Com origens que remontam à Idade Média, Jogos de Cartas são um gênero antiguíssimo de entretenimento, talvez sendo discutivelmente uma das formas mais antigas de diversão ainda em vigor. Embora seja uma forma de recreação aparentemente moderna e ocidental, os jogos de cartas não têm origem na Europa; e mais, além de serem uma diversão não-ocidental, os atuais jogos de baralho e o próprio tarô têm uma importante herança islâmica, sem a qual nunca teríamos desenvolvido suas atuais formas ou, talvez, nunca teriam sido sequer um fenômeno no mundo ocidental.

Tratar das origens dos jogos de cartas é um assunto um pouco controverso, todavia, a maioria dos especialistas concorda que o passatempo teria se originado na China, durante o século IX. Acredita-se que os primeiros baralhos tenham se desenvolvido a partir das configurações vistas em peças de dominó, especulação que é fortalecida pelo próprio fato de que a palavra chinesa pái é utilizada em documentos contemporâneos como um termo usado para referir-se ambos os jogos. Isto pode ser um indicativo forte de que os chamados “jogos de cartas” eram, originalmente, uma modalidade dos próprios jogos de dominó, possivelmente se utilizando das mesmas peças para uma configuração diferente, já que cartas de papel – que deram origem às atuais cartas plásticas – são uma criação mais tardias.

“Não existe diferença essencial entre cartas e dominós na China; o que conhecido – por conta da similaridade aparente – pelos estrangeiros como ‘dominós’ eram, na maioria dos casos, usados precisamente como usamos cartas atualmente.” (WILKINSON, W. H. Chinese Origins of Playing Cards, 1895. Disponível em: < https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1525/aa.1895.8.1.02a00070>.)

Peças de dominó ou “cartas de baralho” primitivas, do período medieval chinês. (WILKINSON, p. 61)

Não se sabe exatamente quando o papel começou a ser utilizado para a manufatura de cartas, embora saibamos com certeza da sua existência no final do século XIII, estabelecendo assim um terminus ante quem (limite temporal final para a existência de um fenômeno).

Ainda existem algumas dúvidas sobre o tipo de caminho que os jogos de baralho tiveram que percorrer até chegar na Europa, mas neste percurso temos uma certeza: ela passou pela mão de povos muçulmanos. O mais famoso baralho medieval que sobreviveu à degradação do tempo é o dito Baralho Mameluco, encontrado no Palácio Topkapi – na antiga capital do Império Otomano, a cidade de Istambul – na primeira metade do século XX. Trata-se de um refinado conjunto de cartas de papel, feitas e decoradas à mão, que apesar de não parecerem inicialmente com os nossos baralhos modernos, numa análise mais dedicada revelam como os baralhos ocidentais têm suas formas derivadas dos baralhos muçulmanos.

Algumas das cartas do Baralho Mameluco, expostas no Topkapi Museum de Istambul. Suas dimensões são de 252 x 95 milímetros, o que geralmente as torna um tanto grandes para as dimensões de cartas plásticas modernas. Todas as cartas são pesadamente ornamentadas, pintadas e necessariamente todos os detalhes dourados são feitos de ouro.

O baralho mameluco atual é incompleto, contendo 47 cartas divididas em quatro naipes, onde cada naipe deveria ter 13 cartas; neste sentido, o baralho original teria contido 52 cartas se algumas não tivessem se perdido, de alguma forma, do resto de seu conjunto.

À primeira vista, o baralho mameluco é muito pouco parecido com qualquer coisa que lembre um baralho moderno, mas se olharmos com atenção, podemos ver as bases do segundo no primeiro: para início de conversa, os naipes. O baralho mameluco é dividido em naipes de dirhams, moedas de ouro utilizadas em reinos muçulmanos; taças; sabres; e bastões de polo. Como o polo era um esporte desconhecido na Europa Cristã, os bastões foram substituídos por clavas; e o sabre, por espadas retas. Um observador mais atento notará que esses naipes se desenvolveram nos naipes modernos de ouros (dirhams), espadas (sabres), copas (taças ou copos) e paus (clavas ou tacos de polo). É claro que os símbolos se desenvolveram para algo completamente diferente das suas formas originais, ainda assim, seus nomes permaneceram praticamente os mesmos.

Os quatro naipes do baralho mameluco. Em ordem, da esquerda para a direita: espadas, ouros, paus e copas.

De fato, as influências do estilo de baralho muçulmano na Europa são tão significativas que até o nome “naipe”, do espanhol, tem origens islâmicas: a palavra naib, que significa algo como “vice-rei”. Isto se deve ao fato de que, no modelo islâmico, as chamadas cartas de corte, que no ocidente são o Rei, a Rainha e o Valete/Pajem, eram chamadas no mundo islâmico de malik ("rei" ou "soberano", a carta mais alta), nâib ("vice-rei") e nâib thanî ("segundo vice-rei", a carta mais baixa). Era justamente por conta deste arranjo das cartas de corte que o jogo de cartas muçulmano era conhecido entre eles como “jogar o naib”.

Diagrama mostrando as adaptações dos naipes até os dias atuais.

As cartas de corte, ou arcanos maiores como são conhecidos no tarô, se distinguem das demais cartas por possuírem descrições delas, como pode ser visto acima. A ausência de representações pictográficas do soberano, vice-rei e segundo vice-rei costumam ser explicadas pela doutrina iconoclasta islâmica, optando assim por descrições escritas, figuras geométricas e frases de sorte ao invés de figuras humanas.

Essas frases, na verdade, seriam mais bem descritas como versos de rima, conforme o estilo árabe típico; e embora sua tradução de certa forma resulte na perda de seu valor estilístico, elas ainda são bastante interessantes de se conhecer.

“Com a espada da felicidade redimirei um amado que depois tirará minha vida”. “Ó tu que tens posses, permanece feliz e terás uma vida agradável.”. “Que venha a mim, porque o bem adquirido é durável; alegra-me com toda a sua utilidade”. “Prazeres para a alma e coisas agradáveis, nas minhas cores existem todos os tipos”. “Olha como é maravilhoso o meu jogo e o meu vestido extraordinariamente lindo”. “Sou como um jardim, tal do qual nunca existirá”. “Ó meu coração, para ti a boa nova que alegra”. “Alegra-te na felicidade que retorna, como um pássaro que canta a sua alegria”. “Quanto ao presente que se alegra, teu coração logo se abrirá” - “Eu serei, como pérolas em um cordão, levantado nas mãos de reis” - “Que Deus te dê prosperidade; então tu já terás alcançado teu objetivo”-“ Alegra-te pela tua felicidade duradoura ”-“ Alegra-te nas coisas agradáveis e no sucesso dos objetos ”-“ Eu sou como uma flor, um colar de pérolas é o meu solo? ” - “O alif alegra-se e cumpre os seus desejos” - “Quem quer que me chame à sua felicidade, só verá olhares alegres”.

Cartas de espadas. Antes da adoção de números, o valor das cartas era contado pelo número de objetos do naipe representado, sendo posteriormente substituídas nos baralhos mais tardios pelo método numérico por conta de sua praticidade.

Existem duas teorias sobre a introdução do baralho na Europa: uma delas é de que as repúblicas italianas trouxeram o baralho durante suas transações comerciais com o Sultanato Mameluco do Egito, dai o espalhando pela Europa; o que era muito defendido pelo fato de que os baralhos mais antigos da Europa vêm da corte do principado de Ferrara, na Itália. A segunda teoria é de que o baralho seguiu seu curso natural pelo Mundo Muçulmano, passando pelo Sultanato Mameluco para o Emirado de Granada, o último reminiscente da Espanha Islâmica desde o século XIII; de Granada, que pode ter recebido o baralho do Magrebe ou diretamente do Sultanato Mameluco, o baralho teria sido adotado pelos espanhóis e, a partir deles, para outros europeus. Somos adeptos da teoria andaluza: a rota de transmissão Granada – Espanha é que explica corretamente o porquê o termo “naipe”, ibérico em natureza, como uma adaptação de naib, ter se tornado o padrão para o Ocidente; na verdade, o empréstimo foi inicialmente tão direto que o jogo de cartas era originalmente chamado “naipe”, da mesma forma como os muçulmanos “jogavam o naib”.

O que é indiscutível, porém, é que o baralho nunca teria chegado a Europa sem ter sido passado e desenvolvido pelos muçulmanos, o que inclusive explica um fato bem curioso: o primeiro registro escrito sobrevivente sobre jogos de cartas na Europa Católica vem da cidade de Berna, na atual Suíça, que em 1367 d.C. proibiu o jogo; sem dúvidas, e confirmado pela opinião dos especialistas, pela sua conotação com o islamismo. Os europeus não estavam tão empenhados em proibir um jogo de azar de entrar no seu território, sendo que os já estabelecidos sequer foram exatamente combatidos; o que a Europa Católica queria era dar fim no jogo dos sarracenos, não por ser um jogo de azar, mas por “dos infiéis”. Seja como for, o baralho foi mais forte, e apesar das proibições, logo se consagrou como um jogo da corte e das massas. A primeira proibição de cartas pelo seu valor como jogo de azar, ao invés da sua origem muçulmana, só viria no século XVI, quando a cidade suíça de Genebra, influenciada pelo reformador protestante João Calvino (1509 – 1564), revisou e promulgou leis que baniam os jogos de cartas como parte da sua nova agenda moral.

Historiadores são de opinião comum de que os mamelucos foram fundamentais na popularização e transmissão dos jogos de cartas pelo Mediterrâneo; e de fato, o famoso baralho encontrado no Palácio Topkapi recebe este nome justamente por ter vindo do Sultanato Mameluco, no Egito, em algum ponto entre os séculos XV e XVI. Embora seja de uma data muito tardia, como todos os demais baralhos sobreviventes, isto é explicado de uma forma bem simples: baralhos populares, aqueles utilizados pelos setores mais baixos da sociedade, não eram ricamente adornados e nem possuíam demasiado valor agregado; e por causa disso, conservá-los como os baralhos ricamente adornados das cortes de Ferrara e de Constantinopla, por sua vez, não fazia tanto sentido. É justamente por isso que temos poucos baralhos sobreviventes dos primeiros séculos, embora um número de referências escritas atestando sua popularidade; que por sua vez também devem ser um pouco tardias, já que diversões desse gênero não costumam figurar em registros históricos, justamente o caso da proibição cantonal em Berna, contra o seu uso.

O que explica o protagonismo do Sultanato está justamente no seu âmago: os mamelucos. Historicamente, os mamelucos eram uma tropa de elite formada de soldados-escravos. Embora os primeiros mamelucos tenham surgido no período abássida, é a partir de Saladino que eles se desenvolvem: Saladino fez uso extenso de mamelucos tanto no seu exército quanto para sua proteção pessoal; o atentado frustrado da seita nizari, a Fraternidade Assassina do Velho da Montanha, contra Saladino mostra muito bem isso. Conforme os sucessores de Saladino frequentemente lidavam com golpes e rebeliões, o sultanato aiúbida viu uma expansão no uso de mamelucos, especialmente nos últimos reinados. E foi justamente por causa dessa expansão que os mamelucos adquiriram poder, até finalmente deporem o último sultão aiúbida e ascenderem ao trono, criando uma espécie de ditadura ou monarquia militar de escravos.

No geral, mamelucos eram recrutados a partir de povos estrangeiros e preferencialmente não-islâmicos, tendo em vista a proibição corânica de se escravizar outros irmãos de fé. Por conta disso, muitos mamelucos tinham origem turca, circassiana, kipchak e afins. São essas etnias orientais que vão ajudar a trazer costumes estrangeiros para o Levante; e de lá, para a Europa.

“Só conhecemos a estrutura dos primeiros baralhos europeus por meio de fontes escritas, uma vez que praticamente não existem cartas de baralho sobreviventes dessas primeiras décadas. Os curadores do museu de Barcelona certa vez descobriram cartas de baralho do século XV sendo usadas para enrijecer as capas de um livro que estavam restaurando. O historiador das cartas de baralho Simon Wintle viu essas folhas de cartas no Museu Histórico de Barcelona e reconheceu que elas ilustram como o baralho dos mamelucos foram modificadas para o gosto europeu. Os setes de cada naipe são mostrados aqui a partir de um baralho que foi impresso recentemente pela Guinevere’s Games. Muita pouca informação veio com este deck, então não sabemos quantas cartas foram recriadas.

[...] Os naipes de Moedas e Miríades (Copas) são substancialmente os mesmos nos decks mamelucos e europeus. As cimitarras tornaram-se espadas retas. Varas de polo eram desconhecidas na Europa, então eles eventualmente se transformaram em bastões. Neste baralho, eles são um objeto estranho com um nó no centro que era indubitavelmente reconhecível na Espanha do século XV. As cartas da corte são ilustradas com pessoas: um rei sentado, um cavaleiro montado e um pajem em pé.”

(SMITH, Sherryl E. Trzes’ Mamluk Deck: The Granddaddy of European Playing Cards)

Bibliografia:

WILKINSON, W. H. Chinese Origins of Playing Cards, 1895. Disponível em: < https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1525/aa.1895.8.1.02a00070>. Acesso em 24 de junho de 2021.

SMITH, Sherryl E. Trzes’ Mamluk Deck: The Granddaddy of European Playing Cards. Tarot Heritage, 5 de abril de 2019. Disponível em: < https://tarot-heritage.com/2019/04/05/trzes-mamluk-deck-the-granddaddy-of-european-playing-cards/>. Acesso em 22 de junho de 2021.

BALLADSPOT. Mamluk Playing Cards. Disponível: < http://balladspot.blogspot.com/p/mamluk-playing-cards.html>. Acesso em 23 de junho de 2021.

THE WORLD OF PLAYING CARDS. Mamluk Playing Cards. Disponivel em: < https://www.wopc.co.uk/egypt/mamluk>. Acesso em 22 de junho de 2021.

TORRI, Bete. O Tarô Mamluk – o baralho árabe. Disponível: <http://www.clubedotaro.com.br/site/h23_15_mamluk.asp>. Acesso em 22 de junho de 2021.

MARQUES, Lisélia. O Baralho Mameluco (Mamluk). Aprenda Tarô. Disponível em: < http://aprendatarot.com.br/?p=332>. Acesso em 22 de junho de 2021.

MAMLUK CARDS. History. Disponível em: <http://mamluk.spiorad.net/history.htm>. Acesso em 23 de junho de 2021.

ARCOBALENO MÍSTICO. A Origem das Cartas Mamluk ou Mamelucas. Disponível em: < http://www.arcobalenomistico.com.br/loja/index.php?option=com_content&task=view&id=641&Itemid=2>. Acesso em 23 de junho de 2021.