Texto de: Bruno Tadeu Salles

Há uma diferença importante entre as seguintes perguntas: O que foram as Cruzadas? Como foram os contatos entre latinos, fatímidas, seljúcidas, ayúbidas e mamelucos no Mediterrâneo Oriental entre os séculos XII e XIII? Se a primeira situa o foco na ideia de formação das Cruzadas no Ocidente e seus desdobramentos no Levante, a segunda, por sua abrangência, tende a expor certa complexidade cuja ressonância incide não apenas na escolha dos temas, mas também, das abordagens. Diante disso, podemos acrescentar um terceiro problema: em nossas pesquisas, sobretudo no Brasil, o quanto a primeira pergunta não relega a segunda a um lugar de quase esquecimento? Em suma, trata-se de reivindicar, a partir de um diálogo cada vez mais estreito entre os estudos medievais e as propostas da História Global e das Histórias Conectadas, outras formas de se falar sobre contatos e interações. Não é possível discutir conexões sem pensar, de forma equitativa, em todas as partes nelas envolvidas ou reduzir seu exame à componente estritamente conflituosa. 

Tendo em vista os usos políticos das Cruzadas no mundo contemporâneo, seja para justificar uma visão xenófoba e reducionista do Islã ou para mobilizar extremismos diversos, é preciso se preocupar como combater a xenofobia em sua componente cruzadística. Um caminho interessante, tal como apontou Jochen Burgtorf (2018: p.8) é lembrar que as relações entre cristãos e muçulmanos foram orientadas por considerações ideológicas, pessoais e pragmáticas. Esse pragmatismo pode ser visto através das Ordens Militares, como templários e hospitalários. Dedicados ao combate contra os muçulmanos, se ocuparam em tréguas e compromissos com inimigos tão acirrados quanto o Sultão Baybars (1223-1277). Além disso, mesmo posturas tão hostis quanto a execução dos templários após a batalha de Hattin, em julho de 1187, indicam não o mero temor de um inimigo determinado, mas a oposição quanto a um possível ponto de intercessão ou de sincretismo. Os eruditos muçulmanos conheciam o propósito templário e hospitalário de formarem Ordens Militares e Religiosas (LEWIS, 2017: 20-28) que constituíam, não apenas uma ameaça militar, mas um perigo aos fundamentos islâmicos. A existência de um santuário dedicado à Maria, em Saydnāyā, na Síria, sob os cuidados dos Templários, onde cristãos e muçulmanos rezavam juntos, é nosso ponto de partida. No tempo de Nūr-al-Dīn (1118-1174), era costume o sultão de Damasco entregar um volume de óleo, para Saydnāyā iluminar a igreja. Portanto, os templários, em Saydnāyā, personificavam a intercessão e o sincretismo. Este lugar proporciava uma devoção partilhada entre cristãos e muçulmanos que não deveria ser simpática a certos meios islâmicos de uma observância sunita estrita ou rigorosa, tal como o círculo de Saladino (1138-1193). Este último, como podemos perceber, ainda no que tange à diversidade islâmica do século XII, não era uma figura consensual. Em meios xiitas e junto aos apoiadores da linhagem de Nūr-al-Dīn, de quem se apresentara como sucessor, Saladino poderia ser visto como um aventureiro ou usurpador que, por interesses familiares, combateu contra muçulmanos (IRWIN, 1995: 233). Além disso, ele concedera tréguas aos latinos, após a conquista de Jerusalém, que não seriam bem vistas. 

Considerando que Lewis esteja correto e que os eruditos muçulmanos conheciam e diferenciavam templários e hospitalários dos outros latinos, em sua condição de guerreiros e religiosos, o tema do contato e da proximidade se destaca. Proximidade e contato proporcionados por missões diplomáticas e pela conclusão de tratados e tréguas que tinham a participação dos membros das Ordens Militares. Se os cronistas latinos e árabes do século XII apontam a participação dos templários na conclusão de acordos entre o Reino de Jerusalém e o Califado Fatímida da Cidade do Cairo, os do XIII também sugerem esses intercâmbios. Não obstante, é justo levar a sério as evidências apontadas pelo processo, movido contra os templários no início do século XIV, que culminaria na extinção da Ordem em 1312. Segundo certos depoimentos, de pessoas que conviveram com os templários no Levante, alguns deles gozavam de certa estima junto ao Sultão e aos emires mamelucos, dentre os quais Guilherme de Beaujeu (1230-1291), Mestre da Ordem morto no cerco da cidade de Acre, em 1291, e o oficial Mateus Sauvage. Mesmo que esses depoimentos possam ser explicados pelo esforço do rei francês em conseguir um amplo apoio contra a Ordem, as crônicas latinas e árabes do período fazem referência a possível amizade entre aqueles templários e os mamelucos, mesmo em um momento, como no final dos anos sessenta e início dos setenta do século XII, quando as relações entre o Sultão e a Ordem alcançaram um ponto crítico (BURGTORF, 2018: 9-10).

O trânsito de Mateus Sauvage, como mediador e negociador junto a Baybars, constitui um exemplo do que a historiografia tem chamado de realpolitik dos reinos latinos e dos poderes que governaram o Cairo ou o jogo pragmático que deveria estar no horizonte de sujeitos históricos como Saladino, Baybars e os templários. O primeiro, após 1174, encontrava concorrentes muçulmanos ativos em Alepo, Mosul e no círculo califal de Bagdá. Já o segundo, ocupado com o avanço do Khan Mongol Hülegu (1217-1265) e com os possíveis problemas que poderiam surgir após tomar o poder das mãos ayúbidas, em 1250, estabeleceu compromissos com os latinos no Levante. Ambos se mostravam, portanto, práticos ao tomar suas iniciativas e concluir seus compromissos com os latinos. As preocupações de Saladino com as oposições de Mosul e Alepo e as trocas diplomáticas e amistosas entre Baybars e o Khan Mongol Berke (1209-1266) – ambos eram opositores de Hülegu – enfatizam o lugar relativo dos reinos latinos no que poderíamos chamar de agenda ayúbida, no século XII, e mameluca no XIII. Esse lugar relativo, pensado em conjunto com diversos outros tipos de contato não-belicosos, os quais têm ganhado cada vez mais atenção da historiografia, tal como pudemos observar, nos ajuda a considerar o jogo complexo de frágeis equilíbrios, de tênues compromissos, de amizades flexíveis e de oposições concretas, mas não exclusivas. Assim como no Ocidente, as Ordens Militares participaram desse intrincado jogo de consequências, naquele momento, incertas.


Para Saber Mais:

BURGTORF, Jochen. “Blood-Brothers” in the Thirteenth-Century Latin East? The Mamluk Sultan Baybars and the Templar Matthew Sauvage. In: SHAGRIR, Iris (ed.); KEDAR, Benjamin (ed.); BALARD, Michel (ed.). Crusades – Subsidia 11. Communicating The Middle Ages: essays in honour of Sophia Menache. London: Routledge, 2018: 03-14.

IRWIN, Robert. Islam and The Crusades (1096-1699). In: RILEY-SMITH, Jonathan (Ed.). The Oxford Illustrated of Crusades. Oxford: Oxford University Press, 1995: 217-259.

LEWIS, Kevin James. Friend or Foe: Islamic views of the military orders in the Latin East as drawn from Arabic sources. In: SCHENK, Jochen (ed.); CARR, Mike (ed.). The Military Orders. Volume 6.1. Culture and Conflict in the Mediterranean World. London: Routledge, 2017: 20-29.

Fonte: Sacralidades Medievais