O uso de perfumes faz parte do cotidiano de muitas pessoas, sendo inclusive considerado por alguns como algo indispensável, assim como um bom banho. Hoje em dia existem diversas casas de perfumaria que criam os mais variados tipos de fragrâncias masculinas e femininas. Dentre as diferentes famílias de fragrâncias podemos encontrar: parfum; eau de parfum; eau de toilette; eau fraiche e eau de cologne. Indo mais além, várias são as marcas e casas de perfumaria nacionais e importadas, todas muito conhecidas do olfato do brasileiro.

O Brasil possui o maior mercado de perfumes do mundo, conforme a Forbes (2014). Essa indústria movimenta no país R$ 16 bilhões por ano, tanto nos segmentos nacionais quanto importados. Todavia, no que diz respeito aos importados - e conforme pode ser percebido nas diferentes famílias de fragrância elencadas acima, as fragrâncias francesas costumam ser referência já há um bom tempo, principalmente no imaginário popular. Contudo, algo pouco ou quase nada comentado é que a história dos perfumes é já muito antiga, e que sofreu várias influências dos povos muçulmanos em sua longa trajetória até chegar nas casas de perfumaria modernas.

Dentro das sociedades islâmicas houve uma combinação que contribuiu imensamente para o desenvolvimento das fragrâncias até chegar nas que utilizamos hoje: a valorização de bons aromas pelo próprio profeta Muhammad e o amplo estudo da química pelos cientistas muçulmanos.

Muhammad e a perfumaria

Existe no Islam algo conhecido como Sunnah, que muito embora possua diferentes significados, um dos principais são os atos do profeta Muhammad: seus modos, suas atitudes, seus ditos e assim por diante. Os modos do profeta do Islam costumam estar registrados nos livros de ahadith, que por sua vez possuem inúmeras coleções de até dezenas de livros apenas registrando detalhes da vida de Muhammad.

Dentre os detalhes que podemos encontrar em diversos livros de ahadith, sendo algo amplamente conhecido entre os muçulmanos, é o apreço de Muhammad pela perfumaria, pelos bons aromas e pela higiene e limpeza. Assim, não são raros os ditos do profeta fazendo referência ao uso de essências, como um dos ahadith que podem ser encontrados na coleção Sahih do Imam al-Bukhari:

O banho na sexta-feira é obrigatório para todo muçulmano do sexo masculino que já atingiu a puberdade e (também) a limpeza dos dentes com Miswaak (tipo de graveto usado como escova de dentes) e o uso de perfume, se disponível.

Uma vez que os muçulmanos são convidados a emular a Sunnah de Muhammad, considerado como o maior exemplo dentre os fiéis, o uso de perfumes foi amplamente difundido na história islâmica, principalmente as essências que lembrassem aos cheiros que o próprio profeta usava e mais gostava.

O perfume no Islam possui, portanto, um caráter até mesmo ritual dentro da religião, sendo um complemento às demais práticas de higiene da ritualística religiosa. Para o profeta Muhammad, o perfume estava dentre as coisas que ele mais apreciava, chegando de fato a estar no seu “top 3”.

A perfumaria na Arábia pré e pós-islâmica

A região da Arábia já possuía um legado na perfumaria antes mesmo do advento do Islam e do grande apreço do profeta pelos perfumes, porém foi somente graças à religião que essa tradição pôde se expandir além das fronteiras do deserto. Segundo Leon (2013), tanto a Grécia, Roma e o Egito antigo consideravam a Arábia como o berço da perfumaria.

Na Arábia pós advento do Islam, era extremamente comum os muçulmanos misturarem perfumes com o cimento no qual seriam construídas as mesquitas. Assim, tanto por emulação da Sunnah quanto por essa “arquitetura perfumada”, os estudiosos muçulmanos procuraram desenvolver técnicas cada vez melhores e mais sofisticadas para a criação de novas fragrâncias.

No século IX, o árabe Al-Kindi escreveu o Livro da Química dos Perfumes e Destilações, que continha mais de cem receitas de óleos aromáticos, pomadas, águas aromáticas e substitutos ou imitações de produtos mais caros, muito parecido com o conceito de “contratipos” utilizado na perfumaria moderna. O livro também descrevia 107 métodos e receitas para a fabricação de perfumes e equipamentos para a fabricação dos mesmos, como o alambique.

Mais tarde, outro autor influente em outras áreas científicas, Ibn Sina (Avicena), também dedicaria parte de seus escritos para a perfumaria. Introduziu o processo de extração de óleos das flores por meio da destilação, procedimento mais utilizado atualmente. Ele primeiro tentou com a rosa. Até sua contribuição, os perfumes líquidos eram misturas de óleo e ervas trituradas, ou pétalas que formavam uma mistura forte. A água de rosas era mais delicada, diferenciando-se das fragrâncias herbais mais robustas, imediatamente se tornando popular. Tanto as matérias-primas quanto a tecnologia de destilação influenciaram significativamente a perfumaria ocidental e os desenvolvimentos científicos, particularmente a química, área indispensável para a criação de bons perfumes, uma vez que envolve a mistura de diversas fragrâncias distintas e harmônicas entre si para criar um cheiro único e agradável.

A introdução das fragrâncias islâmicas na Europa cristã

Hoje o Ocidente se tornou o centro da perfumaria, mas nem sempre foi assim. Em outros momentos da história, as “essências orientais” eram o que estava no topo. Essa influência Oriental permanece até hoje nas classificações da perfumaria moderna, onde “fragrâncias orientais” ainda continuam muito populares e produzidas por casas de perfumaria de grande renome.

Há um debate no meio historiográfico se a perfumaria foi esquecida no Ocidente após a queda do Império Romano na Idade Média. Perdida ou apenas mitigada, a perfumaria receberia seu grande salto após o contato dos cristãos europeus com os povos muçulmanos vindos do Oriente, mais especificamente em três ocasiões do período medieval: a conquista da Península Ibérica em 711; a conquista da Sicília pelos muçulmanos em 827 e posteriormente o intercâmbio cultural entre cristãos e o mundo islâmico durante as Cruzadas.

Ao cruzarem o estreito de Gibraltar em 711, os muçulmanos levaram não somente sua religião, mas todo um arcabouço cultural interdependente de sua religiosidade. Assim, as cidades espanholas controladas pelos povos muçulmanos (Al-Andaluz) tornaram-se grandes produtoras de perfumes que eram comercializados em toda a África, Eurásia e demais regiões do Velho Mundo. Tão qual no mundo antigo, os andaluzes usavam fragrâncias em devoção a Deus. Os perfumes adicionavam uma camada de limpeza necessária para sua devoção, que só seria possível cumprir com os rituais diários da religião após a purificação do corpo.

Alguns personagens importantes da história de Al-Andaluz são amplamente conhecidos pelo seu apreço às boas fragrâncias, sendo esse o caso de Al-Hakam I, emir de Córdoba, que em meio a uma batalha ordenou para um de seus criados que lhe trouxesse almíscar [1] para que pudesse perfumar sua barba e cabelos.

O almíscar é uma fragrância muito valorizada tanto dentro da perfumaria árabe quanto dentro do Islam. Em todas as listas aromáticas da literatura árabe medieval, o almíscar vem em primeiro lugar, e é discutido por primeiro em todos os livros que tratam dos perfumes. O trabalho de Ibn Masawayh sobre aromáticos e também o de al-Masudi listam o almíscar primeiro. O mesmo também pode ser dito das obras de Ibn Mandawayh e Ibn Kaysān, assim como nas obras de enciclopedistas como al-Nuwayri e al-Qalqashandi.

O próprio Muhammad disse que o almíscar era o melhor aromático, e assim tornou-se parte da tradição islâmica. Ibn Qayyim al-Jawziyyah disse sobre almíscar em seu livro Al-Ṭibb al-Nabawi chamou o almíscar de “rei dos aromáticos”.

Dentro da tradição islâmica, o almíscar é frequentemente associado diretamente ao Paraíso. Assim, não raramente existem comentários de místicos a respeito desse importantíssimo aroma. Al-Ghazali citava um hadith que dizia que o solo do Eden era de açafrão, enquanto a terra era de almíscar. O almíscar é, portanto, o cheiro do Paraíso. Não somente, mas é também uma espécie de “perfume perdido” do Eden, remetendo ao “estado adâmico” (fitrah) do homem, a sua mais pura essência conforme os planos do Criador.

Em seus ahadith, al-Muslim diz que os corpos dos mártires se transformarão em almíscar no céu. Em outro momento, falando dos bem-aventurados, ele diz que eles não urinarão nem defecarão, mas que seus fluidos corporais se transformarão em almíscar e perfumarão seus corpos. Esta ideia é ainda corroborada por uma tradição oral segundo a qual o suor do profeta Muhammad cheirava a almíscar. Diversas outras narrações nesse sentido podem ser encontradas dentro da tradição islâmica, denotando a imensa importância dada ao almíscar no Islam, não sendo por acaso o seu amplo uso na perfumaria árabe-islâmica e sua consequente influência nas fragrâncias ocidentais.

Apesar do almíscar ter sido muito valorizado, a rosa acabou se tornando posteriormente a rainha de todas as fragrâncias no mundo islâmico, tradição que remonta desde a antiga Pérsia [2]. Agora a rosa poderia ter sua essência extraída de maneira mais adequada, uma vez que os métodos de extração e destilação foram amplamente aperfeiçoados pelos polímatas muçulmanos, conforme já exposto anteriormente no caso de Ibn Sina. Para exemplificar a magnitude que as essências florais derivadas da rosa chegaram, em certa época do medievo, cerca de trinta mil frascos de perfumes de rosas eram enviados todos os anos para o Califado em Bagdá.

Retomando à chegada dos perfumes árabes na Europa, posteriormente outros intercâmbios civilizacionais ocorreriam entre europeus e muçulmanos, dessa vez no período das Cruzadas, principalmente nos séculos XI e XII, devido às trocas realizadas entre os cruzados que retornavam das batalhas com os comerciantes árabe-muçulmanos. As negociações com os povos islâmicos envolviam em muitos casos corantes e especiarias. Há registrado uma negociação feita entre a Guilda Pepperers de Londres em 1179 com mercadores muçulmanos, onde foi adquirido corantes, especiarias e também ingredientes para a fabricação de perfumes.

Após esse período, a perfumaria na Europa cristã começou a se desenvolver de forma própria. Podemos encontrar receitas para a fabricação de perfumes datadas de 1221 de monges de Santa Maria Novella em Florença, Itália. Mais ao leste europeu, os húngaros produziram por volta de 1370 um perfume feito de óleos aromáticos misturados em uma solução alcoólica, mais conhecida como Água de Hungria, a pedido da Rainha Elizabeth da Hungria, sendo considerado o primeiro perfume à base de álcool da Europa, tendo inclusive a fama de supostamente ter rejuvenescido a rainha húngara. A própria criação da Água de Hungria foi através da capitalização da chegada da tecnologia de destilação do álcool (alkohol) através dos alquimistas árabes, uma descoberta do século X. Indo mais além, cumpre salientar que a perfumaria na Europa viria a se consolidar principalmente após Catarina de Médici, rainha consorte da França, “iniciar” a indústria da perfumaria no continente europeu.

Muito embora hoje fragrâncias europeias sejam amplamente renomadas em todo o mundo, as mesmas possuem inegáveis influências de civilizações que estudaram e aperfeiçoaram a arte da perfumaria, sendo uma das principais (ou a principal) a civilização árabe-islâmica, responsável tanto por fornecer ingredientes, métodos e tecnologias para a criação das mais agradáveis essências.

REFERÊNCIAS

EVERTS, Sarah. A Brief History of Perfume: Visiting an Archive of Ancient Scents. Literary Hub, 2021.

FORBES. Brasil tem o maior mercado de perfumes do mundo. Forbes, 2014.

HELWANI, Alexandre. Musk in Islam: the esoteric way. The Perfume Chronicles, 2018.

KING, Anya H. Scent from the Garden of Paradise: Musk and the Medieval Islamic World. Brill, 2017.

LEON, Tomas Ponce. Historia del perfume en España: los aromas de al-Andalus. La Casa Mundo, 2013.

SALAHI, Adil. The Prophet as a man: Wearing perfume when going out. Arab News, 2007.

TAILOR MADE FRAGANCE. History of Perfume. Tailor Made Fragance, [n.d.].

THE PERFUME SOCIETY. Perfume Crusaders – And the Renaissance. The Perfume Society, [n.d.].

NOTAS

[1] O almíscar, do árabe al-misk, é ainda hoje um ingrediente presente em milhares de fragrâncias das mais diversas casas de perfumaria.

[2] Notas florais, principalmente de rosas, são amplamente utilizadas até os dias de hoje na perfumaria árabe e de todo o mundo.