemente contam com o reforço dos piratas, principalmente com os mouriscos que fugiram para o Norte de África e regressaram anos depois, ou com o apoio de elementos de expedições fracassadas e que não tinham outro recurso senão colocarem-se a monte. 

(VINCENT, 1981, 0bra citada)

O mesmo defende Fernand Braudel, ao afirmar que:

 […] o bandoleirismo é irmão da correria marítima.

(BRAUDEL, 1966, obra citada)
Aben Humeya
Aben Humeya, líder da rebelião das Alpujarras

Muitos Mânfios ficaram famosos como, por exemplo, Acetile e El Cacín, que assolavam a serra de Gádor, Marcos El Zamar, Abenduza el Cañari, os irmãos Lope e Gonzalo el Seniz (Harun El Geniz) e Abdalá Abenabó, que lideraram autênticas guerrilhas na Serra Nevada, Antonio el Manco, El Meliche e Lazeraque, particularmente ativos na Serra de Ronda, ou Jerónimo Bautista, que atuava na Serra Morena.

Mas os mais famosos de todos os chefes mânfios foram: Antonio Aguilar el Joraique, de Almeria, que mantinha importantes contatos com o Norte da África, e, sem dúvida, Aben Farax e Aben Humeya, este último um mourisco de nome Fernando de Córdoba y Válor convertido ao Islã, líder da revolta de 1568 nas Alpujarras, cuja ação ultrapassa em muito o carácter marginal dos mânfios para se colocar no campo da sublevação armada de um povo.

O mânfio é um herói da liberdade para os mouriscos, e quiçá até um homem santo aos olhos dos muçulmanos; daí o prestígio de que gozam muitos deles. Trata-se em definitivo de um problema inscrito num conflito de civilizações. 

(QUIRÓS e ARDILA, 1973, obra citada)

A sua atividade foi de tal ordem, que na cidade de Ronda existe o “Museu do Bandoleiro”, onde os seus hábitos e armas podem ser observados. Os Gandulos, do Árabe Ghandur, ou vadio, eram membros de milícias urbanas criadas em resposta ao clima de terror que se vivia nas cidades. 

Os Gandulos são os membros de uma milícia urbana que geralmente recrutava homens jovens.

(VINCENT, 1981, 0bra citada)

Os gandulos surgem no período mais duro da existência dos mouriscos nas cidades, segregados, frequentemente insultados e agredidos, remetidos aos trabalhos mais pobres, como andar à palha ou trabalhar com bestas no transporte de cargas, a realizar trabalhos domésticos ou, simplesmente, votados à mendicidade.

Os mais letrados sobreviviam ensinando a ler e a escrever. Muitos músicos e bailadores também escapavam da miséria, especialmente as mulheres dançarinas.

Em Lisboa, grande parte dos jovens caía na marginalidade e delinquência.

[…] perseguidos e vigiados, a marca da infelicidade e da nostalgia trespassa as suas existências caminhando pelas sendas amargas da exclusão, da marginalidade, e, por fim, da obnubilação […] transformados em marginais, rufiões e desclassificados, ébrios de fatalidade, frequentavam ainda Alfama e Mouraria vagueando como fantasmas gastos, sob a pálida memória dos seus antepassados. 

(ALVES, 2007, pág. 141)

Deste meio marginal surge o Fado, canção com caracter de lamento saudosista, cantada em ambientes restritos e clandestinos, na calada da noite. O Fado encaixa perfeitamente enquanto expressão desta marginalidade dos mouriscos urbanos, gandulos ou simplesmente cidadãos espoliados, atacados e sem futuro.

A arabidade que neles subsiste está-lhes, porém, sob a pele, em atavismos culturais que veiculam, de modo quase inconsciente, e em formas artísticas que cantam a sua sorte de fustigados do destino e vencidos da vida. Inventam um género musical e com ele cantam o seu fado.

(ALVES, 2007, pág. 145)

Bibliografia:

  • ALVES, Adalberto. “Em busca da Lisboa Árabe”. CTT Correios de Portugal, 2007
  • BRAUDEL, Fernand. “La Méditerrannée et le monde méditerranéen a l’époque de Philippe II”. Paris, 1966
  • QUIRÓS, C. Bernaldo e ARDILA, L. “El bandolerismo andaluz”. Madrid, 1973
  • VINCENT, Bernard. “El Bandolerismo Morisco en Andalucia (Siglo XVI)”. Estudios sobre el mundo árabe e islâmico contemporáneo. 1981

Fonte: