Texto de: Mehdi Hassan

Nos últimos meses, intensificaram-se os apelos clichês pela reforma do Islã, uma fé de 1.400 anos. “Precisamos de uma reforma muçulmana”, anunciou o Newsweek. “O Islã precisa de uma reforma interna”, disse o Huffington Post.

Após o massacre de janeiro, em Paris, o Financial Times acenou para os ocidentais que acreditam que o presidente secular do Egito, Abdel Fattah el-Sisi, “poderia emergir como o Martinho Lutero do mundo muçulmano”

Isso pode ser difícil, dado que Sisi, nas palavras do Human Rights Watch, aprovou “ataques letais premeditados” a manifestantes, em grande parte desarmados, o que poderia significar “crimes contra a humanidade”.

Depois, há Ayaan Hirsi Ali, a autora nascida na Somália, ateia e ex-muçulmana, lançou seu mais novo livro intitulado Herege: Por que o islã precisa de uma reforma imediata. Ela apareceu em estúdios de TV e em páginas de artigos para pedir aos muçulmanos, tanto liberais quanto conservadores, que abandonem algumas de suas crenças religiosas e que se unam a um ”Lutero muçulmano”.

Se os muçulmanos predominantes responderão positivamente a um pedido de reforma de uma mulher que descreveu sua fé como um “culto destrutivo e niilista de morte” que deveria ser “esmagado”, e sugeriu que Benjamin Netanyahu recebesse o prêmio Nobel da paz, é uma outra questão.

Esta narrativa não é nova. O colunista de celebridades do New York Times, Thomas Friedman, pediu uma reforma islâmica em 2002. Os acadêmicos dos EUA, Charles Kurzer e Michaelle Browers, traçaram as origens dessa “analogia da Reforma” até o início do século XX, observando que:

[…] os jornalistas conservadores estavam tão ansiosos quanto os acadêmicos de esquerda em procurar Luteros muçulmanos.

Aparentemente, qualquer pessoa que queira vencer a guerra contra o extremismo violento e salvar a alma do Islã, sem mencionar transformar um Oriente Médio estagnado, deve ser a favor desse processo.

Afinal, o cristianismo teve a reforma, assim continua o argumento, que foi seguida pelo iluminismo, pelo secularismo, liberalismo e democracia europeia moderna. Então, por que o Islã não pode fazer o mesmo? E porque o Ocidente não se ofereceria para ajudar?

No entanto, a realidade é que falar de uma reforma no estilo cristão para o Islã é muito improvável. Vamos considerar essa ideia de um “Lutero muçulmano”. Lutero não pregou apenas 95 teses na porta da igreja do castelo em Wittenberg, em 1517, denunciando abusos clericais dentro da igreja católica.

Ele também exigiu que os camponeses alemães que se revoltassem contra seus senhores feudais fossem “mortos a tiros”, comparando-os com “cães loucos”, e escreveu o livro Sobre os judeus e suas mentiras, em 1543, no qual ele se referia aos judeus como “o povo do diabo” e chamava para a destruição de casas e sinagogas judaicas.

Como observou o sociólogo e estudioso do Holocausto, Ronald Berger, Lutero ajudou a estabelecer o anti-semitismo como “um elemento-chave da cultura e da identidade nacional alemã”. Dificilmente um garoto propaganda de reforma e modernidade para muçulmanos agora.

A Reforma Protestante também abriu as portas para o derramamento de sangue em uma escala sem precedentes em todo o continente. Esquecemos as guerras religiosas francesas? Ou a guerra civil inglesa? Dezenas de milhões de inocentes morreram na Europa.

Acredita-se que até 40% da população da Alemanha tenha sido morta na guerra dos trinta anos. É isso que queremos? Que um mundo de maioria muçulmana, já atormentado por conflitos sectários, ocupações estrangeiras e o amargo legado do colonialismo, passe pelo que passou a Europa, tudo em nome de reforma, progresso e até liberalismo?

O Islã não é o Cristianismo. As duas religiões não são análogas e é profundamente ignorante, para não mencionar paternalista, fingir o contrário ou tentar impor uma visão eurocêntrica e linear da história em vários países de maioria muçulmana na Ásia ou na África.

Cada religião tem suas próprias tradições e textos; os seguidores de cada religião foram afetados pela geopolítica e processos socioeconômicos de diversas maneiras.

As teologias do Islã e do Cristianismo, em particular, são mundos à parte: a primeira, por exemplo, nunca teve uma classe clerical de estilo católico respondendo a um papa nomeado divinamente. Então, contra quem a “reforma islâmica” será direcionada? Na porta de quem as ”95 fatwas” serão pregadas?

A verdade é que o Islã já teve sua própria reforma, no sentido de uma remoção de acréscimos culturais e um processo de suposta “purificação” religiosa. E não produziu uma tolerante, multirreligiosa e pluralista utopia, uma verdadeira Escandinávia no Eufrates. Em vez disso, produziu o reino da Arábia Saudita.

Não foi a reforma exatamente o que foi oferecido às massas da Arábia, por Muhammad Ibn Abdul Wahhab, o pregador itinerante de meados do século XVIII que se aliou à Casa de Saud? Ele ofereceu um islamismo austero, purificado daquilo que ele acreditava serem inovações, que rejeitava séculos de um processo intelectual islâmico, bem como a autoridade dos eruditos tradicionais ou autoridades religiosas.

Alguns podem argumentar que, se alguém merece o título de Lutero muçulmano é Ibn Abdul Wahhab que, aos olhos de seus críticos, combinou o puritanismo de Lutero com a antipatia do monge alemão em relação aos judeus.

A controversa postura de Ibn Abdul Wahhab sobre a teologia muçulmana, escreve seu biógrafo Michael Crawford, “o fez condenar grande parte do Islã de seu próprio tempo” e o levou a ser chamado de herege até por sua própria família.

Não me interpretem mal. Obviamente, são necessárias reformas em todo o mundo de maioria muçulmana em crise: política, socioeconômica e, sim, religiosa também. Os muçulmanos precisam redescobrir sua própria herança de pluralismo, tolerância e respeito mútuo, incorporados, por exemplo, na carta do Profeta aos monges do mosteiro de Santa Catarina, ou na convivência ou coexistência da Espanha muçulmana medieval.

O que eles não precisam é de preguiçosos pedidos de reforma islâmica de não-muçulmanos e ex-muçulmanos, cuja repetição ilustra meramente como superficial e simplista, a-histórica e até anti-histórica é a mentalidade de alguns dos principais comentaristas do Ocidente em relação ao tema.

Parece muito mais fácil para eles reduzir o complexo debate sobre extremismo violento a uma série de clichês, slogans e frases sonoras, em vez de examinar as causas ou tendências históricas. Ainda mais fácil defender os críticos mais radicais e fanáticos do Islã, ignorando as vozes dos principais estudiosos, acadêmicos e ativistas muçulmanos.

Hirsi Ali, por exemplo, recebeu uma série de elogios e perguntas cheias de afagos em suas entrevistas na mídia americana, do New York Times à Fox News. (“Uma heroína de nossa época”, dizia uma manchete no Politico.)

Frustrantemente, o único comediante, Jon Stewart, no The Daily Show, estava disposto a apontar para Hirsi Ali que seu herói reformista queria uma “forma mais pura de cristianismo” e ajudou a criar “cem anos de violência e caos”.

Lutero vai me desculpar, mas se tem alguém que quer fazer o mesmo com a religião do Islã hoje, é o líder do Isis, Abu Bakr al-Baghdadi, que afirma estuprar e saquear em nome de uma “forma mais pura” do Islã. Aliás, ele também não é fã dos judeus. Aqueles que pedem de maneira tão simplista por uma reforma islâmica, deveriam ter cuidado com o que desejam.

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