Texto de: Guilherme Freitas

A página Tradição Medieval postou recentemente um artigo de um site de Apologistas para “refutar as falácias” da página História Islâmica, que segundo eles é uma página de “apologistas do Islã”, quando na verdade é uma página de divulgação do legado histórico da religião muçulmana e dos muçulmanos, e não uma apologia dos mesmos.

 Na presente resposta, analisaremos os principais pontos levantados pelo artigo, não podendo abarcar o mesmo em sua integralidade para não se transformar em algo maciço e enfadonho de ler devido ao seu cumprimento.

Primeiramente, o autor do artigo diz que “o islamismo matou a ciência”, afirmando ainda que só o “judaísmo e o cristianismo proporcionaram uma base viável para a investigação científica”. Tal afirmação está muito longe da verdade, e diferentemente do artigo original, usaremos fontes bibliográficas para provar o que falamos.

“Meme” debochando da página História Islâmica feito pela “Tradição Medieval”.

 Para exemplificar, toda fonte acadêmica honesta e atualizada cita a importância dos muçulmanos para o desenvolvimento científico, inclusive em conjunto com judeus e cristãos.

O grande medievalista Richard A. Fletcher por sua vez diz que o papel criativo da Espanha Islâmica na formação cultural e intelectual da Europa possui uma história marcante. Exemplo disso são os conhecimentos científicos e filosóficos dos Gregos e Persas da antiguidade que foram herdados pelos Árabes no Oriente Médio. Tais obras foram traduzidas, codificadas e elaboradas por estudiosos árabes, sendo o seu conjunto difundido através do mundo islâmico culturalmente unificado.

Diferentemente do que afirmaram no post, houveram várias contribuições originais por parte dos árabes-muçulmanos. Para exemplificar, citamos aqui a área da filosofia no que diz respeito aos comentadores árabes, como Averróis, tendo um grande impacto posteriormente nas obras do grande filósofo e teólogo escolástico, São Tomás de Aquino. Apesar das discordâncias do Aquinate com o filósofo muçulmano, como bem cita o estudioso da história da filosofia, Peter Adamson, ele certamente se beneficiou dos comentários do mesmo.

A MÚSICA NO ISLÃ: ZIRYAB, O “Pássaro Negro”

Os primeiros pontos levantados pelos “tradicionalistas” é relacionado à música.

Em primeiro lugar, quando se fala sobre música no mundo islâmico, é praticamente impossível não citar o grande músico Abul-Hasan Ali ibn Nafi. Também conhecido como Ziryab e as vezes chamado de Pássaro Negro, nasceu no Iraque em 789 e em certo momento de sua vida se mudou para al-Andaluz, a Espanha islâmica. Lá, o mesmo revolucionou a música.

A sua chegada em al-Andaluz coincidiu com um novo ímpeto do califa Abd Al-Rahman II em impulsionar a cultura, levando a Espanha islâmica para um de seus mais brilhantes períodos. Ziryab foi o primeiro a introduzir o alaúde na Espanha, assim como no resto da Europa. Ele, assim como al-Kindi, recebe os créditos de ter introduzido a quinta corda no instrumento e também por substituir a palheta de madeira por uma pena de águia.

Estabeleceu também o primeiro conservatoire do mundo, que incluía os estudos de harmonia e composição, que mais tarde iria se desenvolver ao longo dos séculos. No que diz respeito à teoria musical, Ziryab reformulou a mesma totalmente, “deixando livre” os parâmetros de métrica e de rítmica, criando assim novas formas de expressão: as “suítes” mwashah, zajal, e nawbah. Dizem que sabia mais de mil músicas, tendo composições próprias em seu repertório.

Não somente isso, Ziryab foi um pop star de sua época, influenciando não apenas a música, mas também em alguns costumes sociais, como a maneira de se vestir e o corte de cabelo. Além disso, acabou tendo influências significativas na culinária, tanto na questão do tempero dos alimentos como até mesmo nos utensílios utilizados na cozinha!

Ziryab não foi o único, mas a sua vida serve como exemplo de que o artigo original, além de não estar embasado em fontes bibliográficas, é completamente ignorante na história islâmica.

MÚSICA NAS FONTES ISLÂMICAS

Agora, abordaremos a utilização das fontes islâmicas no artigo postado na página Tradição Medieval.

Abaixo contém uma lista parcial de sábios importantíssimos do Islã ortodoxo sunita que permitiram a música dentro de certas condições (entenda-se: que não fossem ilícitas, ou seja, imorais, utilizadas para afastar o crente dos atos obrigatórios de culto):

  • Abdullah bin Ja’far bin Abi Talib (al-Aqd al-Fareed 6/12)
  • Sh. Abu Hamed al-Ghazali (vol. 6 pg. 1150 al-Ihyaa’)
  • Imam al-Shawkani (Ibtal da’wa al-Ijmaa ala mutlaq al-Sama’)
  • Imam ibn Hazm (Al-Muhallah)
  • Imam Abdul-Ghani al-Nablusi (Idaahat al-Dalalaat fee sama’ al-alaat)
  • Sultan al-Ulema al-Iz ibn Abdul-Salam (Rislat al-Sama’)
  • Al-Qadi Ibn Qutaiba al-Daynoor (al-Rukhsah fi al-Sama’)
  • Imam Ibn Tahir al-Qaysirany (pg. 31 al-Sama’)
  • Imam al-Thahabi (al-Rukhsah fil-Ghinaa wa al-Turb)
  • Abu Talib al-Makky (Qoot al-Quloob)
  • al-Qady Ibn Al-Araby al-Makky (Ahkam al-Quran vol. 3 pg. 1494)
  • Sh. Yusuf al-Majishoon the prominent Muhaddith (#3399 ibn al-Khuthayma)
  • Ibn Daqeeq al-Eid (Iqtinas al-Sawanih)
  • Sh. Jad Ali jad al-Haqq (fatawah #3280)
  • Sh. Mahmood Al-Shaltoot (pg. 375 fatawaah)

A pergunta que não quer calar: quais desses autores a página Tradição Medieval conhece ou leu?

A ignorância a respeito do Islã e das fontes islâmicas é nítida, uma vez que o texto cita como exemplo o Aiatolá Khomeni, cuja vertente xiita é dentro do próprio xiismo, sendo toda essa vertente islâmica cerca de 10% (ou menos) de toda a ummah (comunidade de fiéis muçulmanos). Ou seja, tal posicionamento do Aiatolá é irrelevante para esse debate, e a página Tradição Medieval saberia disso caso tivesse conhecimento do significado do termo “aiatolá” ou o mínimo de discernimento sobre o Islã.

Não coincidentemente, o texto original publicado pela página cita hadiths desconexos, de tradução duvidosa, sem ao menos nos esclarecer a origem dos mesmos, deixando muito aquém se são reais. Pelo bem da concisão textual, usaremos só um desses hadiths para provar o erro do artigo:

“Haverá povos da minha comunidade que tomaram por legítima a fornicação, a seda, o vinho e instrumentos musicais”.

Alguns estudiosos de hadith encontraram a corrente (isnad) do mesmo, sendo a mais famosa a do livro de Ibn Hajr. Naturalmente, houveram sábios islâmicos que argumentaram contra essas afirmações, mas mesmo se tomarmos como verdade (para fins argumentativos) no que tange às conexões entre Al-Bukhari e Hisham bin Ammar, ainda há problemas em Hisham como narrador, conforme proeminentes sábios de hadith.  

      Conforme Al-Thahabi na sua famosa obra de quatro volumes Mizan al-I’tidaal, que reúne todos os possíveis narradores fracos de hadith que pôde encontrar, Hisham bin Ammar foi um narrador verdadeiro no que dizia até certo período de sua vida, porém acabou mudando. Ele narrou 400 hadiths sem qualquer base alguma. Ele não narraria sem que alguém o pagasse. Ele foi acusado de modificar texto. Além disso, o Imam Ahmad disse que ele era “imprudente”. Há inclusive heresias ditas por ele concernentes ao Alcorão.

      A discussão poderia ir mais além, mas isso comprova que a página Tradição Medieval não tem conhecimento algum de história islâmica, nem de estudos de hadith ou demais fontes islâmicas, mas mesmo assim cita de maneira prepotente a Sharia como se possuísse algum entendimento sobre o tema, quando na verdade a análise mais básica possível sobre o hadith em questão é o suficiente para descartar o mesmo.

“A CIÊNCIA E CULTURA TEM POR BASES O MUNDO ISLÂMICO?”

Aqui neste tópico, o texto tenta descartar as contribuições islâmicas para a cultura e a ciência. Ocorre que está cheio de falácias e contradições. Vejamos:

A começar, no trecho anterior o mesmo autor cita que apesar de haverem contribuições do mundo islâmico, sendo de fato realizadas por muçulmanos, foram feitas por pessoas consideradas como hereges ou por conta de motivos alheios ao Islã. Ironicamente, o autor cita contribuições de cristãos que hoje seriam considerados heréticos pela vertente cristã que o mesmo confessa. Exemplo disso é Hunayn ibn Ishaq e Yahya ibn Adi, sendo o primeiro um nestoriano e o segundo um jacobita sírio. Um fato curioso sobre Hunayn ibn Ishaq é que o mesmo foi um estudioso da Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikmah), uma criação islâmica. Richard E. Rubenstein, por exemplo, diz que as autoridades muçulmanas encorajavam os não muçulmanos a participarem da vida intelectual, mas para a página Tradição Medieval, todos foram hereges dentro de uma doutrina que eles mesmo não conhecem, ou fizeram tudo isso independentemente do Islã.

 

O autor do texto cita que Avicena e Averróis se alicerçaram nas obras dos autores gregos, como Platão e Aristóteles. Ora, quem nega isso? Ocorre que por sua vez, São Tomás de Aquino, o ápice da intelectualidade católica, só teve conhecimento das obras dos grandes filósofos antigos através desses autores árabes que o autor da postagem original insiste em desprezar. Porém, ninguém aqui está querendo desprezar a tradição católica, muito pelo contrário, diferentemente do autor do texto que tenta a todo custo desprezar o legado muçulmano, reconhecemos grandes sábios no meio cristão, e não “apesar de ser cristão”.

Os filósofos árabes-muçulmanos do campo da filosofia não foram meros comentadores escrevendo notas de rodapé, e isso a historiografia moderna há de reconhecer, como atesta o autor já citado aqui anteriormente, Peter Adamson.

Alguns estudiosos, como Burgess Laughlin, afirmam que as obras dos Gregos morreram junto com o Império Romano no Ocidente, sendo que por volta dos anos 500 d.C, quase ninguém na Europa sabia escrever ou traduzir textos nesse idioma, tendo seu contato com a língua rompido após o surgimento dos estados muçulmanos. Ainda segundo o mesmo autor, após um tempo, apenas alguns monastérios no Ocidente possuíam obras gregas, e ainda menos faziam cópias dessas obras (os principais foram os Irlandeses). Muito provavelmente foram ensinados nos idiomas grego e latino por missionários vindos de outros países.

Não obstante, o autor do post original insiste em desprezar as artes e arquitetura islâmica, sendo que diversos autores reconheceram a sua importância, sendo um dos primeiros Adrien de Longpérier.

Além disso, autores mais modernos como Rosamond E. Mack reconhecem as várias influências islâmicas na arte Ocidental, focando sua pesquisa na Itália dos séculos XIV ao XVII. Citando apenas um exemplo para ilustrar, vale lembrar que vemos a profissão de fé islâmica (shahada) em pinturas renascentistas, como por exemplo o Tríptico de São Juvenal, pintado pelo italiano Masaccio.

A arte islâmica cobre diversos pontos, incluindo a caligrafia, manuscritos ilustrados, têxteis, cerâmica, metais, vidros etc, referindo-se às artes dos países islâmicos, tanto no Oriente, no norte da África ou na Espanha.

Mercadores venezianos ao viajar para a Síria trouxeram a arte do vidro soprado, tornando assim Veneza quase que a monopolizadora dessa arte que foi tão apreciada nos países islâmicos, tendo inclusive grandes artistas judeus e coptas de destaque. Até hoje Veneza é reconhecida pela sua habilidade com vidros (habilidade essa trazida da Síria), sendo um objeto comum de compra por parte dos turistas. Ironicamente, essas viagens venezianas ocorreram após um embargo comercial por parte do papa de 1291, conforme atesta Mark Graham.

Durante o período da arquitetura Românica, as esculturas empregavam uma certa variedade de estilos, incluindo o estilo islâmico. Uma boa ilustração disso é a igreja de Saint-Pierre em Moissac.

O artigo original insiste em descreditar a arquitetura islâmica, dizendo que a mesma é cópia das igrejas bizantinas. Ora, essa arquitetura por sua vez influenciou grandes catedrais medievais na Europa. As naves arcadas das catedrais, que frequentemente eram sustentadas por arcos de ferradura, circundados por abóbodas em formato ogival. Os arcos quebrados (pointed arch), tão característicos dos designs das mesquitas, se tornou a própria definição de “gótico”, ainda nos dizeres de Graham.

Exemplo perfeito é a catedral de Pisa, sendo uma bela “síntese” entre basílica e mesquita, muito provavelmente porque a catedral foi construída para comemorar uma vitória naval sobre os muçulmanos. Porém, através do contato com muçulmanos na Sicília e al-Andaluz, cristãos ocidentais continuaram a importar a estética de grandes obras arquitetônicas, como a Grande Mesquita de Córdoba, revolucionando assim a arquitetura Europeia. Diferentemente dos detratores da página, não vemos nada de errado com isso, muito pelo contrário: só demonstra que as relações entre cristãos e muçulmanos vai muito além das fantasias belicosas do “zé cruzadinha” de Internet.

“EXISTIU UMA ÉPOCA DE OURO NO ISLÃ?”

            Recentemente foi traduzido aqui na página um texto a respeito da Era de Ouro islâmica, portanto não nos alongaremos nesse tema, recomendando assim a leitura do artigo citado.

O MUNDO ISLÂMICO E A MEDICINA: BREVE COMENTÁRIO

Nesse breve trecho do artigo original o autor reconhece algumas das contribuições islâmicas para as áreas médicas, mas ainda em constante contradição, já que disse no começo do texto que apenas o judaísmo e o cristianismo proporcionaram uma base viável para a investigação científica.

Conforme atesta Gunter B. Risse, o primeiro hospital islâmico muito provavelmente foi o construído sob o califa omíada al-Walid (705-715) em Damasco, capital da Síria. Décadas depois, em 750 os governantes do califado abássida se mudaram para a nova “capital imperial”, Bagdá. Aqui, o califa al-Mansur decidiu chamar para a sua corte um médico nestoriano, ibn Bakhtishu, fornecendo assim um papel proeminente para as elites cristãs sírias, principalmente aqueles relacionados com a área médica. Após isso, sob o califa Harun ar Rashid (786-809), uma bimaristan (“local para o doente”) real é fundada em Bagdá no começo dos anos 790, muito provavelmente localizada no subúrbio de Karkh.

Em sequência após a queda dos Barmecidas, ascende ao poder al-Mamum (813-833), surgindo assim várias influências helênicas nas atividades médicas das bimaristans. Patrocinados pelo califa, projetos de traduções do Grego para o Árabe, assim como um grande esforço para achar novos manuscritos Gregos, trouxeram grande conhecimento científico e filosófico. Conforme o tempo foi passando, grandes projetos de hospitais cada vez maiores e mais sofisticados foram sendo realizados, muitas vezes como símbolos de poder político e econômico por parte de alguns governantes.

Seguiram assim o raciocínio de que os muçulmanos doentes deviam ser abrigados, atendidos e tratados por médicos. Ainda nos dizeres de Risse, ao contrário dos cristãos, as bimaristans eram fundações estritamente privadas dos governantes, livre de qualquer agenda religiosa, longe do mito de uma “imposição da fé islâmica” como frequentemente vemos por aí. Em contraste com o cristianismo, segundo Risse, o corpo humano no Islã era um importante componente de uma pessoa e, portanto, valorizado. Os hospitais, por assim dizer, cumpriram com os princípios da religião islâmica que enfatizam a importância da saúde do indivíduo.

Sem “clérigos” no controle desses locais para forçar alguma ortodoxia religiosa, as bimaristans possuíam um caráter mais objetivo de cuidados médicos. Isso incluía, por exemplo, o controle das admissões, cuidados médicos, experimentos terapêuticos e até mesmo ensinos clínicos. Aparentemente médicos eram consultados durante o planejamento e construção desses hospitais.

A infraestrutura de tais estabelecimentos eram incríveis, verdadeiramente luxuosos em alguns aspectos, se assemelhando à palácios reais.

Por conta da competente direção dos estabelecimentos, foi promovida a criação de um sistema de triagem baseado em critérios médicos para filtrar quem poderia ou não ser atendido em ambulatórios. “Pacientes em potencial” eram examinados numa sala externa antes de serem encaminhados para enfermarias específicas. Essas enfermarias incluíam salas para pacientes com febre, casos de traumas ou cirurgias, doenças oculares e até mesmo doenças intestinais. Aparentemente até dinheiro era entregue para financiar o período de convalescença em casa. Mais tarde, grandes médicos como al-Razi (865-925) fizeram parte desse tipo de instituição.

O mundo islâmico continha um mercado de livros muito bem desenvolvido, e coleções de livros estavam à disposição em palácios, bibliotecas e até mesmo nas casas. Inclusive, muitos desses hospitais tinham sua própria farmácia contendo um amplo estoque de medicamentos, junto com um local reservado para a manipulação dos mesmos. Muitos eram preparados quimicamente, já outros estavam disponíveis através de ervas em jardins locais. Medicamentos importados também eram comuns.

Muito provavelmente as bimaristans islâmicas influenciaram modernas instituições medicinais cristãs, conforme os escritos de Gunter B. Risse.

Ocorre que o texto publicado na página Tradição Medieval diz em certo momento que alguns grandes sábios foram muçulmanos, mas que suas contribuições são devidas apesar do Islã. Ora, tal afirmação não se sustenta, e o caso das bimaristans é um ótimo exemplo disso, uma vez que os médicos invariavelmente explicavam as suas atitudes como sendo guiadas pela vontade divina, começando suas prescrições com a fórmula “em nome de Allah, o Clemente, o Misericordioso”, além de que, estes mesmos cientistas e polímatas tão famosos, eram teólogos islâmicos de peso em seu próprio direito. Outro exemplo, bem conhecido por quem estuda o assunto diga-se de passagem, é o de al-Khwarizmi, considerado o “Pai da Álgebra”, que desenvolveu a mesma como uma fórmula para facilitar os cálculos de herança da shariah islâmica. Fatos como esse comprovam que o texto na página Tradição Medieval é ignorante e falacioso.

Posteriormente no texto publicado pela página, vemos a hipocrisia dos mesmos, uma vez que afirmam que o Islã proíbe a prática de dissecar corpos, citando Andreas Vesalius como sendo uma pessoa “livre para dissecar”. O Islã na verdade não proíbe em todas as instancias, porém, essa prática não é recomendada pela religião, sendo permitida somente em casos de necessidade, mas as afirmações citando uma suposta proibição absoluta raramente acompanham fontes ou fatos baseados na realidade. No caso do artigo publicado na página Tradição Medieval, não há uma fonte sequer no texto inteiro sobre qualquer assunto que seja.

Além disso, afirmações nesse sentido só comprovam que o autor não sabe nada da própria história, e mesmo da própria religião como já comprovado em outra ocasião, uma vez que as dissecações foram proibidas pela Igreja de Roma até o século XII, conforme atesta um artigo científico publicado pela NCBI (National Center for Biotechnology Information) da United States National Library of Medicine. Segundo o mesmo artigo, a dissecação foi considerada blasfema e, portanto, proibida. O desenvolvimento da racionalidade assim como a investigação foram paralisados pelas autoridades da Igreja, podendo os médicos tão somente “repetir” as obras de figuras eminentes, como Aristóteles e Galeno. É justamente Andreas Vesalius que quebrará a tradição galênica na medicina europeia.

Porém, reconhecemos as contribuições cristãs assim como judias para as mais diversas áreas do conhecimento sem tentar desmerecer as mesmas, diferente do que algumas páginas vêm fazendo ao tentar manchar o legado islâmico através de textos repletos de contradições e vazios de fontes. Cito, por exemplo, o fato de que clérigos mais tarde ajudaram a acalmar a população a respeito da prática da dissecação de corpos, tendo assim a prática alcançado uma maior aceitação social.

Mais adiante no texto publicado na Tradição Medieval encontramos outras contradições e falácias, como por exemplo citar que al-Ghazali acabou com racionalidade no mundo islâmico, mas diz poucos momentos antes que as obras de Averróis eram estudadas nas universidades europeias, sendo que Averróis escreveu uma obra para responder al-Ghazali. Alguns trechos depois o autor do texto tenta consertar essa contradição, falando que “o estrago já estava feito” no mundo islâmico. Resta saber que estrago é esse, que um autor posterior refuta a obra do anterior e é reconhecido até hoje por isso no âmbito da história da filosofia!

Não basta tal contradição, é necessário propagar velhos mitos, como o fato de que o Imam al-Ghazali “matou a racionalidade” ou algo semelhante, sendo que uma breve análise na obra do mesmo nós podemos ver que isso é falso. Para melhor ilustrar, citamos aqui um breve trecho de uma obra do grande Imam:

“Grande, em verdade, é o crime contra a religião cometido por qualquer pessoa que supõe que o Islã deve ser defendido pela negação destas ciências matemáticas. A Lei Revelada (Sharia) em nenhuma parte compromete-se a negar ou afirmar essas ciências, e essas ciências em nenhum ponto dirigem-se às questões religiosas.”

-al-Ghazali,  Deliverance From Error, pg. 9

Ainda em outro trecho, observamos o Imam argumentando que o perigo de estudar tais ciências não é de que as mesmas são contrárias ao Islã, como supõe o autor do artigo original, mas sim que o aluno deve ter cuidado para aceitar a ideia científica dos estudiosos dessas áreas, sem aceitar cegamente tudo o que dizem sobre filosofia ou outros assuntos:

“Quem quer que estude estas ciências matemáticas, se maravilha com a quantidade de precisão de seus detalhes e clareza de suas provas. Por causa disso, ela forma uma opinião elevada dos filósofos e assume que todas as suas ciências têm a mesma lucidez e solidez apodítica como esta ciência da matemática.”

al-Ghazali,  Deliverance From Error, pg. 22

A verdade, porém, é que o aviso de al Ghazali aos alunos é apenas de não aceitar plenamente todas as crenças e ideias de um estudioso simplesmente por causa de suas realizações em matemática e ciências. Ao emitir tal advertência, al Ghazali de fato protegeu o empreendimento científico para as gerações futuras, isolando-o de ser misturado com a filosofia teórica, que poderia eventualmente diluir a própria ciência para um campo com base apenas em conjecturas e raciocínio.

Qualquer pessoa sensata sabe que isso é o padrão para tudo na vida, exceto a página Tradição Medieval que aceita cegamente um artigo sem fontes.

Há mais erros e imprecisões no restante do artigo, mas pela concisão do presente texto (que já se encontra maior que o publicado na página Tradição Medieval), citaremos só mais um: pouco após mencionar que Averróis era estudado nas universidades europeias, o autor original diz que a preocupação nas escolas islâmicas era estudar o Alcorão e as leis islâmicas.

 Algumas linhas após, o autor ainda faz a seguinte pergunta, que transcrevemos literalmente: “Porque nem mesmo se ensinava filosofia nas escolas islâmicas daqueles tempos?”. Essa afirmação está muito distância da verdade, uma vez que (como já foi publicado na HI), os complexos madraçais do Império Otomano possuíam uma extensa grade curricular, envolvendo:

  • Ciências auxiliares:
    Língua
    – Lughah (vocabulário árabe)
    – Nahw (sintaxe)
    – Sarf (Morfologia)
    – Balāghah (retórica)
    – ‘Arud (prosódia)
    – Adab (Literatura)
    – Wad ‘(teoria linguística)
    – Fārisī (idioma persa)
  • Pensamento crítico
    – Mantiq (lógica)
    – Al Bahthi wal Munāżarah (Dialética)
    Ciências Teóricas e Filosofia
    – Al ‘Ilmul Ilāhi (Metafísica)
    – ‘Ilmul Riyadiyyat (Matemática)
    – Al ‘Ilmu al Tabi’i (Ciências naturais)
  • Ciências práticas
    – ‘Ilmul Akhlāq (Ética)
    – Ilm Tadbīr al Manzil (administração do agregado familiar)
    – Al Siyāsah (Política)
  • Ciências relatórias
    – ‘Ilm al Qira’āt (recitações do Alcorão canônico)
    – Riwayat al Hadith (narração de Hadith)
  • Exegese
    – Tafsīr al Qur’an (exegese do Alcorão)
    – Dirāyat al Hadith (entendimento dos ditos do Profeta)
  • Raciocínio
    – Kalam (Teologia Racional)
    – Usul al Fiqh (princípios jurisprudenciais)
  • Aplicação
    – Fiqh (Direito)

Como pode ser observado, tal currículo não trata tão somente do Alcorão e a lei islâmica, possuindo em sua grade o estudo da filosofia, teologia, ética, metafísica e assim por diante. Vale salientar ainda que o currículo acima não retrata somente os complexos madraçais otomanos, mas sim islâmicos no geral.

CONCLUSÃO

 Como vimos, não passa de um texto com diversos erros e distorções, assim como a ausência de qualquer fonte que afirme o que foi afirmado.

Lamentavelmente muitas pessoas na internet hoje confundem o foco da página História Islâmica, assim como atacam espantalhos da mesma, como se a página ignorasse as contribuições de povos de outras religiões ou considerasse o Islã e os muçulmanos como os criadores de tudo de bom no mundo. O que a página faz é trazer à tona o legado islâmico, divulgando a história do Islã e de seus fiéis na tentativa de preencher a lacuna que temos no Brasil a respeito dos muçulmanos e de sua religião.

Ocorre que infelizmente muitos parecem se sentir “ameaçados” por conta desse trabalho de divulgação histórica, gerando assim textos rasos, vazios e mentirosos para tentar a todo custo sujar a imagem do Islã e dos seguidores da religião do Profeta, sendo que na maior parte do tempo são meras risadas de deboche ou spammando “Deus Vult” nos comentários, chamando os muçulmanos de “sarracenos”, “infiéis”, “mentirosos” e assim por diante.

Em um local e momento onde a única literatura a respeito do Islã são “guias politicamente incorretos”, esse trabalho de divulgação se faz cada vez mais necessário.

Bibliografia:

FLETCHER, Richard Alexander. Moorish Spain. Orion Publishing Group Ltd. 1992.

GRAHAM, Mark. How Islam Created The Modern World

RISSE, Guenter B. Mending Bodies, Saving Souls: A History of Hospitals. Oxford Press. 1999.

RUBENSTEIN, Richard E. Aristotle’s Children: How Christians, Muslims and Jews Rediscovered Ancient Wisdom and Illuminated the Dark Ages. Harcourt, Inc. 2003.

LAUGHLIN, Burgess. The Aristotle Adventure. Albert Hale Publishing. 1995.

MACK, Rosamond E. Bazaar to Piazza. Islamic Trade & Italian Art 1300-1600. University of California Press. 2001.

Sites:

https://iqaraislam.com/a-musica-e-permitida-no-islam

https://iqaraislam.com/uma-clarificacao-sobre-o-tema-da-musica

https://academic.oup.com/jhmas/article-abstract/50/1/67/748066?redirectedFrom=fulltext

https://www.neh.gov/humanities/2011/novemberdecember/feature/the-islamic-scholar-who-gave-us-modern-philosophy

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4582158/

https://aeon.co/ideas/arabic-translators-did-far-more-than-just-preserve-greek-philosophy

https://aeon.co/ideas/if-aquinas-is-a-philosopher-then-so-are-the-islamic-theologians

https://muslimheritage.com/ziryab-the-musician/